Por: João Vitor Santos e Lara Ely | Edição: Patricia Fachin | 03 Outubro 2017
Apesar de a população brasileira ser majoritariamente conservadora em relação a pautas polêmicas, para entender a existência de uma nova onda conservadora no país é preciso voltar ao episódio que tomou conta das ruas em junho de 2013, diz Leonardo Sakamoto à IHU On-Line. “Junho de 2013 não foi um movimento violento, mas um movimento legítimo. Entretanto, ao mesmo tempo, como efeito colateral, a extrema-direita aproveitou-se desse momento e acabou ocupando espaço”, diz. Segundo ele, há quatro anos, quando as manifestações tomaram conta do país, “a esquerda partidária ficou com medo das ruas”, não entendeu as reivindicações da população e “acabou jogando os jovens de bandeja para a extrema-direita, que, agora, os acolhe. Muitos dos jovens não organizados que estiveram nas ruas em 2013 acabaram caindo no colo desse pessoal, que entrega a eles uma narrativa”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o jornalista reflete sobre as situações políticas, sociais e econômicas que favoreceram esse tipo de discurso e comenta as suas repercussões na internet. “O processo de intolerância existe nas sociedades, com ou sem internet. A internet capitaliza esses processos e as redes sociais não são necessariamente bons lugares para fazer debate público, porque elas são boas para construir conceitos, mas não para construir significados coletivos. É difícil construir significados coletivos, porque isso depende do outro, e as redes acabam polarizando as discussões e criando bolhas. Nesse sentido, nós só vemos as postagens daquelas pessoas com as quais mais interagimos e concordamos. Então, a tendência é que se veja mais aquilo com o que mais se concorda”, constata. Na prática, frisa, “as redes sociais criam bolhas que podem se transformar em caixas de reverberação em torno de si, e fazem com que as pessoas não tenham acesso e não se importem com qualquer outro assunto que esteja fora da sua bolha”.
Sakamoto também expõe as linhas gerais que poderiam possibilitar uma renovação da esquerda e a criação de um projeto de país. Em primeiro lugar, enfatiza, “qualquer debate sobre o futuro da esquerda deve passar por uma discussão de autocrítica da esquerda do ciclo anterior, ou seja, é preciso identificar o que foi feito de errado pela esquerda petista e a esquerda em geral”. De outro lado, frisa, “a construção de um novo projeto de país precisa ser feita com os atores sociais, e não mais com heróis, mas tem que ser uma construção de baixo para cima, considerando todos os atores envolvidos, como a esquerda tradicional, a esquerda política e partidária, com uma nova esquerda ligada aos movimentos sociais, que já nascem numa categoria 2.0 e que fazem uma discussão identitária importante”.
Leonardo Sakamoto (Foto: Zashi)
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP. É professor de Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você acompanhou o episódio do cancelamento da exposição QueerMuseu no Santander Cultural? O que esse episódio revela sobre o momento em que vivemos?
Leonardo Sakamoto – Acompanhei o episódio com muita preocupação. Houve uma tentativa, por parte das pessoas que atuaram nesse episódio, de não o caracterizar como censura, mas foi uma clara tentativa de censura. Não vou entrar na questão de se aquilo era ou não arte, porque girar em torno disso seria equivocado. O que me parece é que estamos num momento de agressão às minorias.
Vivemos um momento em que parte de uma extrema-direita conservadora e reacionária tem vindo a público para intimidar os instrumentos que são próprios da democracia, como a liberdade de expressão. Esses grupos perceberam que eles podem fazer essa batalha para subverter a democracia e, em última instância, quebrar a democracia. Eles utilizam o argumento da liberdade de expressão para calar outras liberdades de expressão, ou seja, isso é inaceitável. Não podemos usar a democracia contra a própria democracia. Isso é um instrumento totalitário. Ao se fazer pressão para barrar uma exposição de arte, se tenta calar e se causa um dano à democracia. Se uma pessoa quer fazer um boicote a alguma exposição, ela pode simplesmente não comparecer, mas não pode tirar o direito de outras pessoas de irem a essa exposição.
Esse episódio também gera uma segunda discussão, que é sobre quem financia a arte no país. Grande parte da arte no Brasil é financiada pela iniciativa privada, que decide o que vai ou não ser exibido de acordo com suas necessidades empresariais e corporativas, e não segundo uma curadoria ou um editorial que tem uma visão de mundo de pluralidade. Quando um banco como o Santander banca uma exposição como essa, ele deve saber que críticas podem surgir, mas se ele decidiu bancar a exposição, ele tem que ir até o final. Na medida em que o banco fechou a exposição por medo de perder correntistas, isso demonstra a nossa dependência do poder econômico. Infelizmente, o Santander errou.
IHU On-Line - O que explica o surgimento de uma onda moralista e conservadora no Brasil?
Leonardo Sakamoto – O Brasil tem um posicionamento conservador, e se formos observar qualquer análise de opinião, veremos que o brasileiro é conservador em uma série de temáticas, como a redução da maioridade penal, por exemplo. Em relação à liberdade do outro, o brasileiro é bastante conservador; agora, quando se trata da liberdade de si mesmo, ele tende a ser mais aberto. De uma maneira geral, o Brasil viveu uma ditadura militar violenta, que tolhia a liberdade, então é claro que todo o movimento pela redemocratização foi um movimento à esquerda do grupo da ditadura e, nesse sentido, as ruas estavam mais à esquerda após a ditadura. Então, de modo geral, esse ciclo após a nova República é um ciclo à esquerda em relação ao anterior.
Desde os governos FHC e Lula, determinados grupos sociais conquistaram uma série de direitos que antes eram vistos como privilégios das classes sociais mais abonadas. Determinados grupos se achavam acima dos demais e tiveram que começar a compartilhar espaços com os seus “subalternos”. Nesse sentido, muitos disseram que o aeroporto ficou parecendo uma rodoviária e que a filha da empregada passou a frequentar a faculdade de seus filhos. Não vou dizer que com isso houve uma redução das desigualdades, porque a desigualdade não foi reduzida, mas diminuiu a pobreza e as pessoas que eram de estratos sociais mais baixos passaram a ocupar estratos mais altos. Ao mesmo tempo, houve conquistas de direitos individuais e comportamentais de grupos como LGBT, o movimento negro, as feministas, os quais passaram a ter conquistas importantes e acabaram por pressionar uma mudança de percepção em relação a direitos e preconceitos que existiam no país.
Esses grupos que eram sistematicamente renegados deixaram uma parcela da população muito incomodada, porque essa parcela da população aprendeu que determinados preconceitos eram regras comuns. Isso mexe com as pessoas e elas passam a ficar incomodadas à medida que se mostra a elas que o mundo que elas conhecem não é o correto. Aí se começa a dizer que há uma ditadura do politicamente correto no país, o que é ridículo, porque se passarmos a chamar os direitos humanos de ditadura, começaremos a misturar dois conceitos. Além disso, se houvesse uma ditadura do politicamente correto no país, gays, lésbicas, homossexuais e mulheres não morreriam assassinados e negros não seriam mortos pela polícia. Então, há, de um lado, uma reação a determinados discursos e, ao mesmo tempo, a própria ideia da redemocratização começa a perder efeito, porque ninguém mais se lembra das lutas e das conquistas anteriores, que demandaram suor de tanta gente.
Junho de 2013 foi um momento ímpar, porque os jovens puxados pelo Movimento Passe Livre - MPL foram às ruas pela redução das tarifas do transporte público, mas não só isso; foram às ruas também pela participação na política, por novas formas de fazer política, pela participação do Estado, por políticas públicas etc. As pessoas foram para as ruas e houve uma catarse incendiada pela demanda de transporte público de qualidade e gratuito, a qual se transformou em outros pontos. As pessoas foram para as ruas protestar pela própria necessidade de protestar, sem saber ao certo pelo que estavam protestando, mas porque estavam insatisfeitas, indignadas, porque a vida delas melhorou nos governos Lula e Dilma, mas mesmo assim os jovens se sentem sem perspectiva. Se de um lado as pessoas percebem que ganham mais dinheiro, de outro as coisas estão mais caras, e elas não têm acesso à saúde e educação, porque a inclusão foi feita a partir da ideia de se ter um consumidor, e não um cidadão. Nesse sentido, a inclusão se deu a partir da inclusão de renda, mas não do serviço público de qualidade. Da mesma forma, não houve uma revolução na saúde e na educação. Na verdade, a qualidade de vida não melhorou significativamente. Deu-se importância para a renda como garantia de liberdade, mas a liberdade não é dada por meio do acesso à renda, e sim pelo acesso a oportunidades.
Na hora em que estourou essa manifestação na rua, esses grupos que já se articulavam na internet foram para as ruas para demonstrar sua insatisfação. Nesse sentido, junho de 2013 não foi um movimento violento, mas um movimento legítimo. Entretanto, ao mesmo tempo, como efeito colateral, a extrema-direita aproveitou-se do momento e acabou ocupando espaço, enquanto a esquerda partidária ficou com medo das ruas. Ela achou – e ainda acha - que os movimentos de junho de 2013 tramaram um golpe contra ela, não conseguiu entender até agora o que aconteceu naquelas manifestações e acabou jogando os jovens de bandeja para a extrema-direita, que, agora, os acolhe. Muitos dos jovens não organizados que estiveram nas ruas em 2013 acabaram caindo no colo desse pessoal, que entrega a eles uma narrativa. Se você observar, os jovens que apoiam o Bolsonaro são aqueles de escolas particulares de São Paulo, os quais acabaram criando coletivos que passaram a lutar por seus direitos. O que aconteceu? Esses meninos que aprenderam a vida inteira a ser machistas acabaram ficando com raiva daqueles que dizem que eles estão errados e com isso caíram no colo daqueles que os acolhem.
O conservadorismo sempre esteve aí, mas ele acaba aparecendo mais quando se tem uma balança de forças. A direita raivosa saiu do armário desde 2013, porque antes ela estava envergonhada com a narrativa de que ser de direita era ruim, porque tivemos uma ditadura de extrema-direita. Mas agora ela se 'desavergonhou', porque todo mundo ocupou a rua, e ela se aproveitou desse momento. Ao mesmo tempo, na sequência dessas manifestações aconteceu a eleição de 2014, que foi muito polarizada, com uso de mentiras de ambos os lados. Em seguida, aconteceu o impeachment e tirou-se uma governante do poder, colocando-se em pauta uma agenda liberal do ponto de vista econômico.
Temer continua comprando votos, aprovando leis que ajudam o poder econômico a manter privilégios ou a aumentar sua competitividade pela exploração do trabalho. As reformas não conseguem dar resposta à situação de crise, que é, em grande parte, culpa das decisões equivocadas de Dilma e do processo de impeachment. O que acontece é que a economia não cresce na velocidade que precisa, as reformas são antipopulares, o presidente tem 3% de aprovação e não cai, apesar de estar envolvido em uma série de “maracutaias”. Nesse contexto, a população acaba perdendo a fé na política, que é a principal e a mais bela das atividades humanas. Assim, a política começa a ser deixada de lado, porque ela está relacionada com os fatos que estão aí. Com isso, se gera uma imagem de que a política é uma lástima, a violência aumenta, o desemprego aumenta, as pessoas deixam de acreditar na democracia, e alguns grupos passam a se apresentar como salvadores da pátria para resolver todos os problemas do país.
Isso não acontece somente no Brasil. Basta ver as eleições na Alemanha, em que a extrema-direita obteve mais de 10% do parlamento; na França, Marine Le Pen disputou com o Macron; nos Estados Unidos, Donald Trump foi eleito presidente; na Inglaterra, o Brexit é um exemplo das posições anti-imigração, e junto com isso tem o discurso de que a imigração quer roubar os empregos. E o Brasil faz parte desse contexto internacional. Eu torço para que a população não desacredite da democracia, porque gostando ou não, esse ainda é o menos pior dos regimes.
IHU On-Line - Que relação podemos estabelecer entre a perda de inúmeros direitos constitucionais no Brasil, como a reforma trabalhista e a revisão nas demarcações de terras indígenas, e a onda conservadora que parece avançar sobre o país?
Leonardo Sakamoto – Essas forças agiram no impeachment de Dilma e colocaram Temer onde ele está para que ele pudesse executar as reformas mais pontuais, como a reforma trabalhista, que foi feita a toque de caixa, a aprovação da terceirização, da PEC do teto dos gastos etc. Além disso, há outras questões tramitando no Congresso, como a redução da maioridade penal, a transferência da demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional, e muitas leis que estão sendo alteradas para atender as demandas do poder econômico que financia o atual governo.
O grupo do Temer quer consumir o Estado para garantir que não sejam punidos, porque há um pacto material envolvendo a quadrilha do PMDB, que tem um acordo para alcançar o poder para, de um lado, se salvar e, de outro, beneficiar os seus financiadores de campanha. Na prática isso significa tirar dos pobres para garantir privilégios para os ricos. Ao mesmo tempo, temos que ver que o Congresso que está aí é um dos mais conservadores da história do Brasil. O Temer não tem nenhuma pretensão eleitoral, ele só não quer ser preso.
IHU On-Line - No seu último livro, você reflete sobre a intolerância materializada no ambiente da Internet. Como compreender esse recrudescimento a partir do ambiente digital?
Leonardo Sakamoto – A internet é uma plataforma de construção e reconstrução da realidade. A internet capitaliza processos, encurta distâncias, possibilita que a crise reverbere e que os intolerantes que já existem na sociedade sejam reverberados. O processo de intolerância existe nas sociedades, com ou sem internet. A internet capitaliza esses processos, e as redes sociais não são necessariamente bons lugares para fazer debate público, porque elas são boas para construir conceitos, mas não para construir significados coletivos. É difícil construir significados coletivos, porque isso depende do outro, e as redes acabam polarizando as discussões e criando bolhas. Nesse sentido, nós só vemos as postagens daquelas pessoas com as quais mais interagimos e concordamos. Então, a tendência é que se veja mais aquilo com o que mais se concorda.
O objetivo dos algoritmos é manter a pessoa mais tempo na plataforma, produzindo conteúdos e consumindo anúncios que são postados, ou seja, se deseja que a experiência seja a mais agradável possível, mas o debate público nem sempre é agradável, ao contrário, ele é dolorido. Nesse sentido, quando uma pessoa vê algo que diverge da sua visão de mundo, ela sente ódio, raiva, isso porque as pessoas tendem a considerar como verdade tudo em que elas acreditam, e tendem a achar que é mentira quando é algo de que elas discordam. Isso é natural. As pessoas não são programadas para pensar de forma diferente. Na prática, as redes sociais criam bolhas que podem se transformar em caixas de reverberação em torno de si, e fazem com que as pessoas não tenham acesso e não se importem com qualquer outro assunto que esteja fora da sua bolha.
A internet possibilita mais vozes, mas não necessariamente, à medida que temos mais vozes, caminharemos para uma democracia plural e tolerante. Se formos observar o caso recente que aconteceu em Charlottesville, veremos que aqueles grupos se organizaram via internet para prover ódio e intolerância. Então, podemos gerar uma sociedade mais polarizada on-line e off-line. Esse tipo de polarização também acontece no Brasil e, embora ela tenha dado uma arrefecida, vamos esperar o próximo ano eleitoral para ver o que acontecerá.
A questão é que as pessoas não querem mais discutir. Querendo ou não, quando existiam instituições que mediavam as relações, essas instituições poderiam ser processadas. Mas os grupos que veiculam informações falsas na internet e ganham dinheiro com anúncios e notícias falsos não são processados, porque isso é muito difícil e muitos deles são anônimos, atuam na surdina. O submundo da internet funciona sem assinatura, não tem endereço, age de forma anônima, motivado pela ignorância ou pela manipulação política ou econômica. A questão é que esse submundo da internet já é um grande formador de opinião e já está ultrapassando os veículos tradicionais. O mesmo acontece com o WhatsApp, uma rede fechada que muitas vezes veicula informações que não são reais, mas, como já disse, as pessoas se preocupam apenas com as informações com as quais elas concordam, independentemente de serem verdade ou não. De outro lado, as pessoas que querem construir consensos ou novas visões são vilipendiadas. Então, por enquanto, o objetivo da internet não é equacionar, e sim destruir o outro.
IHU On-Line – É nesse quadro que movimentos como o Movimento Brasil Livre - MBL ganham força e, inclusive, avançam de forma institucional e ganham assento no gabinete da prefeitura de Porto Alegre?
Leonardo Sakamoto – O MBL não é moralista; ele atua como um grupo de apoio político a determinados setores aos quais ele se aliou. Ele tinha um discurso antipetista, segue com esse discurso, mas agora passou a fazer alianças com grupos políticos e econômicos com o objetivo de conquistar poder, e acaba atuando como milícia digital. Ele tem o direito de atuar, como outros grupos também têm, mas muitas vezes ele tem apenas o objetivo de fortalecer aquelas ideias que o movimento defende e se fortalecer como grupo para atuar mais e mais.
Quem começou a manifestação contra o QueerMuseu em Porto Alegre não foi o MBL, e sim os grupos locais, inclusive esses grupos acusam o MBL de sequestrar a campanha que eles tinham feito. No entanto, o MBL se aproveita do momento e se vende nacionalmente como o responsável por essa ação, mas não foi assim que aconteceu. Eles se aproveitam do momento para surfar, para se afirmarem como representantes de um grupo social conservador. Essa ação não foi contra a arte, contra questões sexuais; foi uma ação para fortalecer o próprio MBL. Em SP eles fazem ações junto ao João Doria e atacam jornalistas que fazem denúncias contra a prefeitura, como os da Folha de S. Paulo. O MBL está disputando poder e atua com estratégias de milícia, de violência, de constrangimento para aumentar a participação junto aos grupos que representa e atende a interesses de determinados grupos.
O movimento pode se expressar, mas não tem o direito de ameaçar jornalistas, de censurar manifestações culturais e de usar o direito deles contra os direitos das outras pessoas. Esses movimentos falam que é permitido liberdade de expressão, mas não se pode usar o direito de liberdade de expressão, que é democrático, para atacar a própria democracia.
IHU On-Line - A crise política dos últimos anos no Brasil trouxe um desgaste muito grande ao PT e ao projeto de esquerda como um todo. Quais os desafios para a reinvenção de uma outra esquerda?
Leonardo Sakamoto – Primeiro, qualquer debate sobre o futuro da esquerda deve passar por uma discussão de autocrítica da esquerda do ciclo anterior, ou seja, é preciso identificar o que foi feito de errado pela esquerda petista e a esquerda em geral. A construção de um novo projeto de país precisa ser feita com os atores sociais, e não mais com heróis, mas tem que ser uma construção de baixo para cima, considerando todos os atores envolvidos, como a esquerda tradicional, a esquerda política e partidária, com uma nova esquerda ligada aos movimentos sociais, que já nascem numa categoria 2.0 e que fazem uma discussão identitária importante.
Sem considerar essa pauta identitária, não construiremos um novo projeto de país. Esse novo projeto tem que incluir os negros, as mulheres, a comunidade LGBT, os estrangeiros, as comunidades tradicionais. A realidade mudou, e o Brasil não cabe mais num projeto feito para o trabalhador do chão de fábrica. O trabalhador do chão de fábrica continua sendo importante, mas o Brasil não é só isso, portanto precisamos pensar outros elementos do ponto de vista da mobilidade etc.
A esquerda se recente de um projeto de segurança pública. Falar que é preciso simplesmente acabar com a polícia militar é reducionista. Tem que se pensar em um projeto a médio e longo prazo, a fim de enfrentar o genocídio negro e dos jovens. Então, uma solução passa também por pensar as questões ligadas à polícia. Também tem que se fazer esse debate dentro das comunidades que estão envolvidas com o tráfico, e não simplesmente o Estado achar que tem a melhor alternativa para resolver essa questão. Por isso, não se pode ter medo do debate. Também é preciso considerar os jovens que não se veem representados nem pelos movimentos tradicionais, nem pelos novos movimentos. É claro que muitas vezes eles têm ojeriza a movimentos e à política, mas eles são o futuro da política e precisam participar, ouvir e ser ouvidos.
Um projeto de esquerda tem que garantir direitos, não pode virar as costas para a população, ou seja, a esquerda vai ter que produzir um projeto que talvez seja menos revolucionário do que ela pensa e mais transformador do que hoje o Brasil é ou do que a esquerda apresentou até agora. Então, um projeto de esquerda passa pela redução real das desigualdades. Além disso, algumas pautas deveriam estar no projeto da esquerda: a reforma tributária com justiça social, o fortalecimento das políticas públicas, o reconhecimento dos direitos identitários, a centralidade do trabalho, que precisa ser enfrentada tanto em casos de trabalho escravo quanto de trabalho infantil.
Agora, a esquerda também tem que enfrentar uma reforma política, porque os jovens de 2013 queriam poder participar mais ativamente do país. Isso pode ser feito com mecanismos que não existem e que não foram criados ainda, que utilizem a internet e que garantam a participação mais direta e imediata da vida pública. Isso é fundamental e precisamos refletir e discutir a representatividade política, porque a democracia representativa, apesar de ter garantido uma série de coisas, não foi suficiente para garantir as respostas aos grandes problemas nacionais. Um projeto de país requer uma discussão sobre uma nova política, que leve à redemocratização da sociedade e dos partidos políticos, os quais atualmente funcionam como pequenos feudos. Ou seja, é preciso radicalizar a democracia no sentido de que a população possa ajudar a administrar os equipamentos públicos, no sentido de aproximar a política das pessoas e reduzir o poder dos representantes. Precisamos radicalizar a democracia a médio e longo prazo e trazer as pessoas para discutir. Se criarmos formas para isso, elas virão.
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Bolhas de intolerância não constroem significados coletivos. Entrevista especial com Leonardo Sakamoto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU