Nicarágua: o orteguismo e o abuso do poder de Estado

Protestos na Nicarágua | Foto: Reprodução do Medium de La Tizza

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

31 Agosto 2018

“Os postos de trabalho são muito vinculados às indicações políticas da “FSLN de Daniel”, sendo o Estado em seus níveis de governo o maior empregador do país. Isso vincula a “participação nominal” às necessidades imediatas e o seguidismo. A justa tradição beligerante do sandinismo vem sendo apropriada pelo orteguismo, o que implica em repressão massiva, desaparecimentos e assassinatos seletivos”, escreve Bruno Lima Rocha.

Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia, doutor e mestre em ciência política, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; graduado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, professor nos cursos de relações internacionais e jornalismo na Unisinos.

O artigo foi publicado, originalmente, na revista IHU On-Line, no. 527 que pode ser acessada aqui.

Eis o artigo.

No século XXI retorna ao Poder Executivo uma força política cuja trajetória dista do exercício atual de governo. Trata-se da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), fundada em 1961 para combater a dinastia do clã dos Somoza — general inventado, armado e treinado nos EUA — e sua Guarda Nacional. O termo “sandinista” vem obviamente do exemplo de Augusto César Sandino, militante social que se transforma em líder guerrilheiro estando à frente do Exército Defensor (1927-1934), peleando justamente contra a invasão estadunidense ao país dos cinco vulcões. Sandino perdeu apenas para si, pois sua força beligerante começa com 34 combatentes — a maioria composta de indígenas mizquitos — e conclui com mais de 6 mil voluntários e a retirada das tropas imperialistas do país. Em 1934, convocado para uma reunião de “paz” com Somoza, é assassinado junto ao seu Estado-maior. Sandino até hoje marca a cultura política do país.

Daniel Ortega estava à frente de um dos três setores da FSLN e foi eleito presidente em 1984, quando a Nicarágua sandinista caminhava para uma versão de socialismo com democracia. Da vitória de 1979 até esta data, o país foi governado por uma junta indicada pelo Conselho de Estado, um parlamento com partidos e forças sociais após Somoza. Ortega não foi reeleito, perdendo para a conservadora Violeta Chamorro. “Dona” Violeta concorreu pela União Nacional Opositora, frente ampla de centro-direita que ia da espinha dorsal composta por forças que hoje compõem o Partido Conservador Nacionalista (PCN), até frações de esquerda não sandinista, como o Partido Socialista (social-democrata), Partido Comunista (linha de Moscou) e os antigos rivais Liberais. Em fevereiro de 1990 o governo em Manágua se realinha com Washington, rendendo-se ao imperialismo.

A conservadora Chamorro foi sucedida por dois liberais do PLC; primeiro com Arnoldo Alemán em 1996 e depois, em novembro de 2001, com Enrique Bolaños. Nas eleições de 2006, 2011 e mais recentemente 2016, ganhou Daniel Ortega, sendo que a vice-presidente, Rosario Murillo, veterana intelectual filiada a FSLN desde 1969, também é a primeira-dama. Desde o primeiro governo Ortega no século XXI que o Estado da Nicarágua é atravessado pelo “sandinismo de Daniel”. A presença política é tanto visual — com os emblemas da Frente pintados em ruas, dezenas de monumentos por municípios e a bandeira do partido ao lado da nacional — como também no controle dos postos-chave. A FSLN foi vitoriosa em 125 municípios, os conservadores do PLC em 11, a Aliança Liberal Nacionalista (ALN) em um e o Cidadão pela Liberdade (CxL) ganha em quatro, mas não leva, sendo impugnadas e destinadas para rivais políticos.

A reforma da Previdência e a revolta popular

No dia 18 de abril o presidente da Nicarágua Daniel Ortega (eleito em 2006, reeleito em 2011 e eleito novamente em 2016) assinou uma medida semelhante à Reforma da Previdência. Esta, diferentemente da brasileira, partiu de exigências vindas de acertos com organismos internacionais, especificamente o FMl. A reforma continha o aumento na contribuição de trabalhadores, que passaria de 6,25% para 7%; sendo que os aposentados passariam a ter uma dedução de 5% da sua pensão para cobrir despesas médicas. As empresas também seriam afetadas. A proposta do governo era fazer um aumento progressivo nas contribuições das companhias privadas, dos atuais 19% para 22,2% em 2022. Supostamente, a razão do decreto presidencial seria arrecadar cerca de Usd 254 milhões de dólares e assim resgatar o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). E parte da confusa retórica policlassista vinda dos protestos vêm do fato da sobretaxa atingir trabalhadores e empresas.

A revolta popular foi imediata e, ao contrário do que se especula, sendo basicamente autoconvocada. As mesmas bases sociais que foram o berço do sandinismo, como os estudantes universitários de Manágua (concentrados na UNAN), ou redutos históricos como León, Chinandega e em especial o município de Masaya, se levantaram contra esta medida autoritária. Cinco dias e 30 mortos depois, o presidente que usurpa o legado do sandinismo, controla o partido FSLN (e a maior oferta de postos de trabalho no país através de indicações políticas sem concurso), prepara sua esposa e vice-presidente Rosario Murillo como provável sucessora (as próximas eleições seriam em agosto de 2021), reabilita controvertidos contra revolucionários como o criminoso Éden Pastora, alias Comandante Zero (ex-dirigente da Contra na Costa Rica) e não hesita em reprimir de forma ilegal acionando paramilitares, é derrotado.

No dia 22 de abril Ortega recua da decisão e não aplica a “reforma” da Previdência. Mas, a partir desta luta pontual, houve um conjunto de ressentimentos, sensação de bloqueio ao acesso aos recursos públicos e uma confusa sensação de povo traído por um ex-guerrilheiro autotransformado em dirigente máximo, comandando um governo autoritário de base familiar e clientelista. De abril para cá ultrapassam as 400 mortes, mais de 200 desaparecidos e 1200 feridos. Há uma sensação de absoluta insegurança no país. Ao mesmo tempo, em escala latino-americana, o aparelho de propaganda do orteguismo vincula seu governo às tradições sandinistas, o que não corresponde de forma alguma. Passa de uma centena a lista de dirigentes históricos críticos a Daniel, tanto da geração que enfrentou a Somoza por quase vinte anos, quanto o pioneirismo dos anos ’80, quando voluntários enfrentaram a Contra nas fronteiras de Honduras e Costa Rica.

O governo de Ortega pode ter perdido legitimidade internacional e há sim a presença parasitária e aproveitadora da oposição à direita, mas as condições de impor a vontade através das forças repressivas de Estado continuam. O legado sandinista se vê manipulado por uma dinastia familiar e o controle dos postos de trabalho; eis a encruzilhada da luta popular nicaraguense.

Expediente

Coordenadores do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.) e Profª Drª Nádia Barbacovi (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.).

Leia mais