24 Setembro 2020
Nesta terça-feira 22, a cristofobia foi utilizada por Jair Bolsonaro em seu discurso na 75º Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Citando o termo, que define a aversão ao cristianismo ou por quem professa a fé cristã, o presidente fez um “apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia” e completou: o Brasil é um “país cristão e conservador, e tem na família a sua base”, embora o Estado brasileiro seja laico, como estabelece a Constituição Federal.
Antes de chegar ao discurso de Bolsonaro, o termo cristofobia tem sido utilizado por parlamentares da Bancada Evangélica no Congresso. Em 2015, por exemplo, o deputado Federal Marco Feliciano (Republicanos) usou a palavra para atacar manifestações da Parada LGBT. Quatro anos atrás, um projeto de lei do vereador Eduardo Tuma (PSDB), que criava o Dia de Combate à Cristofobia, tramitou na Câmara Municipal de São Paulo.
A existência da cristofobia, em um país de maioria cristã — 50% são católicos e 31% evangélicos, segundo o Datafolha —, é contraditória. Os mais discriminados por motivos religiosos no país são os praticantes da umbanda, do candomblé e outras religiões de matriz africana, segundo dados do próprio governo federal: de 506 casos registrados pelo Disque 100 no ano passado, apenas 23 foram contra segmentos evangélicos.
“O preconceito existe, assim como há preconceito contra vários grupos”, mas “os cristãos têm em suas mãos todo o aparato de poder do Estado”, aponta o teólogo e pesquisador de igreja, sociedade e direitos civis, Ronilso Pacheco. Ele conversou com a Pública após ouvir o discurso do presidente Bolsonaro pela internet, na sua casa nos Estados Unidos, onde cursa mestrado em teologia pela Union Theological Seminary (Columbia University) em NY.
O teólogo e pesquisador destaca: o Brasil não está entre os países onde há perseguições contra cristãos. Preconceito há, inclusive entre as denominações evangélicas, “carregado por questões de classe, por questões raciais”. Segundo Pacheco, o termo cristofobia foi usado por Bolsonaro de forma estratégica e, ao que tudo indica, deve pautar os debates eleitorais na defesa de uma agenda ultraconservadora.
A entrevista é de Mariama Correia, publicada por Agência Pública, 22-09-2020.
Falar de cristofobia e/ou de crentefobia no Brasil é um debate legítimo, no seu ponto de vista? Realmente existe preconceito contra cristãos e/ou preconceito contra evangélicos?
O preconceito existe, assim como há preconceito contra vários grupos. A grande questão é que esse preconceito está muito longe de ser caracterizado como cristofobia ou crentefobia. Não é possível negar que existe preconceito sobre a crença dos evangélicos, por exemplo, a forma de viver, costumes. Inclusive um preconceito intraeclesiástico, entre as igrejas evangélicas. Por exemplo, entre igrejas mais elitizadas e igrejas pentecostais, marcadamente mais empobrecidas, geralmente situadas em periferias. De um lado, igrejas com pessoas mais pobres, muitas sem escolaridade completa, outras mais elitistas, com pastores que têm formação acadêmica.
Quando você cruza essas relações, existe sim o preconceito, mas ele vem carregado por questões de classe, por questões raciais – considerando que muitas das igrejas mais pobres e periféricas têm uma presença negra muito forte. Nesse contexto, muitas vezes os evangélicos são vistos como bitolados, alienados, há uma generalização dos evangélicos. Mas tudo isso é completamente diferente do discurso da cristofobia.
Esse discurso não se aplica porque compara de forma equivocada o Brasil a países onde de fato há perseguições contra cristãos (o Brasil não está entre os países que mais perseguem cristãos, como mostra este ranking). No Brasil, os evangélicos conservadores e fundamentalistas estão massivamente dentro do governo. É absolutamente contraditório falar que existe cristofobia ao mesmo tempo em que esse grupo religioso tem nas mãos todo o aparato de poder do Estado.
Cristofobia poderia ser comparada à ideia de racismo reverso?
É algo que está no mesmo campo. A ideia do racismo reverso, de alguma forma, por mais esdrúxula que seja, tenta reconhecer que o racismo existe e é uma mentalidade generalizada. A gravidade desse conceito de cristofobia é que não reconhece essa mentalidade preconceituosa que atinge grupos diversos. Ela assume um lugar de uma suposta vulnerabilidade e perseguição de um grupo específico, que seria o cristão e sobretudo evangélico. É um equívoco similar, mas com esse agravante, que na minha opinião é extremamente significativo e perigoso.
Bolsonaro também falou, no mesmo discurso na ONU, que o Brasil é um país cristão e conservador, embora o Estado seja laico. Qual o simbolismo dessa afirmação diante da comunidade internacional?
A ênfase do presidente, até agora, era de que o Estado era laico, embora o governo fosse cristão. Cada vez mais ele vai abandonando esse tipo de discurso e vai assumindo para a comunidade internacional, anunciando o Brasil como um país que tem uma identidade ideológica e religiosa – ou seja, ele é cristão e conservador. Dizer isso frente à comunidade internacional é subjugar toda a diversidade que existe na sociedade brasileira e ao mesmo tempo é a afirmação de uma supremacia religiosa cristã, que é parte desse projeto de governo.
Na prática, o fundamentalismo cristão, que cresce no país representado por lideranças como Bolsonaro, estimula o preconceito contra outras religiões, como as de matriz africana?
O fundamentalismo religioso promove a manutenção do preconceito histórico contra as religiões de matriz africana, atravessadas pelo racismo no Brasil. Quando Bolsonaro diz que embora o Estado seja laico, o país é cristão e conservador, está suprimindo sobretudo as religiões mais perseguidas e vulnerabilizadas no contexto religioso brasileiro. Essa postura é perniciosa e nociva para a própria pluralidade social, não apenas do ponto de vista das crenças.
Não é apenas a convicção religiosa do presidente ou de integrantes do governo que é cristã. Mais do que a convicção religiosa é a construção de um projeto político que passa pela perspectiva religiosa imposta, de maneira generalizada, para a sociedade, para as políticas públicas, para o reconhecimento de grupos e minorias sociais.
É um impacto muito maior do que o religioso. Há o não reconhecimento da presença da diversidade religiosa. Há o não reconhecimento das violências sofridas pelas religiões de matriz africanas. Mas também há uma ameaça às liberdades individuais, quando as propostas do governo são feitas sob o crivo de perspectivas cristãs fundamentalistas e conservadoras.
O aumento de denúncias de intolerância religiosa, sobretudo com ataques a terreiros e outros relatos violentos, tem relação com isso?
Os ataques contra religiões de matriz africana aumentaram no Brasil e isso está ligado à um ambiente mais violento e persecutório. Na medida que existe uma negação sistemática da perseguição e da violência, e não há uma política pública que reconheça essas ameaças, estamos contribuindo para um ambiente de violência crescente.
Em discurso gravado para a 75ª Assembleia Geral da ONU, presidente fala em cristofobia, afirma que país é cristão, mas não cita existência de outras religiões no Brasil (Foto: Fotos Públicas/Marcos Corrêa)
Até meados de 2010, o debate da intolerância religiosa estava fortalecido. Houve, sem sombra de dúvida, um retrocesso, com o aumento de relatos tanto de violência física quanto agressões verbais contra religiões de matriz africana. Isso, sem dúvida, é fruto de um ambiente de violência e de preconceito criado pelo atual governo também.
Você falou de um projeto de supremacia cristã. Pode explicar melhor esse conceito?
O campo evangélico sempre esteve na disputa da esfera pública, da influência do poder político. Mas agora é como se estivessem numa grande virada. Há um projeto de supremacia muito claro, de ênfase na valorização de uma ideia de perseguição religiosa, como um espelhamento do que acontece nos Estados Unidos, onde práticas cristãs em escolas públicas estão em debate, por exemplo.
Nesse projeto de supremacia, os cristãos conservadores estão ocupando cargos estratégicos no governo Bolsonaro – na Educação, na Justiça, nos Direitos Humanos, na Capes, na Defensoria Pública da União, no Conselho Nacional de Educação. Também nas Relações Exteriores, com Ernesto Araújo, que tem sido a ponta de lança de uma grande aliança global pela liberdade religiosa, que na verdade se restringe à maior força da liberdade cristã e da ingerência do cristianismo na sociedade. É um projeto de supremacia clara, onde a grande coroação vai ser a presença no Supremo Tribunal Federal.
O chamamento do presidente para combater a cristofobia é uma estratégia eleitoreira?
É algo que se conecta com o projeto de supremacia coordenado com outras nações como Estados Unidos, Hungria. A estratégia eleitoreira vem à reboque. A cristofobia pode ser usada para blindar candidaturas e pautas ultraconservadoras. É um termo que pode ser aplicado em qualquer coisa.
Um debate com relação a discursos homofóbicos – o que é crença, o que é discurso de ódio – pode ser enquadrado como cristofobia. Um debate sobre política de drogas e funcionamento de comunidades terapêuticas, por exemplo. Qualquer discussão que coloque em xeque práticas de comunidades terapêuticas cristãs, que não respeitem o mínimo da política de saúde mental, podem ser enquadrados dentro de uma perspectiva de cristofobia.
Na segurança, com relação aos excessos da polícia, em projetos de lei e ordem. Na educação, onde o conselho nacional [o CNE] está impregnado da presença evangélica conservadora, qualquer resistência à moral e aos valores cristãos pode ser interpretada assim. Seria cristofóbico todo aquele que questiona a agenda ultraconservadora. Nessa perspectiva, o termo cristofobia serve para blindar qualquer tipo de proposta e, provavelmente, vai ser usado como estratégia eleitoral decisiva nas próximas eleições.
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Debate sobre cristofobia é estratégico para candidaturas ultraconservadoras. Entrevista com o teólogo Ronilso Pacheco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU