24 Março 2017
Empresas e políticos acusados de explorar trabalhadores costumam invocar terceiros para justificar os flagrantes da fiscalização.
Há um roteiro previsível nas notícias sobre políticos envolvidos em denúncias de trabalho escravo. Regra número 1: eles não sabiam de nada. Alegam responsabilidade das empresas “terceirizadas”. Regra número 2: ao contrário do que ocorre com outros proprietários de terra, eles logo têm seus nomes retirados da lista suja do trabalho escravo – ou nela nem são incluídos.
A reportagem é de Alceu Luís Castilho e publicado por De Olho nos Ruralistas, 23-03-2017.
Essas são as palavras que abrem o capítulo sobre trabalho escravo do livro Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro (Contexto, 2012). É o capítulo mais longo do livro – de minha autoria. Diante da aprovação nesta quarta-feira (23/03), pela Câmara, do projeto que libera a terceirização para todas as atividades, vale copiar alguns trechos:
Aos 88 anos, um dos políticos mais ricos do Congresso, o capixaba Camilo Cola (PMDB) teve 21 de seus trabalhadores libertados por equipes da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho, em outubro de 2011. Eles estavam em uma fazenda do Complexo Agropecuária Pindobas, do Grupo Itapemirim. Cola [que, em 2017, não é mais deputado] é dono de uma fortuna de R$ 259 milhões. Possui dezenas de imóveis rurais, empresa agropecuária etc.
A situação era a mesma encontrada nas regiões mais pobres do país: falta de água potável, esgoto a céu aberto, falta de eletricidade, comidas, roupas e remédios misturados no mesmo espaço.
O procurador Djailson Rocha, do Ministério Público do Trabalho, definiu a situação, ao jornal O Globo, como subumana: “É inconcebível que no século XXI existam pessoas trabalhando nestas condições, que não são humanas”, disse.
A desculpa do deputado foi a de sempre: trabalhadores eram de uma terceirizada – no caso, a Cute Empreiteira Ltda.
O radialista Beto Mansur [hoje deputado federal] foi prefeito de Santos entre 1997 e 2004. Em 2005, suas fazendas em Bonópolis (GO), a Triângulo e a Terra Boa, foram fiscalizadas. O Grupo Móvel libertou 46 trabalhadores. Entre eles, 7 menores.
O patrão descontava R$ 10 por dia pelas refeições. Dormiam em chão batido, bebiam água suja, não tinham dia de folga. Um deles era encarregado de pulverizar veneno, sem máscara e sem luvas. Intoxicou-se.
“É uma situação deplorável”, avaliou Mansur após a divulgação do caso. “Os funcionários que estavam lá acabaram contratando mais gente para agilizar o serviço sem minha autorização”.
Em Davinópolis, o prefeito Francisco Lima, o Chico do Rádio (PDT), declarou um patrimônio de R$ 4,5 milhões. Propriedades rurais, duas: uma de R$ 1 milhão, outra de R$ 2 milhões. Em 2006, 20 trabalhadores foram libertados de uma delas, no município de Bom Jardim. A área fica dentro da Reserva Biológica de Gurupi, área de preservação ambiental. A atividade, extração ilegal de madeira.
O grupo e fiscalização apreendeu dez motosserras. E espingardas. Macacos e tatus mortos completavam o cenário. Os trabalhadores ficavam alojados (mais uma vez) em um curral. O salário sempre chegaria “no dia 10”. Mas nunca chegava.
Ainda no Maranhão, um ex-prefeito de Açailândia, o médico Gilson Freire de Santana, teve 19 trabalhadores libertados. Um deles tinha 17 anos. Quinze deles dormiam onde? No curral, em redes, ao lado de ratos, do gado e de agrotóxicos. Às três horas da madrugada, o vaqueiro chegava gritando com os bichos, e ninguém conseguia mais dormir.
Santana é dono de um hospital em Açailândia, chamado Santa Luzia. Mas no alojamento de sua fazenda não havia sanitários nem chuveiros. Tomavam banho de caneca. Em entrevista à repórter Bianca Pyl, a auditora fiscal Márcia Albernaz, do Ministério Público do Trabalho, sintetizou a situação da seguinte forma: “O empregador igualou os trabalhadores aos animais que possui”.
Em Rondon do Pará, a multa para Idelfonso Abreu Araújo (PP) foi de R$ 53 mil. Ele era prefeito de Abreu Figueiredo, município vizinho, quando a fiscalização resgatou 21 trabalhadores de sua fazenda de 7,2 mil hectares, em 2006. Diante da mata densa e do terreno íngreme, não conseguiam atingir as metas de produtividade, e por isso recebiam cerca de R$ 100 por mês – menos do que as dívidas.
A caderneta dos trabalhadores registrava dívidas de até R$ 800. Ninguém tinha carteira de trabalho. Em setembro daquele ano uma tora caiu nas pernas de um homem de 24 anos. Ele morreu a caminho do hospital, após esperar o transporte, perdendo sangue por cinco horas. Pecuarista e dono de serraria (o desmatamento era ilegal), Abreu pagou a indenização de R$ 53 mil. O nome de sua fazenda? “Jesus de Nazaré”.
Outro senador que costuma dizer que foi inocentado é Jayme Campos (DEM-MT), dono de mais de 32 mil hectares no Mato Grosso. Mas ele assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho em 2006. Não houve flagrante: 15 pessoas contaram que trabalhavam em condições degradantes na Fazenda Santa Amália, em Alta Floresta.
O TAC foi assinado em 2008, com trinta exigências. Entre elas, não alojar trabalhadores em barracos de lona; oferecer proteção e transporte adequados; oferecer repouso semanal remunerado; garantir água potável. Caso não houvesse acordo, seria movida uma ação civil pública, com base nos testemunhos dos trabalhadores.
O senador negou as acusações. Disse que três pessoas teriam denunciado a propriedade como uma forma de chantagem, para receber horas extras. Segundo Campos, as condições dos trabalhadores regulares eram normais. “Não registrar hoje pode sair bem mais caro do que registrar”, afirmou. “Só não tem ar-condicionado”.
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No campo, terceirização é álibi para o trabalho escravo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU