A partir do projeto que quer minerar carvão nas margens do rio Jacuí e quase dentro de Porto Alegre, jornalista reflete sobre fissuras no tecido social que gera degradação humana e ambiental
Existe uma máxima popular que diz que quem vive no estado mais ao sul do Brasil tem certa empáfia que faz achar que o Rio Grande do Sul é melhor em tudo. E há, ainda, quem justifique com sua versão da História. Mas fato é que o RS já foi realmente pioneiro no que diz respeito à legislação ambiental. Agora, como bem lembra o jornalista e escritor Flávio Tavares, “estamos nos tornando pioneiros no atraso. Somos a locomotiva rebocando os vagões do atraso”. Um exemplo é a insistência do governo do estado em reinvestir na exploração de carvão mineral.
Do alto de seus 87 anos, Flávio voltou a viver no estado, em Porto Alegre, mas está longe da efetiva aposentadoria. Segue escrevendo para jornais e tem se dedicado a uma luta em especial: impedir que o projeto de construção da Mina Guaíba saia do papel. “É um projeto totalmente obsoleto e não somente por uma questão tecnológica. Há muitos anos já se descobriu o malefício do carvão. É como se fôssemos substituir a energia elétrica pelo lampião a querosene”, dispara.
Para ele, o projeto de uma nova Mina é muito mais, pois é a prova de como o que chama de sociedade de consumo tem destruído o meio ambiente e a si mesma. “É devido à vulgarização da sociedade de consumo. Volto a essa ideia, faço disso um cavalo de batalha porque acho fundamental. A oferta de bens de consumo nos tira da realidade profunda. Não oferecemos refrigerante porque é melhor do que água. Oferecemos porque dá lucro, gera empregos”, pontua.
Na fria manhã de sexta-feira, 30-07, Flávio se dedicou a uma longa conversa com o Instituto Humanitas Unisinos - IHU através do Zoom. O encontro, tipificado por ele como a ‘primeira live da vida’, era para sabermos mais sobre a Mina Guaíba, mas o velho jornalista revelou que para compreender esse empreendimento é preciso conectar as crises que temos vivido. Além disso, fala sobre a experiência e como as novas gerações desprezam esse valor. “Precisamos ter a experiência para reconhecer que o que vale é a própria experiência. Sempre digo que na magistratura a Justiça decide nossas vidas dizendo o que é correto e incorreto. Mas veja que um juiz, por melhor aluno que tenha sido na faculdade, não pode assumir essa função com 22 ou 23 anos de idade”, reflete.
Por fim, fala sobre o cenário político nacional e confessa que vê com muita tristeza os flertes que se tem tido com a ideia de que a saída é uma reedição do golpe de 1964. Preso e torturado barbaramente durante o regime militar, Flávio desabafa: “só pode querer a ditadura quem não conheceu a ditadura ou quem tem uma visão ingênua, porque ninguém pode ser tão maldoso. Não acredito que haja ser humano maldoso ou em sã consciência que possa falar em retomada da ditadura, volta da ditadura ou sequer dessas medidas que a ditadura trouxe”.
Flávio Tavares (Foto: Arquivo TVE RS)
Flávio Tavares é formado em Direito, mas tem uma vida dedicada ao Jornalismo. Integrou o grupo fundador da Universidade de Brasília - UnB, da qual é professor aposentado. Colunista político em Brasília nos anos 1960 da antiga rede de jornais Última Hora do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre, foi preso e banido do Brasil em 1969 durante a ditadura militar. Exilado no México, foi redator do jornal Excelsior e, depois, seu correspondente e de O Estado de S. Paulo em Buenos Aires, Argentina, e em Lisboa, Portugal. Na volta do exílio, foi editorialista de O Estado de S. Paulo. É autor de seis livros, dois deles, Memórias do Esquecimento (Porto Alegre: L&PM, 2012) e O dia em que Getúlio matou Allende (Porto Alegre: L&PM, 2014), receberam o Prêmio Jabuti de Literatura. Atualmente, Flávio é articulista dos jornais O Estado de S. Paulo e Zero Hora.
IHU – Como compreender o que leva o Rio Grande do Sul a voltar a apostar em empreendimentos que exploram o carvão mineral, como o da Mina Guaíba?
Flávio Tavares – É um projeto totalmente obsoleto e não somente por uma questão tecnológica. O problema é que há muitos anos já se descobriu o malefício do carvão. É como se fôssemos substituir a energia elétrica pelo lampião a querosene. É inexplicável o atraso ao qual estamos sendo submetidos no Rio Grande do Sul, um estado que tinha uma legislação avançadíssima citada até mesmo na Europa.
Tudo começou com a mudança proposta pelo atual governador [Eduardo Leite] do Código Estadual Ambiental do Rio Grande do Sul, que foi um código elaborado durante dez anos, ouvindo todos os setores da sociedade – porque, afinal, meio ambiente envolve toda a sociedade. A partir dessa alteração no Código, a situação é cada vez pior, porque as questões ambientais, por parte do poder público, se deterioram. É como se estivéssemos brincando com o meio ambiente, como se o planeta fosse um brinquedo.
Essa questão é tão complexa que envolve até aqueles que não nasceram e, apesar disso tudo, há um descaso crescente com o meio ambiente no Brasil, que, inclusive, começa com o governo federal e passa aqui pelo governo estadual. O grande exemplo é justamente este, essa mina de carvão a céu aberto que se pretende fazer em terreno de banhados a 900 metros do rio Jacuí e é apresentada como grande fator de independência econômica do Rio Grande do Sul. Isso é uma farsa, pois é justamente o contrário, só vai trazer problemas brutais, inclusive, em toda a área metropolitana. Afinal, corre-se o risco de transformar o rio Guaíba, que abastece a área metropolitana, num fétido lago de águas podres.
(Mapa cedido por Rualdo Menegat)
IHU – Como podemos entender uma lógica de um estado que foi pioneiro na legislação ambiental, como o senhor coloca, e agora promove todos esses retrocessos?
Flávio Tavares – É uma questão que não tem explicação. Como disse, é como substituir a energia elétrica pelo lampião a querosene. Quando a tecnologia e todas as conferências internacionais e até o Papa adverte para os riscos da cobiça financeira e o quanto isso pode comprometer o meio ambiente, dizendo que estamos mudando a concepção da vida e do próprio mundo, quando o secretário da ONU faz alertas sobre a situação do momento e a necessidade de até 2030 superarmos certos limites, aqui, no Rio Grande do Sul, e também em toda a gestão governamental federal, se pensa num retrocesso. Estamos nos tornando pioneiros no atraso. Somos a locomotiva rebocando os vagões do atraso.
IHU – Como o senhor tomou conhecimento do projeto de instalação da Mina Guaíba e como foi esse seu primeiro contato com o projeto?
Flávio Tavares – Tomei conhecimento de uma forma indireta através de funcionários do Ibama que me advertiram para a possibilidade de haver uma perda da área aquática do Guaíba e toda sua região. A partir daí fui pouco a pouco estudando o assunto e em janeiro deste ano, nos meus artigos de fim de semana nos jornais, a partir do desastre de Brumadinho, lancei a ideia de que estávamos preparando aqui no Rio Grande do Sul um desastre parecido, mas com a chamada Mina Guaíba em terreno de banhado. Eles até citam como exemplo a Mina de Butiá, mas que não fica em terreno de banhado, é totalmente diferente. Perguntei isso até mesmo para o representante da mineradora Copelmi [empresa que quer construir e operar a Mina Guaíba], numa audiência pública, e ele mesmo concordou comigo que havia diferenças geológicas entre os casos.
Serão 23 anos de durabilidade de extração, que vão gerar 166 toneladas de carvão. O carvão reage com o oxigênio e a água. Assim, as constantes explosões vão causar muitos danos à saúde, especialmente pelo material particulado, que é aquele pó que vai circular e é muito daninho para a saúde. Houve até advertências do Conselho Regional de Medicina - Cremers, que tem feito reiteradas advertências sobre isso, mas nós não temos nenhuma solução para esse problema.
IHU – Há contra-argumentos a esses que o senhor fala, que dizem que essa exploração será tecnológica e que não deve gerar todos esses impactos ambientais. Como o senhor vê essas respostas?
Flávio Tavares – É um argumento falacioso. Em termos bem populares: é uma mentira. E isso inclusive do ponto de vista geológico. Temos um grande geólogo aqui, o professor Rualdo Menegat, que tem advertido para isso. Ele sempre lembra que o carvão é um lixão químico.
As novas tecnologias que a mineradora apresenta dizem respeito a um terreno que não tem nada a ver com o terreno destinado a essa eventual mina de carvão a céu aberto. Dizem que não vai haver barragens como no caso de Brumadinho e que haverá cavas, mas o controle da água não é fácil. Vai acabar sendo descarregada uma grande quantidade de resíduos no rio Jacuí. Bem, o Jacuí é o principal afluente do Guaíba, e a área metropolitana se abastece da água do Guaíba. O Delta do Jacuí, que funciona como um filtro, vai ser afetado totalmente. Serão dois milhões e 400 mil toneladas de enxofre na superfície do terreno.
Como diz o professor Rualdo Menegat, esse lixão químico é perigoso porque há no carvão metais pesados e será como um ácido sempre vazando. Com isso, estamos preparando um futuro terrível, pois 10, 15 ou 20 anos passam rápido e temos que cuidar do planeta não só para nós, apesar de estar à mercê de nossos cuidados, mas para as gerações futuras. E ele merece esses cuidados porque não há um ‘planeta b’, não é como um pneu sobressalente de um carro. Não temos um planeta que pode ser trocado, temos que mudar a concepção sobre o mundo, sobre a vida.
IHU – Há um discurso que endossa essas empresas e que fala de desenvolvimento regional e geração de emprego e renda. Como os propagadores desse discurso têm reagido a suas colocações?
Flávio Tavares – Esse argumento do desenvolvimento é também falso e mentiroso, porque não se pode desenvolver pensando apenas na cobiça, ou apenas no dinheiro que esse empreendimento vai gerar. Eu não conheço mineração em que o povo seja rico. A grande empresa exploradora sempre tem imensos lucros e é rica em si mesma, mas o povo não é rico. Pelo contrário, se quisermos calcular em termos de dinheiro, o custo que teremos na saúde é maior do que tudo.
O estado vai arrecadar, mas vai arrecadar muito pouco, porque a mineração é dispensada do pagamento de uma série de impostos, não paga nem PIS/Pasep, que todo pequeno empresário é obrigado a pagar. Como o Brasil sobreviveu durante a colonização por meio do minério, as empresas do setor têm um tratamento diferenciado que facilita o lucro e por isso são tão procuradas. Além disso, haverá muitos custos na saúde da população.
Não há nada que pague a saúde humana e da flora e fauna, que aliás também são fundamentais para a saúde humana. Ninguém pode viver num deserto e querem nos transformar num deserto, inclusive, num deserto aquático, pois o Guaíba, como disse, pode virar um imenso lago de águas podres. Vamos ter de nos banhar com água mineral.
IHU – E quem não puder pagar por essa água mineral...
Flávio Tavares – [Irrompe em tom áspero] Isso é um verdadeiro absurdo! Vamos nos banhar com água mineral? Isso não existe. E esse desenvolvimento que estão nos apresentando vai também nos transformar em água podre. Os lençóis freáticos serão afetados, vão desviar dois arroios. Um deles é o Arroio Jacaré, que se chama assim porque ali havia jacarés e hoje já não tem mais nada. Aliás, existe um preconceito contra o jacaré, mas ele é fundamental para o meio ambiente. Não há nada que seja dispensável.
IHU – E como foram as reações que chegaram até o senhor com todas essas denúncias?
Flávio Tavares – Recebi muitas manifestações, mas a maioria delas é de apoio às minhas posições. Inclusive, conheci pessoas que jamais pensei que pudessem ser tão atentas a denúncias sobre meio ambiente e isso me fez acreditar mais no ser humano. Parece uma grandiloquência isso que estou dizendo, mas é verdade. Parece que nem tudo está perdido no Rio Grande do Sul e nem no Brasil.
Para ficar só no Rio Grande do Sul: há uma série de grupos preocupados com essa mina, pois o meio ambiente não é um problema só dos ambientalistas. O problema é de todos nós. A própria Constituição Federal assegura o direito ao Meio Ambiente, pois sem ele não há vida e isso é um detalhe que é um emblema da situação atual do planeta. As crises climáticas estão aí, e a crise que estamos vivendo neste momento tem de ser solucionada de uma forma drástica.
Gosto sempre de destacar que quem chama muito a atenção para isso é o Papa. Aliás, o Papa, a ONU, [Joe] Biden, novo presidente dos Estados Unidos, que criou um ministério especial para o meio ambiente, e John Kerry, que assinou pelos Estados Unidos o Acordo de Paris. E, para ficar na parte burocrática, nós estamos desrespeitando inclusive os acordos internacionais que o Brasil firmou, ou seja, há um desrespeito absoluto e crescente com relação ao meio ambiente.
IHU – Importante destacar isso que o senhor coloca, de que a Mina Guaíba não será apenas um problema para o Rio Grande do Sul.
Flávio Tavares – Não há fronteiras para o meio ambiente. As minas de Candiota invadem, com o material particulado, o Uruguai. Ou seja, não há uma barreira nacional para destruição do meio ambiente, que é um problema global, afeta todos e até os esquimós no Ártico. Já basta o chamado derretimento das calotas polares, que é lento mas efetivo, pois os mares tendem a subir e inundar até as praias.
(Mapa: Unipampa)
Na Antártida, ao sul do planeta, cada vez há menos ‘terra branca’ pelo derretimento sucessivo do gelo. Isso é perigosíssimo e se deve a ações como essa de proliferação do carvão, que também emite muito carbono e por isso está sendo eliminado no mundo inteiro. Menos aqui no Rio Grande do Sul, em que um absurdo é apresentado como um grande feito, o de ser o maior explorador de carvão do país. Isso é tão absurdo quanto festejar a prostituição sob o argumento de que ela dá lucro. Existem alguns absurdos que poderiam ser corrigidos pelo bom senso, nem precisaria de dados técnicos.
IHU – O senhor lembrou que esse projeto da Mina Guaíba tem relação com o desmonte do Código Ambiental, que já vinha em curso. Nesse mesmo contexto, está a liberação, por parte do governo gaúcho, de agrotóxicos que não são usados em nenhum outro lugar. O que pensar desse projeto de governo?
Flávio Tavares – Repito o que já disse e parece óbvio, mas tem de ser repetido: isso é inexplicável. Estamos vivendo no Rio Grande do Sul um retrocesso que, sob certos aspectos, é mais daninho do que o retrocesso nacional que estamos vivendo quanto ao meio ambiente. Mas isso também porque estávamos muito mais avançados do que a área federal. Tínhamos nos dado conta e descoberto coisas que a área federal só descobriu anos depois. A situação atual é uma volta a um passado que jamais deveria ter sido lembrado. Estamos tomando o meio ambiente como um inimigo, como se fosse um estorvo para a vida humana. E a vida do planeta não consiste apenas na vida humana, é a vida da natureza em si e tudo está conectado.
O que vemos é, inclusive, a destruição da obra divina da criação, e toda evolução humana está sendo deixada de lado na sua compreensão mais profunda. Por isso precisamos voltar à questão da Mina, que é uma grande ameaça ao Rio Grande do Sul e ao meio ambiente, e que vai jogar por aí metais pesados como chumbo, cádmio e arsênio, pois esses são componentes do carvão.
IHU – Nas suas colunas e textos em jornais o senhor trouxe o exemplo de Santa Catarina, dizendo que o Rio Grande do Sul tem muito a aprender com o estado vizinho. Gostaria que retomasse essa relação.
Flávio Tavares – Santa Catarina viveu uma mentira durante anos com a exploração do carvão. Era considerado o estado carbonífero do país, basta conhecer Criciúma no auge do carvão como eu conheci. Era uma cidade triste e doentia, com os telhados das casas e mesmo o reboco externo infestado de fuligem, o material particulado do carvão brutalizando-se.
: Localização de Criciúma, no estado de Santa Catarina | Mapa: Wikipédia
Isso levou à compreensão do que era aquela situação e os catarinenses estão, nesse aspecto, muito mais na frente do que todo o país, pois estão terminando com o carvão. Eles têm a maior usina termelétrica do país movida a carvão e vão, pouco a pouco, passar a alimentá-la com fontes renováveis. É uma coisa lenta, que não pode ser de uma hora para outra, mas é o exemplo que está nos dando. E essa tomada de consciência foi a partir do desastre que o carvão propiciou naquela região que nunca cresceu. Mas veja como nem isso nos serve como exemplo aqui no Rio Grande do Sul.
Sinceramente, não se pode entender esse apego ao atraso que nessa área ambiental tomou conta do governo atual do Rio Grande do Sul. Éramos exemplo não só para o país, mas também para o mundo. A legislação ambiental antiga do Rio Grande do Sul era citada até na Alemanha. Aliás, a chamada Mina Guaíba que querem implantar aqui se baseia numa mina alemã que agora foi invadida pelas águas das últimas tempestades por lá. O grande problema das enchentes na Alemanha atualmente, que inclusive é oriundo das mudanças climáticas, foi a invasão das cavas das minas. Essas cavas são muito parecidas com as que querem fazer aqui, mas a vantagem lá foi que a mina não estava próxima de grandes rios, nem era em terreno de banhados como é aqui. Isso desmonta a tese de que essa pretendida mina é inviolável.
IHU – Apesar de todo esse pioneirismo na legislação ambiental, que o senhor bem aponta, começou a surgir no Rio Grande do Sul, já há alguns governos, a ideia de que órgãos como a Fundação Estadual de Proteção Ambiental - Fepam se tornavam entraves para novos empreendimentos, cheios de burocracias e, logo, para o desenvolvimento. Como compreender essa transformação de mentalidade?
Flávio Tavares – É tudo uma confusão, fruto também da ignorância da realidade do que seja o meio ambiente. Não se trata de papéis; a Fepam demorava não porque ficava em meio a papéis, passando de uma escrivaninha para outra, com longos pareceres. Não é uma demora por burocracia, mas sim em função da verificação, das análises que tinham de ser feitas. Basta apenas olhar a localização de onde se quer instalar a pretendida mina de carvão para entender a complexidade de uma análise sobre o tema. A burocracia da Fepam se baseia em laudos técnicos, com laudos de observação, não são somente papéis.
O meio ambiente não pode ser tratado como um mero papel e um despacho feito por um burocrata. Análises de impactos ambientais não são brinquedo, algo que se possa resolver em horas ou dias. E veja que agora passamos a ter uma licença por compromisso, em que a própria empresa mineradora assume o compromisso de não poluir. Isso é um absurdo, não é a empresa que pode assumir esse compromisso; é necessário que os órgãos estaduais representem a coletividade. Órgão público não é um monumento de mármore ou bronze, tem de ser algo dinâmico que represente o bem-estar da coletividade. É justamente isso que se pretende destruir.
IHU – No começo da nossa conversa, o senhor falou algo como: “o Rio Grande do Sul é a liderança no atraso em meio ambiente”. Mas, e em outras áreas, especialmente nas questões políticas?
Flávio Tavares – O Rio Grande do Sul não pode ser entendido com o centralismo do governo; ele não é apenas o governo que tem, que tivemos e que vamos ter, mas é a coletividade em si. Mas mesmo nesse aspecto também estamos retrocedendo pela vulgarização da comunicação em si. Pegamos as chamadas redes sociais que, com o advento do telefone celular, assumiram a primazia na comunicação.
Antes ficávamos mais restritos aos jornais, de um lado, e à televisão e ao rádio, de outro. Hoje, qualquer pessoa se diz um comunicador e inventa mentiras, pois a mentira é sempre mais fácil do que a verdade. A verdade, por vezes, é algo duro, assim nós aceitamos a mentira como uma pílula dourada. A falácia sempre altera a realidade para melhor, ninguém fala mentiras para piorar coisas difíceis para então serem entendidas. É o caso da vacinação, em que se inventou que a vacina pode alterar o DNA das pessoas.
São coisas assim que as pessoas aceitam porque não são ligadas na realidade, não são informadas. É o caso dessa mina também, de aceitar que essa mina a céu aberto quase nas margens do Jacuí em terreno de banhado não vai trazer problemas. Falam em empregos, mas tem um assentamento ali que produz arroz integral, hortaliças ecológicas e isso também vai ser destruído.
IHU – Então, esse vazio de ideias na política é fruto dessas dinâmicas que se dão dentro das redes sociais?
Flávio Tavares – Sim, as redes sociais, ao contrário do que se diz, não democratizaram, mas vulgarizaram a comunicação. Democratização e vulgarização até se parecem. Quem sai a gritar absurdos em praça pública estará democratizando a comunicação? Não, estará dizendo vulgaridades invencionistas. O invencionismo não pode ter mais status do que a verdade. A verdade é o que a ciência nos diz, senão, por que nos importaríamos com a ciência e com a educação?
Aliás, a educação começa no berço, na família. E pai e mãe que recebem uma visão equivocada, inventada do mundo, vão reproduzir isso aos filhos. É como um círculo vicioso. A comunicação atual é desrespeitosa à vida em si, e a propagação da mentira nunca teve tanta aceitação como agora.
IHU – E a rede social cria ou potencializa algo que já existia no tecido social?
Flávio Tavares – Principalmente no espaço político, as pessoas querem aparecer. Os chamados políticos querem sempre aparecer porque é uma forma de popularização. Nesse aspecto, as redes sociais fazem que a pessoa apareça sem filtro. Quando a comunicação se fazia através dos jornais, do rádio e da televisão havia um filtro, pois os jornalistas não podem aceitar tudo que ouvem, mas apenas o que veem e constatam. Já nas redes sociais não há filtro nenhum.
Como na política não há filtro nenhum, os demagogos estão aí. Qualquer pessoa que opere a chamada demagogia do populismo ganha votos. Aliás, esse é um problema bem mais complexo, falar da vulgarização de nossa política cada vez mais intensa. Temos hoje 30 e tantos partidos políticos. Isso é um absurdo, como se houvesse 30 e tantas ideologias. E tem aí mais 40 esperando registros.
IHU – O Rio Grande do Sul sempre bradou seus feitos, autointitulando-se o estado mais politizado. Mas em que medida essa postura inebria o entendimento sobre as transformações do mundo de hoje?
Flávio Tavares – Isso entra naquele rol do que classifiquei como inexplicável. Nós estamos na contramão, atrapalhando o tráfego, como diz aquele sambinha do Chico Buarque. Estamos atrapalhando o tráfego das ideias. O grande culpado de tudo é essa sociedade de consumo, em que queremos apenas consumir e perdemos a capacidade de observação e até a capacidade religiosa para compreender a obra divina na criação.
Gosto de chamar atenção para isso porque as pessoas se dizem cada vez mais religiosas, mas não observam a obra divina da criação e a evolução em si do mundo. Levamos milhões de anos para chegarmos à situação atual do chamado progresso, mas estamos sendo devorados pela sociedade de consumo, aceitando qualquer bugiganga como um grande descobrimento.
IHU – E como sair desse vazio de ideias, provocado pelo que o senhor considera a sociedade de consumo?
Flávio Tavares – Isso começa numa questão íntima e passa depois pela compreensão do que seja solidariedade, do seja viver coletivamente. Ninguém pode viver sozinho ou apenas em tribos, grupos afastados da realidade. Temos de compreender a visão da solidariedade e do cuidado com o planeta. José Lutzenberger, que foi nosso grande ecologista, me despertou para a compreensão do que seja a vida e lembrava sempre o que é veneno.
Antigamente, na tragédia de Shakespeare, por exemplo, o veneno era aquele que matava em seguida. Matava reis, rainhas, vassalos. Mas hoje há uma nova compreensão sobre o que é veneno, levando em conta que é um somatório de coisas. Estamos envenenando o planeta sem perceber que isso nos leva à destruição definitiva e brutalizante. Isso é mais perigoso do que tomar um remédio errado.
IHU – O que nos fez perder esse tato, essa conexão com o planeta?
Flávio Tavares – Eu acho que foi esse “progresso” da sociedade de consumo e dos meios de comunicação. Vejamos a televisão que, com exceção dos noticiários, só mostra violência. Aliás, até mesmo há noticiários especiais dedicados à violência. Não há sequer um apelo a atos de igualdade; acharíamos ridículo se a propaganda dissesse “seja bondoso, seja solidário”. No entanto, topamos com painéis com propaganda de produtos como refrigerantes ou mesmo bebidas de álcool que são daninhos à saúde.
Os apelos são para os desfrutes de pequenas coisas falsas. Todo o apelo da sociedade de consumo é para coisas falsas, ninguém observa apelos à solidariedade e bondade, coisas para entender o outro. E até nós mesmos nos amamos de forma equivocada, não indo no profundo de nós mesmos. Cada pessoa, até um analfabeto, poderia ter a compreensão de si mesmo. Até os letrados da sociedade de hoje estão abertos para essa sociedade de consumo gigante. Assim, considero que essa sociedade de consumo tem grande culpa nessa desumanização dos humanos.
IHU – O que é preciso para rompermos com essa sociedade de consumo?
Flávio Tavares – Acho muito difícil, pois chegamos a um estágio de degradação interior em que nem percebemos que estamos nos degradando. Pequenos atos que vão desde o consumo de cigarros até o consumo de álcool não nos são perceptíveis de como degradam a condição humana, do físico ao intelecto e o espírito. E a política colabora muito para isso. Os políticos, no caso brasileiro, passaram a arrumar um meio de se acomodar, vulgarizando a política ao ponto que estamos vendo.
IHU – E falando em política, como o senhor vem acompanhando essa conjuntura política mais factual?
Flávio Tavares – Com muita tristeza. Vejo como nós estamos – insisto neste termo – degradando sem perceber a própria degradação. É como se estivéssemos entrando num banhado e, chafurdando, seguimos tentando dar um passo adiante. E, num banhado, quem dá um passo adiante buscando o fundo acaba soçobrando, morrendo porque nunca vai chegar ao fundo. Isso se reproduz no país neste momento.
E não é só de agora. É um processo lento que começou há muitos anos e que agora se ressalta mais porque só se busca o absurdo. É uma perturbação mental que domina a política. Pergunto: existe um plano de governo? Um projeto de governo? Não. O que quer o atual governo, federal ou mesmo o do Rio Grande do Sul? Arrecadar mais para pagar em dia os funcionários? Aliás, o governador do estado conseguiu isso, mas de que adianta se compararmos com as necessidades programáticas de um programa de governo? Falta um espírito de compreensão profundo. Na área federal, em dois anos e meio de governo não recebemos nenhum projeto. O que pretende o governo federal? Dizer que a Covid-19 é uma gripezinha? Trancar a vacinação?
IHU – O senhor fala que esse é um processo de degradação política que começou há muito tempo. Consegue identificar quando e por quê?
Flávio Tavares – Digo que o porquê é devido à vulgarização da sociedade de consumo. Outra vez volto a essa ideia, faço disso um cavalo de batalha porque acho fundamental. A oferta de bens de consumo nos tira da realidade profunda. Não oferecemos refrigerante porque é melhor do que água. Oferecemos porque dá lucro, gera empregos. É um exemplo banal que trago, mas que explica a situação atual. É isso que chamo de bugigangas da sociedade de consumo, coisas sem valor profundo. Esse é um fenômeno global, as pessoas estão todas loucas para consumir.
IHU – Então, o momento de degradação da política teria começado com o avanço da sociedade de consumo?
Flávio Tavares – Sim, sim. Ou, pelo menos, estão relacionadas. Não sei se começa ou termina aí, mas estão relacionadas. Uma coisa leva a outra.
IHU – Seria, também, um efeito colateral do pensamento da Modernidade?
Flávio Tavares – É isso, sempre digo que precisamos, em termos tecnológicos, ter uma parada por 50 anos. Eu sei que é um absurdo, não se pode fazer isso. Mas vamos aos novos totens da sociedade de consumo: computador e telefone celular. Precisamos estar sempre mudando de computador ou pelo menos de programa porque a cada dia muda o sistema. Mudam pequenos detalhes, sempre buscando mais lucro. Não se modifica muito o uso do celular ou computador, mas é preciso sempre mudar. As coisas se tornam obsoletas do que outro dia foi obsoleto. É o obsoleto, do obsoleto, do obsoleto e assim por diante. Você tem que trocar tudo o tempo todo, senão para de funcionar.
Há outros bens de consumo, como o automóvel, que progrediram muito. Os carros consomem menos combustível, já estamos passando ao carro elétrico; por outro lado, estamos criando outras formas de contaminação tão brutais como esse projeto da mina de carvão a céu aberto. Insisto nesse perigo da mina de carvão a céu aberto na beira do Jacuí em área de banhado a pouco mais de dez quilômetros de Porto Alegre porque essa é a grande ameaça ao Rio Grande.
Veja que isso ocorre até em relação aos seres humanos, pois o idoso tem algumas pequenas vantagens na sociedade, mas ainda assim é sempre visto como desprezado, quando ter idade é ter experiência, ter vivido a vida. É uma sobrevida, pois aos 20 anos não se tem a experiência que se tem aos 50. Hoje, tenho mais de 80 anos e lembro do tempo que desperdicei quando tinha 20 anos. Aos 20 anos fui até a China, quando ela não era nem membro da ONU. Fiz uma viagem de oito dias de Moscou a Pequim com o trem transiberiano e não pude aproveitar porque não tinha a experiência que tinha aos 50 anos. Veja, tinha 20 anos e o jovem pensa que sabe tudo do mundo, quando na verdade não sabemos nada. A vida é um aprendizado constante.
IHU – O que o senhor viu nessa viagem? E o que seria capaz de ver se refizesse a mesma viagem hoje?
Flávio Tavares – Quando voltei, dei algumas palestras em Porto Alegre e as pessoas riam porque eu dizia que o grande país que iria emergir seria a China. A China era muito pobre na época, mas muito dinâmica. As pessoas se vestiam todas de brim [ou jeans, como alguns conhecem] azul, com duas roupas: uma para o inverno e outra para o verão. Mudava apenas o estilo, mas homens e mulheres sempre se vestiam todos de brim azul. Hoje, vemos a China aí como grande potência, pondo até artefatos na lua, ou seja, dando as cartas no mundo inteiro.
E, hoje, teria observado melhor o estilo de vida e a própria natureza desse lugar. Passei pela Sibéria inteira e não soube aproveitar o que eu via, toda aquela experiência que estava tendo.
Precisamos ter a experiência para reconhecer que o que vale é a própria experiência. Sempre digo que na magistratura a Justiça decide nossas vidas dizendo o que é correto e incorreto. Mas veja que um juiz, por melhor aluno que tenha sido na faculdade, não pode assumir essa função com 22 ou 23 anos de idade. Ele não tem experiência de vida, não sabe o que é a vida em si. Pode conhecer toda a lei de uma forma minuciosa, mas nunca conseguirá ser um bom juiz, porque falta a experiência de vida.
IHU – Mas, na realidade concreta, temos muitos jovens na ‘ponta de lança’ como operadores do Direito. Que riscos se está correndo? Podemos considerar que a Operação Lava Jato foi nesse sentido?
Flávio Tavares – São riscos que se corre não por serem jovens em si, mas por não terem tido a experiência de vida. Não é que eu não creia nos jovens, mas falta a eles a experiência que os anos nos dão na vida em si, a maturidade em si. Afinal, ser maduro não é ser velho, carcomido e cheio de ferrugem. A maturidade é um estágio superior da vida humana. Ninguém come uma laranja ou uma maçã que não esteja madura, pois temos muitos problemas se comemos frutos verdes.
Com relação à Operação Lava Jato, vejo o primeiro e único grande avanço no país. Ela se deve muito mais à independência que tem o Ministério Público do que à juventude de seus integrantes.
IHU – Para o senhor, então, foi um avanço. Não há críticas à Operação Lava Jato?
Flávio Tavares – Bem, se pode criticar qualquer coisa. Até a beleza natural pode ser criticada. Mas a Operação Lava Jato escancarou o conluio criminoso entre pessoas que eram intocáveis, ramos da atividade do dia a dia que eram intocáveis. São os grandes empresários, por um lado, e os grandes políticos, por outro. Até então, não se tocava nisso. Tinha-se medo disso e a Lava Jato, pela primeira vez no Brasil, nos devolveu a realidade. Tínhamos, sinceramente, medo de dizer que alguém era corrupto, medo de que esse alguém nos processasse. Com a Operação Lava Jato tudo isso desmoronou, especialmente esse medo, e nos tornou pessoas menos temerosas da punição quando dizemos a verdade.
Pode ter havido erros, mas não são erros insanáveis. Os avanços compensam os pequenos erros ou até os grandes erros que pode ter tido a Operação Lava Jato. Nunca se tinha dito que as maiores empresas do país eram corruptas e corruptoras como apareceu por aí. Um dos diretores da Odebrecht disse que passou a se orgulhar de corromper as pessoas, era uma espécie de vitória pessoal dele.
IHU – O senhor já viveu momentos dramáticos da História do Brasil, que, inclusive, impactaram sua própria vida. Como os arroubos totalitários do governo Bolsonaro repercutem em alguém que já viveu o pior da repressão no Brasil?
Flávio Tavares – É muito duro pensar que se defenda o Ato Institucional Número 5, por exemplo. Só quem não conheceu a ditadura pode pensar em restabelecer a ditadura. Só quem presenciou o horror da tortura sabe o que é. Eu presenciei assassinato de presos políticos. É um absurdo que as novas gerações tenham que aceitar uma mentira como a grande solução. É inexplicável que se pretenda, por exemplo, ter a maldade suplantando a bondade. A ditadura é a maldade em si. É sufocar o direito de cada um de se expressar livremente, não só o pensamento mas até as atitudes.
Ninguém pode ser neutro frente a um crime e a ditadura é o crime em si, a repressão é um crime em si. Não se pode fazer coisas como se tem feito. Houve uma enquete de opinião pública que perguntava o que se preferia, a ditadura ou a democracia. Não se pode perguntar isso, há coisas que não se medem. Democracia ou ditadura, isso não é uma opção. Temos é que aprofundar a democracia e tirá-la da mão dos demagogos e dos corruptos. Precisamos tirar a democracia da mentira e da falácia.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Flávio Tavares – Já que tocaste nisso, quero repetir: só pode querer a ditadura quem não conheceu a ditadura ou quem tem uma visão ingênua, porque ninguém pode ser tão maldoso. Não acredito que haja ser humano maldoso ou em sã consciência que possa falar em retomada da ditadura, volta da ditadura ou sequer dessas medidas que a ditadura trouxe.
IHU – E para fazer a memória e não deixar o horror da ditadura cair no esquecimento, que leitura o senhor indicaria para essas novas gerações se tivessem de ler apenas um livro sobre o tema?
Flávio Tavares – Vou indicar meu primeiro livro, que se chama Memórias do Esquecimento. Falo das prisões da ditadura, mas como depoimento pessoal. Pelo menos ali se tem um pequeno anúncio do que foi aquilo. É um depoimento pessoal da vivência do que é uma ditadura num relato memorialístico. É a minha memória que está ali.
Flávio narra o drama de ter vivido a ditadura no Brasil em Memórias do Esquecimento (Porto Alegre: L&PM, 2012) | Foto: divulgação
Há vários outros livros, mas não quero me responsabilizar pelos livros alheios. Quero ser responsável por aquilo que eu próprio escrevi.