22 Setembro 2017
O fim inesperado da exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira no último dia 10, em Porto Alegre, parece já ter ficado distante. Mas o impacto da abreviação da mostra acabou reverberando em outras cidades do país, abrindo espaço para que outras obras e mostras tivessem seu conteúdo questionado, em um país onde, segundo o jornalista Lira Neto 93% da população nunca visitou uma exposição. Em Brasília, por exemplo, o Museu Nacional Honestino Guimarães, recebeu a visita do deputado Marco Feliciano (PSC) no dia 13 de setembro, seguindo a onda do Queermuseu. Segundo Feliciano, ele teria recebido denúncias de que o local abrigava “conteúdo semelhante ao do Santander Cultural”.
A reportagem é de Beatriz Sanz, publicada por El País, 21-09-2017.
Wagner Barja, diretor do Museu Nacional, não estava presente no momento da visita. Mas sentiu ali um gesto inusual. “Eu acho que a atitude de ir a um museu tentar censurar alguma coisa já é um mau sintoma. Eu não vejo com bons olhos”, declara Barja. A exposição em cartaz no Museu Nacional se chama Não Matarás — Em Tempos de Crise é Preciso Estar com os Artistas e traz obras críticas à ditadura militar brasileira.
A pouco mais de 1.000 km de distância dali, a exposição Cadafalso, em cartaz desde junho no Marco (Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande), com obras da artista mineira Alessandra Cunha Ropre, viveu seu momento de Queermuseu. No dia 14 de setembro, deputados da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul foram até a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca) e denunciaram a exposição, a artista Alessandra Cunha Ropre e a coordenadora do museu, Lucia MontSerrat, por apologia à pedofilia. “Ela é obscena, ela é absurda, ela é inaceitável!”, afirmou o deputado Dr. Paulo Siufi (PMDB), em relação à mostra em entrevista à TV ALMS.
Ao EL PAÍS, no entanto, o parlamentar suavizou o tom. “Eu não censuro ninguém. Eu acho que a arte deve ser liberada em todos os sentidos, desde que você coloque uma classificação de faixa etária compatível com as gravuras. Tanto que assim que o delegado chegou lá o museu colocou acima de 18 anos. E é o que nós queríamos, eu já me dava satisfeito por isso”, disse. A exposição teve uma de suas obras, nomeada Pedofilia, apreendida pela Depca para averiguação, porém o quadro foi devolvido no mesmo dia. Segundo o deputado, a ação da chamada “bancada da família” nada teve a ver com o ocorrido no Rio Grande do Sul.
A autora da obra, por sua vez, conta que só soube da apreensão quando foi procurada por um repórter de Campo Grande para comentar o caso. O deputado Paulo Siufi (PSC) chegou a pedir que o nome dela fosse adicionado na lista de pedófilos do Estado.
“É um absurdo! Eles entenderam completamente errado a pintura e a série toda. Na verdade, é uma crítica ao machismo”, afirma a artista, defendendo sua criação. Para ela, a apreensão de sua obra está sim relacionada ao término da exposição gaúcha.
O choque de Alessandra Ropre com a apreensão de sua obra foi, de certa forma, compartilhado por Natalia Mallo, diretora da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, quando recebeu a notícia que a apresentação no SESC Jundiaí, em meio à comemoração da 4ª Semana da Diversidade Sexual da cidade, havia sido cancelada por uma ordem judicial. O roteiro proibido pela justiça narra a história de Jesus Cristo que voltou à Terra no corpo de uma travesti, vivida pela atriz Renata Carvalho. “A gente já sabia que tinha uma polêmica na cidade, mas a questão da liminar foi uma surpresa”, relata ela, que vem lidando com protestos, insultos e ameaças desde que a produção estreou, no ano passado.
A peça vem rodando várias cidades do país. Sua apresentação na mostra de Jundiaí estava prevista para o dia 15, mas a liminar impediu a exibição naquele dia. O SESC, porém, está recorrendo da decisão.
A resistência à peça de Renata Carvalho chegou também a Porto Alegre. Ali, outra ação chegou à Justiça contra a obra, no dia 19, mesmo dia em que a peça estava em exibição. Mas o juízo, desta vez, foi diferente. O magistrado José Antonio Coitinho afirma em sua sentença que “não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão te que ser garantida — e não cerceada — pelo Judiciário”.
O texto escrito pela teatróloga britânica Jo Clifford não foi o único que enfrentou a justiça jundiaiense. O espetáculo infantil A princesa e a Costureira, baseada no livro homônimo de Janaina Leslão, não chegou a ser proibida, mas teve a classificação indicativa alterada para que apenas pessoas com mais de 18 anos pudessem assistir. Todavia, pais e mães inconformados com a decisão levaram seus filhos para assistir à encenação que aconteceu no Complexo Fepasa. Foi o caso de Alexandre Vasques, programador que vive em Jundiaí e levou seus filhos Magali, 11, Maitê, 7 e Joaquim, 5, para verem a apresentação. “Não há nada que não se possa ver na peça, muito pelo contrário, é amor, é respeito, é afeto. A arte precisa incomodar, precisa tirar a gente dessa posição medíocre”, argumenta ele, que viu nesse movimento um efeito bumerangue. “Esse conservadorismo serviu para juntar as pessoas que estão preocupadas com isso, não só as que fazem parte da comunidade LGBT, como é o meu caso. Não faço parte, mas eu me solidarizo e levei meus filhos, o que criou uma experiência muito rica”, conta.
O Tumblr Criança Viada sofreu consequências diretas advindas do fechamento da Queermuseu. As obras da artista plástica Bia Leite que estavam na mostra são baseadas em imagens da página que foi criada em 2012 e traz fotos de pessoas que apresentavam trejeitos não heteronormativos na infância. As fotos eram enviadas pelos próprios seguidores da página, que estava desativada desde 2014.
Como resposta ao término da exposição, o criador da página Iran Giusti a reativou no último dia 13 de setembro. Entretanto, a plataforma começou a receber denúncias de que se tratava de pedofilia e a página foi tirada do ar. O criador do Criança Viada, que é também organizador da Casa 1 (lar que abriga pessoas homossexuais e transexuais que foram expulsos de casa), entrou então em contato com o Yahoo, empresa dona do Tumblr, e a página foi restabelecida. As denúncias contra o conteúdo continuaram e o Criança Viada foi derrubado mais uma vez, mas o Tumblr colocou de volta no ar, logo na sequência. Iran então cobrou do site um pedido formal de desculpas por tê-lo acusado, mesmo que não judicialmente, por pedofilia. A solicitação não foi atendida pelo Tumblr, então ele decidiu processar a plataforma e também o MBL (Movimento Brasil Livre). “Até sexta-feira, dia 15, eu contabilizei 90 postagens do MBL no Facebook que afirmavam que a exposição e a obra da Bia Leite tinha apologia à pedofilia. E eu entendo pela obra conter meus textos, a minha imagem, a minha criação, eles estão afirmando diretamente que a minha produção é pedofilia”, ressalta.
Iran relata ainda sua preocupação em relação ao conteúdo continuar suscetível a ataques. Ele afirma que procurou Tumblr, Facebook, Instagram e ferramentas menores, mas que nenhuma das plataformas ofereceu segurança para que o conteúdo não saísse do ar caso houvesse um número muito grande de denúncias. Além de procurar o apoio das gigantes de tecnologia, o criador do Criança Viada procurou empresas de outras áreas que pudessem financiar um programador e um domínio próprio para o site. Segundo ele, quase todas as companhias procuradas se anunciam como LGBT friendly, porém não se interessaram por financiar o projeto. As duas únicas empresas que se sentiram sensibilizadas pela ação trabalham com bebida alcoólica. Segundo ele, não faria sentido ter um projeto que usa imagem de crianças financiado por empresas que tem como alvo o público adulto.
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A onda ‘QueerMuseu’ tentou cercear outras obras. Mas encontrou resistência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU