As eleições municipais deste ano indicam a derrota do discurso ultraconservador e o realinhamento político via a centro-esquerda e a centro-direita, diz o sociólogo
A mensagem central das eleições municipais deste ano é a de que "a democracia é o caminho ideal e adequado para a maioria da população resolver problemas sociais, políticos e econômicos", diz o sociólogo Paulo Niccoli à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp. Ao comentar o baixo protagonismo de candidatos evangélicos, militares e policiais no primeiro turno e a eleição de candidatos vinculados a partidos de centro-esquerda e centro-direita, Niccoli vislumbra uma nova disposição para o pleito de 2022. "A tendência é que os partidos busquem cada vez mais o centro à direita e à esquerda, promovendo discursos de temperança, que evitem os conflitos", diz. E acrescenta: "A democracia permite o diálogo com o outro e espero que isso tenha ficado incrustado na cabeça dos eleitores".
Para ele, as eleições municipais também demonstraram o enfraquecimento do presidente Bolsonaro e o arrefecimento do discurso ultraconservador e radical à direita e à esquerda. "O apoio de Bolsonaro a militares e a evangélicos tornou-se um elemento e um álibi de rejeição ao próprio governo e aos seus apoiadores", constata.
Paulo Niccoli (Foto: Reprodução)
Paulo Niccoli é doutor em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, e em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. É professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo - FESPSP, da ESPM. É autor de Sérgio Buarque de Holanda e a Dialética da Cordialidade (São Paulo: Editora PUC-SP, 2011).
IHU On-Line - Que balanço o senhor faz das eleições municipais no Brasil? Elas indicam alguma mudança de perspectiva política?
Paulo Niccoli – Primeiro, houve uma profunda decadência, sobretudo nas grandes capitais do Brasil, do discurso ao estilo bolsonarista, ou seja, voltado ao discurso de ódio, violência e intolerância. Vimos o ressurgimento do discurso mais progressista, à esquerda, mas não monopolizado nas mãos do PT. Vimos a ascensão do PSOL, principalmente em São Paulo, com a candidatura do Boulos, e com o PCdoB, com a Manuela D’Ávila em Porto Alegre. Isso vai mostrando que embora o PT tenha reduzido bastante o número de governadores e prefeitos desde 2016, ele ainda se mantém como o principal partido de esquerda, mas não de forma tão hegemônica como víamos quatro anos atrás. Talvez os casos de corrupção que envolveram o PT nos últimos anos tenham alavancado outras possibilidades de esquerda com o PSOL, o PCdoB e o próprio PDT.
Outra questão importante foi o fracasso dos apoios que Bolsonaro dedicou a muitos candidatos nos municípios, o que revela a derrocada desse discurso conservador e autoritário, levando a novas perspectivas políticas entre centro, centro-esquerda e centro-direita, que é o que se espera do ponto de vista da civilidade da democracia. A maioria dos brasileiros não quer eliminar o seu oponente. A democracia permite o diálogo com o outro e espero que isso tenha ficado incrustado na cabeça dos eleitores.
Outras duas questões determinantes para essas eleições foram a pandemia e a maneira como o governo Bolsonaro atuou frente aos 167 mil mortos, ou seja, a maneira desdenhosa como lidou com a situação, com as mortes, e a pouca efetividade das ações do governo, que se caracterizou não só pelo menosprezo em relação à pandemia, mas como uma incompetência diante das emergências que deveriam ter sido tomadas. Isso revela o porquê da decadência do apoio de Bolsonaro. O aumento da sua rejeição pode ser visto na maneira como a maioria dos candidatos apoiados pelo presidente sequer alcançou o segundo turno e foi despencando ao longo da campanha eleitoral. Foi o que aconteceu com Celso Russomanno em São Paulo. No entanto, no Rio de Janeiro ainda há um suspiro do bolsonarismo, com o segundo turno alcançado por Crivella. Mas as pesquisas para o segundo turno já demonstram uma estagnação e não houve um aumento considerável de votos para o Crivella entre o primeiro e o segundo turno, o que revela a incapacidade de Bolsonaro de atrair mais eleitores mesmo para o Crivella.
IHU On-Line - Das 45 candidaturas evangélicas na disputa eleitoral em 21 capitais, nove foram para o segundo turno e apenas três venceram o primeiro turno. Por que evangélicos, militares e policiais tiveram pouco destaque nas eleições deste ano?
Paulo Niccoli – A situação pandêmica desfavoreceu as campanhas desses candidatos, primeiro, porque muitos pastores – não se pode generalizar –, como Malafaia e Edir Macedo, menosprezaram a violência da contaminação da Covid-19.
Vimos muitos pastores dizendo que o poder de Deus e da religião poderia salvar os fiéis e, em função disso, houve um negacionismo não só da pandemia, como também da necessidade de usar instrumentos de proteção, como as máscaras, e uma negação da eficácia do isolamento social. Esses pastores agiram de forma negativa, mas muitos religiosos e fiéis tiveram parentes que faleceram em função da Covid-19. Além disso, o apoio de Bolsonaro a militares e a evangélicos tornou-se um elemento e um álibi de rejeição ao próprio governo e aos seus apoiadores. Isso porque, apesar do coronavoucher, houve um aumento do desemprego e muitas famílias sentem o seu efeito.
A crise econômica mais a pandemia, de fato, tornaram Bolsonaro um grande vilão e uma figura que prejudicou a imagem de candidatos que concorreram à eleição. Isso explica por que o discurso armamentista e religioso não colou nessas eleições e por que o discurso progressista foi alavancado. Mostra igualmente uma maior diversidade de partidos e de representatividade também. No nível municipal, não podemos esquecer que tivemos representações dos movimentos de LGBTQI+, negro e feminista, o que deu maior grau de representatividade para as campanhas legislativas, nas Câmaras Municipais.
IHU On-Line - Entre os analistas há um consenso de que a centro-direita venceu as eleições no país. O que isso significa do ponto de vista político e da percepção da sociedade sobre o atual momento político, econômico e social do Brasil?
Paulo Niccoli – De fato isso ocorreu. Se observarmos bem, os discursos extremistas, sejam de direita ou de esquerda, foram atenuados pelos partidos que buscaram o consenso, o equilíbrio e a via democrática. Isso favoreceu primeiro os partidos de centro-direita, como partidos que surgiram recentemente, como o PSD, que era o partido do Kassab, o próprio PDT, que Brasil afora foi tomando uma postura mais centrista apesar de se declarar de esquerda, assim como o PSDB e o PP.
O que está ocorrendo é que assim como muitos partidos à esquerda tentaram se desvincular do PT, os partidos de direita e centro-direita estão tentando, de alguma forma, separar sua imagem do governo federal. Apesar disso, no nível federal, o centrão conservador ainda busca uma associação com o governo – aí não seria uma centro-direita, mas o centrão conservador que joga conforme o interesse, independentemente de quem esteja no poder. O centrão ainda permanece apoiando Bolsonaro em troca de cargos, estatais e verbas públicas para obras nos municípios. Mas no nível municipal isso não ocorreu; há uma tentativa de deslocamento da imagem da própria direita em relação ao Bolsonaro, assim como houve, há quatro anos, a tentativa do PSOL, do PDT e do PSB de também separarem sua imagem dos governos petistas. Isso é resultado de governos que, no nível federal, acabam produzindo alta rejeição nas pesquisas. A tendência é que os partidos busquem cada vez mais o centro à direita e à esquerda, promovendo discursos de temperança, que evitem os conflitos.
IHU On-Line - Concorda que há um arrefecimento da onda ultraconservadora no país? Por quê?
Paulo Niccoli – Sim, de fato há um processo de neutralização do discurso ultraconservador no Brasil. Primeiro, porque, do ponto de vista econômico, esse discurso não funcionou e as políticas de Paulo Guedes não funcionaram na pandemia e com o agravamento da crise. Hoje a situação econômica é pior do que há dez anos – especialmente para a população de baixa renda –, o que revela que do ponto de vista das políticas sociais, os governos petistas tiveram mais sucesso do que o governo Bolsonaro. Isso também se deve ao discurso de intolerância do presidente, o que acabou gerando problemas com indígenas, negros e mulheres.
A política ambiental e os ministros do presidente implicam em uma série de atividades e declarações polêmicas e grotescas, o que foi fazendo com que a população tivesse um desgaste em relação ao apoio concedido a Bolsonaro. O resultado dessa pouca capacidade de centralizar ações bem-sucedidas em relação à Covid-19, ao desmatamento, às questões sociais relativas ao emprego, à diversidade cultural, foi gerando um desgaste do presidente, sem falar na sua política internacional. O discurso conservador continua agradando somente aos bolsonaristas de carteirinha, aqueles 30% que apoiam o presidente. O restante da população não apoia as ações de Bolsonaro, o que fez com que tanto a centro-esquerda quanto a centro-direita e os movimentos populares alcançassem um certo consenso na ideia de que Bolsonaro não é uma figura apta para governar o país. Isso foi levando a uma derrocada do discurso ultraconservador que, por sua vez, era sustentado tanto por um discurso militarista, conservador e religioso, sobretudo de evangélicos. Embora sempre tenhamos que lembrar que isso não significa que todos os evangélicos sejam ultraconservadores. São parcelas do setor evangélico, sobretudo, aquelas ligadas a determinadas igrejas, como a Universal do Reino de Deus e a do Malafaia [Assembleia de Deus Vitória em Cristo].
O número crescente de acusações de agentes policiais e militares em relação ao racismo, a incompetência dos Ministérios do Meio Ambiente e das Relações Exteriores, também desgastou a imagem do governo, que se mostra amador e pouco competente para atuar nos principais problemas brasileiros.
IHU On-Line - Que "Brasis" podemos perceber a partir do resultado das eleições municipais?
Paulo Niccoli – As capitais, principalmente no Sul, Sudeste e Nordeste, tiveram maior concorrência entre os partidos de esquerda e direita, o que mostra o desgaste do discurso ultraconservador. Quatro anos atrás, em São Paulo, Doria venceu Haddad no primeiro turno, mas neste ano isso não ocorreu e a disputa foi mais acirrada. Bruno Covas, apoiado por Doria, teve 32% dos votos e Boulos, 21%, o que demonstra o desgaste do discurso ultraconservador nas capitais. Essa não é uma regra universal e algumas capitais como Florianópolis e Manaus têm partidos de centro-direita e conservadores alcançando o segundo turno. Isso mostra que a unanimidade que se criou em torno da direita, pela figura do presidente, está ruindo. Porém, no nível dos municípios, ainda se vê o discurso conservador predominando em cidades do interior.
Os dados mostram que tanto no Executivo quanto no Legislativo há um alto índice de candidatos eleitos, sobretudo vindo dos evangélicos, policiais e militares. Onde há maior nível de acesso à informação, contraposição e maior nível de escolaridade, há uma alavancagem da disputa entre progressistas e conservadores. Claro que não é preciso ser de esquerda para ser progressista – há muitos liberais e uma certa faceta da direita que têm perspectivas liberalizantes, como respeito à diversidade cultural e até mesmo pensamentos que defendem a necessidade de auxílio aos mais pobres. Toda essa gama chamaríamos de progressistas. O problema é que muitos progressistas foram anestesiados em 2016, guiados pelo discurso ultraconservador e, de fato, angariaram uma marcha de discurso de ódio, violência e racismo, que foi de alguma maneira enfraquecido nessas eleições, porque o presidente mostrou-se incompetente no cargo da Presidência da República.
Mas o resultado sobre os Brasis é o seguinte: nos centros urbanos houve um resgate do discurso progressista, angariado por partidos de esquerda e direita e, no interior do Brasil predomina o discurso conservador baseado no militarismo, na violência, na extrema religiosidade e na intolerância. É importante abrir a análise para essa diferenciação entre o Brasil das capitais e dos estados e o Brasil do interior.
IHU On-Line - O que essas eleições municipais revelam, de outro lado, sobre os eleitores que votaram em Bolsonaro, amplamente criticados por alguns por serem de "ultradireita" ou "fascistas"? Os analistas políticos atribuíram a eleição do presidente Bolsonaro a vários fatores, entre eles, a insatisfação de parte da população com o PT e ao peso do voto evangélico. Como avalia essa eleição hoje à luz dos dados da eleição municipal?
Paulo Niccoli – Desde 2019, quando Bolsonaro assumiu a presidência da República, aconteceram atitudes inadequadas que romperam com o mínimo que se esperava dos protocolos do exercício da presidência da República: palavrões, xingamentos, palavreado obsceno, gafes em relação às políticas internacionais, desrespeito dos direitos humanos, aos povos da floresta, à população negra, muitas declarações esdrúxulas sobre a pandemia, os remédios, a vacina. Tudo isso fez com que o apoio ao presidente se tornasse um motivo de piada – programas humorísticos e a imprensa desgastaram a imagem dele. Está crescendo no Brasil um movimento de envergonhamento em relação ao apoio que se deu a Bolsonaro e uma crescente visão negativa daqueles que se mantêm apoiando o presidente. Afinal de contas, há uma visão negacionista em relação a fatos históricos e certezas científicas, que alavancam a ideia de que a manutenção ao apoio a Bolsonaro é um sinônimo de posições políticas, sociais e científicas inadequadas, beirando a ignorância.
É compreensível que em 2018 muitos eleitores decepcionados com o PT tenham votado em Bolsonaro não exatamente por conhecer as ideias e a personalidade dele, mas para votar contra o PT. Mas o que temos que começar a perceber – e muitos analistas estão mostrando isso – é que há uma grande diferença entre ter votado em Bolsonaro e ser um bolsonarista. Nem todos que votaram em Bolsonaro são bolsonaristas e, de fato, esses começam a empenhar e desenvolver uma crítica a quem é bolsonarista. Os radicais e negacionistas são aqueles que assinam embaixo e mantêm um apoio radical e às cegas às visões de mundo de Bolsonaro.
Enquanto isso, os apagões no Amapá, o aumento do desmatamento, a inaptidão de Bolsonaro de agir frente à pandemia e o desdém frente aos dados e à gravidade da Covid-19, levam os antigos votantes de Bolsonaro a se afastarem dos bolsonaristas. É isso que está acontecendo hoje no Brasil. Essa situação permitiu, por sua vez, que partidos de esquerda e centro-direita conseguissem atrair esses votos para um discurso mais ameno, apaziguador e capaz de alavancar a democracia acima da ruptura com as instituições democráticas.
Ao longo de dois anos, Bolsonaro fez um discurso que beirava a ruptura institucional, mas indivíduos minimamente sensatos são contra esse tipo de postura. Está mais do que claro – e essa é a mensagem dessas eleições – que a democracia é o caminho ideal e adequado para a maioria da população resolver problema sociais, políticos e econômicos, e jamais ditaduras e governos centralizados. As ações de Bolsonaro, que entraram em conflito e em debate perigoso com o STF e instituições internacionais como a ONU, foram desgastando a ultradireita. O mais sensato é sempre buscar as vias democráticas, democráticas a ponto de solucionar os problemas mais diversos do país e não através de um discurso violento. O próprio apoio do presidente a Trump também gerou desgaste, porque o presidente norte-americano se mostrou incapaz de saber combater a pandemia e também foi desdenhoso em relação ao número de mortos e à gravidade do coronavírus.
IHU On-Line - Como fica o governo de Bolsonaro daqui para frente?
Paulo Niccoli – Bolsonaro está numa situação delicada e gradualmente ficou demonstrada a perda da sua base nos municípios por meio da derrota dos candidatos que ele apoiava. A situação do presidente é delicada porque ele está sem partido. Isso demonstra que diante de um crescente desgaste do governo e da tendência de os partidos tentarem se afastar do governo, pode surgir uma situação ainda mais complicada para o presidente nos próximos dois anos. Se Bolsonaro não tiver uma legenda partidária para concorrer às eleições, ele não poderá concorrer. Essa é a grande questão. Começará daqui para frente uma grande negociação do governo com o centrão para observar por qual partido o presidente poderá concorrer nas próximas eleições.
Havendo um maior número de mortos por conta da pandemia e ao mesmo tempo em que as ações do governo se mostram ineficientes, seja por atuar de uma maneira negacionista em relação à vacina ou de forma dúbia em relação a remédios que não servem para nada, como é o caso da cloroquina, Bolsonaro sofre o risco de não concorrer se a situação pandêmica piorar. Talvez seja uma situação inédita no país de um primeiro presidente em exercício que não concorra a um segundo mandato em função do crescimento da impopularidade por causa da pandemia e da crise econômica. Dependemos da análise dos próximos movimentos desse jogo de xadrez, mas é provável que um partido nanico de direita busque arregimentar o nome de Bolsonaro como um candidato à campanha de 2022, como PRTB, PP. Temos que dar tempo ao tempo.
IHU On-Line - Alguns sociólogos chamam a atenção para o modo como as pautas identitárias, embora sejam fundamentais de serem discutidas, acabam fragmentando o debate público e dividindo a sociedade ao invés de fortalecê-la em torno de um projeto comum que tenha como base a garantia de direitos para a pessoa humana. Como o senhor vê esse tipo de crítica e esses debates na sociedade brasileira?
Paulo Niccoli – A fragmentação das pautas progressistas e das pautas identitárias é resultado de uma sociedade que cada vez mais se informa através da internet. Na época em que revistas e jornais impressos, o rádio e a TV eram predominantes, era muito mais fácil modelar os interesses e a identidade dos eleitores e cidadãos, afinal de contas, eles eram passivos, apenas recebiam informações e interagiam pouco com elas.
Desde a década de 1990 e início deste século, com o crescimento das redes sociais e das novas tecnologias da informação voltadas para a internet, emergiu o fim das meta-narrativas, ou seja, dos discursos universais e isso deu origem aos discursos fragmentados. Até a década de 1980 e 1990, quando o sujeito era de esquerda, ele universalizava as pautas e defendia questões como a liberalização do aborto, a legalização das drogas, agia contra a religião, era a favor do comunismo, da reforma agrária, das liberdades sexuais, do público LGBTQI+. O indivíduo conservador era a antítese: carregava o discurso contra o aborto, contra a liberalização das drogas e tudo aquilo que os grupos de esquerda defendiam.
Com a internet, o discurso tornou-se mais fragmentado porque ela tornou possível a fragmentação e o surgimento de discursos mais específicos. Hoje vemos indivíduos de direita que são a favor da liberação das drogas ou indivíduos de esquerda que têm posições machistas. Isso criou uma profunda confusão identitária acerca de bandeiras políticas a serem seguidas e, por outro lado, os partidos precisam se adaptar as mudanças da sociedade. Essa é uma marca que atinge não só a política, mas todas as instituições. O próprio papa Francisco tem um discurso mais aberto e de respeito ao público LGBTQI+ e aos indivíduos divorciados. A questão é que ou as instituições mudam ou vão desaparecer. A mesma regra vale para a política: vemos partidos como o PSOL e PCdoB arregimentando candidaturas identitárias e isso enriquece a democracia e aumenta a representatividade caso esses indivíduos consigam a vitória nas eleições. Afinal de contas, quanto mais as pessoas têm acesso à informação, a tendência é que pautas antes marginalizadas ganhem mais força e níveis de representatividade. É isso que explica a vitória de candidatos coletivos: movimento negro, LGBTQI+ e feministas.
É uma ilusão acreditarmos que partidos que simplesmente defendem pautas à esquerda pela base econômica venham a resolver problemas que temos na sociedade em relação à homofobia, à questão racial, ao machismo. Isso revela a importância da fragmentação desses discursos. Se, por um lado, ele produz uma certa confusão em termos de identidade do eleitor acerca das pautas, de outro, estamos vivendo um processo de reorganização das democracias – e os partidos estão percebendo isso gradualmente.
A direita e a nova direita se deram conta disso através do uso da internet, de blogs e fake news, e conseguiram sair vitoriosas em 2018 em relação ao Bolsonaro. Discursos conservadores fragmentados apoiaram Bolsonaro: desde monarquistas, militares, evangélicos conservadores. A esquerda se perdeu em 2018, ainda voltada à imagem do PT como um partido capaz de concentrar todas essas pautas juntas e ao mesmo tempo, embora pouco se falasse sobre essas pautas identitárias nas campanhas do PT. Consequência disso é que nas campanhas municipais de 2020, partidos com menos destaque, como PSOL e PCdoB, criaram suas candidaturas baseadas nas questões identitárias. Muito provavelmente esses partidos conseguiram um melhor desempenho porque conseguiram traduzir, em uma campanha feita através da internet, os interesses e demandas da população mais jovem.
Os partidos precisam adaptar suas pautas em função das demandas da sociedade e os partidos de esquerda aprenderam a fazer isso. O PT ficou para trás nessa questão, porque ainda tem uma posição baseada num discurso de que estruturalmente ajudou as periferias. Mas hoje as demandas da população não são apenas em relação à redução dos níveis de pobreza, mas do reconhecimento de grupos étnicos e identitários que pouco tiveram voz na história da democracia brasileira.
IHU On-Line - Que contribuições a sociologia brasileira está dando e ainda pode dar para nos ajudar a compreender o atual momento político, econômico e social do Brasil?
Paulo Niccoli – Temos como maior exemplo os autores negros, que têm tido muita força, como a Djamila Ribeiro, mas também os estudos que a sociologia política tem feito em relação ao uso de blogueiros e influenciadores digitais, como é o caso do Felipe Neto. Hoje a sociologia está pesquisando o comportamento político dos jovens e dos influenciadores na construção das pautas identitárias. São estudos pautados em autores como Abdias do Nascimento e Clóvis Moura, que já nos anos 1960 reivindicavam a participação do negro na sociedade brasileira. A mesma questão vale para o movimento feminista no Brasil; livros estão sendo resgatados para alavancar a democratização das instituições e das eleições, garantindo maior nível de representatividade.
IHU On-Line - De que modo as universidades, incluindo as áreas de humanidades e das ciências, podem contribuir para pensarmos o desenvolvimento do Brasil daqui para frente?
Paulo Niccoli – Podem contribuir porque são ciências críticas que conseguem identificar problemas onde geralmente o senso comum não enxerga. Presenciamos, na semana passada, a morte de um homem negro num supermercado. A sociologia brasileira, insistentemente e combatendo uma visão de Gilberto Freyre da década de 1930, vem atacando a existência de uma suposta democracia racial, que se revela como um grande mito e visão falseadora da realidade. Nós vimos o vice-presidente Hamilton Mourão e outros homens brancos de direita dizendo que não há racismo no Brasil. Óbvio que esse tipo de postura é equivocada e sabemos que há racismo. Quem diz não haver racismo no Brasil são os brancos e não os negros, de forma que o papel da sociologia e das ciências humanas é mostrar as contradições que existem dentro da nossa sociedade.
Os estudos que a sociologia promove, mostrando as dificuldades do público negro, das mulheres e dos LGBTQI+ de se inserirem no mercado de trabalho e terem seus direitos econômicos, políticos e sociais reconhecidos, fazem com que as ciências humanas procurem abrir os olhos da sociedade em relação aos problemas que existem e precisam ser elucidados. Os estudos vão na direção contrária das posições negacionistas e ultraconservadoras que negam o racismo e desdenham o papel da escravidão no processo da formação e da miséria no país. Estão sendo produzidas teses, dissertações e artigos acadêmicos nas universidades. Esse material tem tido mais notoriedade nas redes sociais e pessoas que não tinham condições de entrar nas universidades têm ingressado e desenvolvido estudos sobre essas questões. Esse material serve de embasamento para as eleições e traz uma contribuição para o debate das desigualdades no país.