07 Abril 2008
O primeiro de abril, além de mentiroso, marcou, há 44 anos, o início da ditadura militar. Um período obscuro ainda hoje. “O fato de que não querem abrir os arquivos da ditadura significa que nem o que a ditadura documentou pode ser divulgado”, disse Flávio Tavares à IHU On-Line, em entrevista realizada por telefone. O jornalista foi uma das tantas vítimas torturadas pelos militares. Nesta conversa, ele relembra o episódio e analisa a representação da ditadura nos governos após sua queda. “Eu acredito que o período pós-ditadura foi um período também como o primeiro de abril, meio mentiroso. Porque a ditadura desapareceu, mas o país foi tão marcado por ela que a democracia que surgiu se revelou muito viciada. Não conseguimos expurgar, em profundidade, as marcas e as cicatrizes que ditadura deixou e que já se incorporaram ao nosso dia-a-dia”, conta.
Flávio Tavares é jornalista e advogado. Na década de 1950, foi dirigente estudantil no Rio Grande do Sul. Integrou o grupo fundador da Universidade de Brasília, da qual é professor aposentado. De 1960 a 1968, foi comentarista político da Última Hora do Rio e de São Paulo. Preso e banido do País, foi redator do jornal Excelsior, do México, e logo seu correspondente latino-americano, com sede em Buenos Aires, acumulando na América Latina e Europa as funções de correspondente internacional de O Estado de S. Paulo, do qual foi, também, editorialista político nos anos 1980.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que o primeiro de abril representa hoje para o senhor?
Flávio Tavares – Por um lado, o primeiro de abril é sempre uma data de especulação, surpresa e enganação, como diz o povo. A ditadura militar, que silenciou o primeiro de abril, começou num grande engano transmitido à população, que a aceitou. O governo foi derrubado porque os militares pretendiam subverter a ordem do país, pretendendo fazer um programa de reformas. Então, essa data hoje representa a mentira, efetivamente. A mentira aceita era a de que as Forças Armadas queriam “libertar” o Brasil do comunismo, como se as reformas significassem um regime de opressão. 44 anos depois, a mentira está descarnada e apareceu a público, como um cadáver podre ao sol. Só que ela estragou esse país, fazendo-o ficar paralisado durante ano a fio. O Brasil, durante os anos da ditadura, apresentava estatísticas com excelentes resultados, mas a realidade foi degradante. Dali, surgiram os seus principais problemas, principalmente os de comportamento humano. As pessoas passaram a aceitar a safadeza, porque passaram a aceitar a mentira. Então, quando nós saímos da ditadura, no governo do General Figueiredo (1), o país começou a se dar conta de que tinha piorado, ainda que as estatísticas econômicas revelassem dados superiores aos de 1963 e 1964.
IHU On-Line – Os militares da ditadura são conhecidos por todo mal que causaram às vítimas que se opuseram ao sistema. No entanto, um deles o salvou da morte. Como é isso para o senhor?
Flávio Tavares – Em 1969, eu fui barbaramente torturado no Rio de Janeiro durante três dias. No entanto, o Exército ainda tinha as suas velhas figuras de antes formadas na escola francesa. O exército brasileiro foi quase sempre como o exército francês, muito disciplinado. E, depois da Segunda Guerra Mundial, o exército estadunidense começou a influenciar o brasileiro e passou idéias de defesa que transformaram a mentalidade dos militares. No quinto dia de tortura, em 1969, na Polícia do Exército do Rio de Janeiro, foi nomeado um coronel chamado Élber de Mello Henriques (2) para presidir os inquéritos policiais militares. Foi um homem corretíssimo, tinha sido herói na Segunda Guerra Mundial, um conservador, mas um remanescente do exército de instrução francesa que permanecia. Ele mandou suspender a tortura em toda a Polícia do Exército do Rio de Janeiro e depois denunciou tudo isso ao Comando do Exército. Esse coronel nunca chegou a general, ainda que fizesse todos os cursos do Estado maior, que fosse um herói da Segunda Guerra Mundial. Ele morreu com essa angústia.
IHU On-Line – Para o senhor, qual é a contribuição que a abertura dos arquivos da ditadura poderia trazer para o presente histórico da política brasileira?
Flávio Tavares – Não é que sejamos contra ou a favor. A história do mundo inteiro manda que se abra os arquivos de qualquer governo, principalmente os ditatoriais, para que saibamos desde o começo o que foi feito. Então, a relutância de todos os governos em abrir os arquivos da ditadura é uma posição arcaica, atrasada e, desculpe a expressão, idiota. Trata-se de uma posição de desrespeito às Forças Armadas. Essas precisam revelar o que alguns fizeram em seu nome, a fim de que a opinião pública esteja preparada e não se repita esse episódio. Os Estados Unidos, que têm uma política imperialista em relação à qual sou extremamente contra, são, por exemplo, um país democrático. Esse exemplo, já que adotamos todas as coisas perniciosas, deveríamos adotar para nosso progresso. Podemos adotar as coisas boas dos Estados Unidos.
IHU On-Line – Qual seria a contribuição para o Brasil se os arquivos fossem abertos?
Flávio Tavares – Eu penso que os arquivos mostrariam, pelo menos, a ilegitimidade absoluta dos que se disseram governantes desse país e, de fato, foram ditadores. Acredito que os arquivos não vão revelar as grandes atrocidades, porque nossos documentos não seguem a linha dos nazistas, que documentaram tudo, até com fotografias dos campos de concentração, dos fuzilamentos, porque pensavam estar salvando o mundo perseguindo os judeus e comunistas. A ditadura militar brasileira teve vergonha de ser ditadura. Ela se dizia democrática e as atrocidades que cometeu foram documentadas. Duvido que os militares tenham documentado as atrocidades feitas. Mas, mesmo assim, o fato de que não quererem abrir os arquivos da ditadura significa que nem o que ficou documentou pode ser divulgado. Por que não se pode divulgar o passado da história? A história é para ser escrita através de documentos e de testemunhos.
IHU On-Line – O seu livro Memórias do esquecimento é um testemunho histórico, jornalisticamente falando, ou uma tentativa de expurgar as dores desse período?
Flávio Tavares – Ele começou como uma tentativa de expurgar as dores desse período. Foi a minha salvação pessoal em termos psicológicos. Se não fosse esse livro, eu tinha sofrido muito mais. Agora, por ter sido o primeiro livro que documentou um testemunho da tortura, ele se transformou num documento vivo de uma época. Pessoalmente, ele foi a minha catarse.
IHU On-Line – Depois de viver a ditadura, o senhor viu o Brasil se redemocratizar e a esquerda chegar ao poder. Qual é sua análise deste período pós-ditadura?
Flávio Tavares – O período pós-ditadura foi um período também como o primeiro de abril, meio mentiroso. Porque a ditadura desapareceu, mas o país foi tão marcado por ela que a democracia que surgiu se revelou muito viciada. Não conseguimos expurgar, com profundidade, as marcas e as cicatrizes que ditadura deixou e que já se incorporaram ao nosso dia-a-dia. Eu me refiro, principalmente, aos políticos e até ao movimento sindical. Os partidos políticos, hoje, no Brasil, se transformaram em meros grupos de pressão, meros balcões de negócios. Isso porque as pessoas chegam a vários cargos para resolver assuntos pessoais, situações pessoais, sem estarem sintonizadas com um projeto de nação, de Estado, de afirmação de uma nova sociedade. Assim, a democratização foi marcada pelos vícios da ditadura, porque a chamada classe política que emergiu na democracia estava muito mais viciada do que a anterior a 1964, quando havia uma direita e uma esquerda. Hoje está tudo misturado. Não se sabe direito quem governa o país. O governo federal é feito pelo PT, que se dizia de esquerda, e até pelo PP, uma figura de direita e remanescente da Arena, que era o partido da ditadura militar. Então, as coisas perderam o valor, e as idéias não acompanham os partidos políticos. Os partidos viraram um mero conglomerado de gente em busca de poder. Essa é a visão perversa que faço da democracia de hoje.
IHU On-Line – O senhor atuou como jornalista numa época muito complicada e bastante diferente de quem atua na área hoje. Além disso, esteve ao lado de Samuel Wainer, no jornal Última Hora. Qual é a importância, para o jornalismo, a figura de Wainer?
Flávio Tavares – O Samuel Wainer (3) foi uma grande figura do jornalismo brasileiro e latino-americano. Ele renovou o jornalismo, transformou o jornalismo numa profissão, porque o jornalismo era um “bico”. O Samuel Wainer transformou isso e deu aos jornais a capacidade de investigar. Antes os jornais eram meros receptores de informações, não investigavam. Apenas o jornal Estado de S. Paulo fazia grandes reportagens com alguma investigação. Mas, mesmo assim, a qualidade do jornalismo investigativo no Brasil só melhorou com a Última Hora, do Samuel Wainer. Ele transformou o jornalismo em algo moderno, não no sentido de desprezar o passado, mas transformando o dia-a-dia numa coisa a ser pesquisada e transformada em notícia através da profundidade. Hoje, o jornalismo vive uma crise com o advento da televisão. O jornalismo impresso está se transformando numa cópia da televisão e historicamente deveria ser o contrário. A televisão é que deveria ser acompanhada do jornalismo. Na medida em que a televisão se vulgarizou, o jornalismo também se vulgarizou.
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação do jornalismo atual e sua relação com a governabilidade?
Flávio Tavares – A governabilidade, em termos direitos, é algo muito complicado de se comentar em poucas palavras. De qualquer modo o jornalismo e os meios de comunicação não podem jamais perder a visão crítica nem podem se entregar. Os jornais precisam ser independentes. Eles podem até ter posições, mas nunca partidárias, para dar ao público uma pesquisa profunda sobre os fatos. Então, no momento em que a imprensa se transforma no único fator de denúncia, isso ajuda a governabilidade. Os grandes escândalos do país não foram descobertos no Congresso, mas pela imprensa. A denúncia que a imprensa faz facilita a governabilidade.
Notas:
(1) João Baptista de Oliveira Figueiredo foi um militar e político brasileiro. Foi o último presidente do regime militar, que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Durante o seu governo, de 1979 a 1985, promoveu a lenta transição do poder político para os civis. No seu governo, concedeu anistia ampla e irrestrita, e voltaram ao Brasil os exilados do regime militar. Também realizaram-se as primeiras eleições diretas para governador de estado desde 1965. Durante o seu governo, ocorreram uma série de atentados terroristas atribuídos à direita, como bombas em bancas de jornais e explosões em organismos que defendiam os direitos humanos. O mais célebre atentado foi o que aconteceu no Riocentro. No local, era realizado um show musical popular com a participação de milhares de jovens. Não se sabe se por acidente ou imperícia, uma bomba de alto poder explodiu dentro do carro de agentes do governo, matando um sargento e ferindo gravemente um capitão, ambos do exército. O governo negou conhecimento da operação, mas a partir desse acidente, os atentados cessaram. Foi um dos fatos que mais desmoralizaram a ditadura militar instaurada em 1964, e marcou o início de seu declínio.
(2) Élber de Mello Henriques foi designado pelo comando do então I Exército para fazer o Inquérito Policial militar de alguns presos políticos que estavam no quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Assim que chegou, pediu para ver Flávio Tavares. Disse ele, certa vez: “Levaram-me até a cela dele e o que vi me deixou chocado. Era um cubículo imundo, com um buraco no chão servindo de privada que exalava um cheiro horroroso. Flávio, de tão machucado pelas torturas, dormia profundamente num colchão de palha sem lençol colocado no chão da cela. Imaginei que aquele homem deveria estar muito debilitado para conseguir dormir naquela situação, com aquele forte cheiro de urina. Determinei, então, que no dia seguinte me levassem o preso limpo e apresentável para o interrogatório e que o colocassem numa cela limpa, que eu mesmo inspecionei. No dia seguinte levaram o Flávio à minha sala. Eu disse a ele que sabia de tudo o que lhe tinham feito, mas que, a partir daquele momento, só eu poderia interrogá-lo. E assim ocorreu”.
(3) Samuel Wainer foi um jornalista judeu brasileiro. Foi fundador, editor-chefe e diretor do jornal Última Hora. Originalmente um jornalista da esquerda não-comunista, ligado ao grupo de intelectuais congregados em torno da revista Diretrizes, Wainer era um repórter dos Diários Associados de Assis Chateaubriand quando veio a entrevistar Vargas durante a campanha eleitoral de 1950, formando com ele uma amizade política, movida à base de interesses mútuos, que viria a resultar na criação do Última Hora. Até o Golpe Militar de 1964, havia conseguido estruturar um verdadeiro império jornalístico, com várias edições regionais do seu jornal. Após 1964, apesar de um brilhante exílio dourado em Paris entre 1964 e 1968, teve seu património dilapidado pelas perseguições da ditadura, e acabou por vender a edição nacional do Última Hora em 1972. Em 1975, passou a residir em São Paulo, onde morreria, empobrecido, como jornalista assalariado da Folha de S. Paulo.
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"Os partidos viraram um mero conglomerado de gente em busca de poder". Entrevista especial com Flávio Tavares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU