23 Novembro 2020
Nascida e criada em Curitiba, a professora Carol Dartora, de 37 anos, sempre precisou responder a uma pergunta incômoda: de onde você veio? Entre praças e monumentos que homenageiam países europeus, suas tranças e turbantes afro faziam dela uma estrangeira em sua própria terra.
A sensação de não pertencimento serviu de combustível para Carol entrar na política e tentar, assim, construir uma cidade mais democrática. No último domingo (15/11), ela se tornou a primeira mulher negra eleita para a Câmara dos Vereadores de Curitiba, pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Foram mais de 8 mil votos, a terceira maior votação entre os vereadores eleitos na cidade.
Em entrevista à DW Brasil, ela fala sobre a decisão de ingressar na política, o exemplo da vereadora carioca assassinada Marielle Franco, o debate sobre racismo em sala de aula, o preconceito dentro do próprio campo progressista e questiona o mito do "Sul civilizado". Nesta quinta-feira, véspera do Dia da Consciência Negra, um homem negro morreu após ser espancado por seguranças de um supermercado no Rio Grande do Sul. Em Joinville (SC), a professora Ana Lúcia Martins (PT), primeira mulher negra eleita na cidade, recebeu ameaças de morte nas redes sociais após a vitória nas urnas.
"O racismo está no Brasil inteiro, mas aqui em Curitiba realmente é muito pesado. Sou uma mulher preta que nasceu e viveu boa parte da vida aqui, com quase toda a minha família. A cidade te expulsa", diz ela, apontando que o fato de a cidade nunca ter elegido uma mulher negra parecia ser um "muro intransponível".
A entrevista é de João Pedro Soares, publicado por Deutsche Welle, 20-11-2020.
Como veio a decisão de entrar para a política?
Por ser historiadora, fui convidada para dar uma aula de história da mulher na política brasileira num curso de formação política para mulheres. Eu vim mostrando todas as ondas do feminismo, o quanto as mulheres foram galgando esses passos com muita dificuldade, por toda a dificuldade de gênero, chegando à questão racial, com as mulheres negras ainda mais excluídas desse processo. Eu falava especificamente de como as mulheres fazem muita política na base, sobretudo as negras, mas não são vistas como lideranças para ocupar esses cargo e têm dificuldade nos partidos, que também são atravessados pelo racismo e machismo estruturais. Essas disputas são feitas inclusive internamente, com muita dificuldade.
Falaram, então: "Nossa, Carol, você faz todos esses debates, atua há tanto tempo, e quantas vezes já se candidatou?" Aí foi o estopim: de que adianta ficar a vida inteira sem botar o pé na porta e sem falar "não, agora é nossa vez"? O coletivo político que eu integro entendeu também que era hora de fazer essa disputa.
Como primeira mulher negra eleita em Curitiba, você sente que o racismo é mais forte no Sul do Brasil?
O racismo está no Brasil inteiro, mas já estive no Rio de Janeiro e em São Paulo, e sinto que estas e outras capitais são mais democráticas, com menor hostilidade. Aqui em Curitiba, realmente é muito pesado. Sou uma mulher preta que nasceu e viveu boa parte da vida aqui, com quase toda a minha família. A cidade te expulsa. No meu cotidiano, indo para a escola dar aula, já começa quando você pisa na rua, e as pessoas vêm perguntar: "De onde você veio?" O mesmo acontece entre colegas de trabalho. Essa pergunta pressupõe a ideia de que, se você é negro, com certeza não deve ser daqui.
Acontece mesmo isso, e a cidade tem umas assimetrias muito grandes. Há bairros em que os índices de qualidade de vida se comparam aos da Europa, enquanto outros apresentam uma precariedade grande, com IDH super baixo. Curitiba tem essas desigualdades e tenta esconder isso, desde a forma como o território da cidade é ocupado.
A população pobre e negra é empurrada para as periferias e outras cidades da região metropolitana. A região norte é mais valorizada, então um imóvel é muito mais caro, embora não tenha o mesmo tamanho que outro da região sul. Curitiba é segregada racialmente. Aqui, todo mundo sabe em que lugares você encontra os negros e onde não encontra.
Quem vem de fora para fazer turismo na cidade fica com a impressão de que não tem negros e é uma cidade europeia. Na volta turística, a pessoa vai ver a Praça da Espanha, a Praça da Ucrânia e o Bosque Alemão, vai sair com essa impressão que a cidade causa e cria. Eu sinto arrepios quando ouço esse discurso de que Curitiba é "civilizada”. A gente sabe o que está por trás disso. É uma política higienista que se empreende aqui. Tentam esconder a população em situação de rua, e dizem que Curitiba é "limpa”. É uma cidade pesada mesmo nesse sentido.
Minha campanha foi trazendo todas essas denúncias da falta de direito à cidade, democratização dessa vida urbana tão complicada, da violência policial contra a juventude negra e o apagamento das expressões culturais.
O Carnaval em Curitiba sempre foi muito atacado. É uma festa com pouco aporte e muita organização popular, que sempre precisou resistir muito para existir. É pequeno perto das outras capitais, mas justamente por essa razão. Curitiba é tudo isso.
Foi fazendo essas denúncias que atingi tantas pessoas, e elas se sentiram representadas. Na campanha, usei a mensagem de que deveríamos ter uma vida urbana que nos faça sentir pertencentes e felizes. Esse sentimento é uma linguagem que a cidade constrói, é como ela se organiza e nos impõe esse sentimento de não sermos acolhidos pela cidade em que nascemos. Eu sou uma mulher preta curitibana, como vina (salsicha), falo "leitE quentE”, e espera-se que eu me sinta parte da cidade. Muitas pessoas se viram nessa construção — ou desconstrução, na verdade.
Como você leva essas questões para sala de aula?
Eu sempre fiz todos os debates que achava que tinha que fazer em sala de aula, e acredito totalmente no poder da educação. A minha principal proposta de campanha é promover a educação social. No fazer político, informando e politizando a sociedade, uso muito da prática que já tenho em sala de aula.
As pessoas me perguntam muito se é possível superar o racismo e o machismo. Pela minha experiência em sala de aula, eu digo que sim. Tive muitos alunos entrando em sala sem entender por que políticas de cotas e reparação são importantes. Construindo novas consciências e trazendo a realidade histórica, é possível mudar muita coisa. Tive a grata satisfação de ter visto isso nos meus alunos. Além de dar aula, palestras e formações que faço pela cidade em coletivos universitários e feministas.
Acredito muito mesmo no poder da educação e que o professor deve ter a perspectiva da superação e da esperança. Sem isso, a gente também não alcança nada. Não adianta você trabalhar sem achar que determinadas situações podem ser superadas. Se você não tiver essa perspectiva da superação, perde o sentido. Foi isso que me trouxe até aqui.
Eu fiz a denúncia de que Curitiba nunca tinha eleito uma mulher negra, um muro que parecia intransponível. Todo mundo que olhava para a campanha no início dela pensava: nossa, como fazer para superar essa barreira? Pensando que sou uma mulher do Partido dos Trabalhadores (PT), feminista, negra, e que Curitiba nunca elegeu uma mulher negra, pareciam barreiras intransponíveis.
Mas o que a gente tinha era a superação, sem perder a esperança, fazendo essa denúncia e construindo a possibilidade. Porque aí a gente falava: Curitiba nunca teve uma vereadora negra, vamos mudar essa história. E no fim da campanha, quando a gente sentiu que ela estava grande, crescendo, as pessoas me viam na rua e falavam: "Carol, vou votar em você, a gente vai fazer história".
Eu já promovi reeducação social na campanha. Acredito totalmente no poder da educação. Sou professora e sempre defendi a educação pública. Estudei em escola pública, fiz faculdade e mestrado em universidade pública, e agora sou doutoranda. É este o poder do professor, da palavra, o poder de ensinar. São estes os nossos mecanismos, nossos canais.
Para o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores, o debate de ideias deve ficar de fora da sala de aula, que deve ser um espaço livre de "doutrinação". Como você reage a isso?
Com esse tipo de coisa, a gente não conversa. Como conversar com o ódio? Tem que haver minimamente uma abertura para estabelecer um diálogo. Não tem como dialogar com esse tipo de postura, de alguém que está fechado para aprender. Tem uma coisa maravilhosa que vejo na infância e juventude, que é o lugar de semear a transformação, por conta da mente aberta para a possibilidade de aprender novas coisas. Quando você tem uma criatura fechada para qualquer coisa, não adianta insistir.
E acho que o Bolsonaro tem sido pedagógico, ele também ensina. Por incrível que pareça, muitas pessoas vieram falar comigo na rua dizendo que iam votar em mim, mas tinham votado no Bolsonaro. Elas diziam ter consciência do erro que cometeram, sem saber o que estavam fazendo, por estarem cansadas da política. Não foram nem uma, nem duas pessoas que falaram isso, dizendo ter percebido a importância de olhar para o projeto político da pessoa.
Tudo aquilo do Bolsonaro parecia brincadeira, mas não existe nada da boca pra fora, né? As pessoas se iludiam pensando que era assim. Tanto não era, que ele está empreendendo essa política de morte, de deixar morrer e não fazer nada. Vimos isso na pandemia. A gente está batendo números altíssimos de desemprego e voltando para o Mapa da Fome, com a juventude negra sendo exterminada. E ele falando que não está nem aí, tem que matar mesmo, armar a população.
As pessoas estão vendo, então ele é pedagógico. É claro que ele deu voz a esses discursos de ódio, mas a gente está nesse momento de conflito social e de valores na sociedade brasileira. Temos esses discursos e contra-discursos postos na sociedade. É um momento de transformação, e por isso vemos coisas como Curitiba me elegendo a primeira vereadora negra da cidade, ao mesmo tempo que reelege o prefeito que representa tudo o que estou tentando desconstruir. O conflito está posto, e sem ele a gente não avança.
As eleições municipais já mostraram uma maior compreensão das pessoas quanto à necessidade de superar algumas exclusões, tanto que tivemos mulheres, inclusive trans, eleitas pela primeira vez em várias cidades. Foi um show, e acredito que isso vá avançar para as eleições presidenciais.
Após essa onda de mulheres negras eleitas, como é possível aumentar a capilaridade de novas candidaturas? No Rio de Marielle Franco, apenas duas mulheres negras foram eleitas.
Acho que esse movimento tende a se fortalecer. A partir do momento que se quebram algumas barreiras, as próximas mulheres não vão ter que quebrar esse muro tão grande que eu enfrentei, por exemplo, essa pecha de que nunca teve alguém antes. É uma porta que já foi aberta. O movimento tende a crescer, mas ainda encontra muita resistência.
A professora Ana Lúcia Martins (PT), primeira vereadora negra eleita em Joinville, já sofreu uma série de ameaças e ataques racistas. Como já falei, a gente tem esse conflito social, essa crise de valores no Brasil. Porém, precisamos avançar. Não vai dar mais pra falar em democracia com tanta sub-representação, tantas pessoas excluídas desse processo. Isso não é democracia. Se a gente tem como perspectiva buscar a igualdade no país, com cidades melhores para todos viverem, vamos ter que superar essa barreira.
Acho uma pena que o Rio não tenha eleito mais que uma mulher. É possível que a violência policial e o medo do crime político contra a Marielle desestimule candidaturas.
Nesse contexto, você sente medo?
Eu sou muito otimista e corajosa, e já estou recebendo mensagens para eu parar de falar o que estou falando devido a esse caso de Joinville. Eu falei: não quero nem pensar nisso, porque não me passa pela cabeça que alguma coisa ruim vá acontecer, e espero que não.
A Marielle foi uma inspiração para você entrar na política?
A Marielle é um exemplo em muitos sentidos. Começa pelo fato de que eu não sabia quem era ela. Foi um sinal para mim ela ser a potência que era, quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro, e eu só ficar sabendo quando ela foi assassinada. É a amostra de tudo o que a gente diz sobre a invisibilidade da nossa atuação, das mulheres negras e tudo o que a gente constrói.
O primeiro sinal foi este: como eu não sabia dessa mulher e fico sabendo só agora, com este crime horrível? Ela também foi um fator de indignação. Então, quando a gente consegue chegar lá, com muito esforço, a gente tem que ser apagada e, nossa voz, silenciada, para não falar o que precisa ser dito.
Para todas as mulheres negras e todos que, no mundo, têm esse entendimento, causou muita indignação. Nesse sentido, a gente se uniu, conseguimos fazer conexões e criar uma rede para sustentar essas candidaturas de mulheres que estão se colocando em um espaço tão violento que é a política.
Aqui em Curitiba, a gente tem um movimento de mulheres negras, e todo mês de julho a gente faz debates a respeito do que é a vida da mulher negra, do quanto a gente é sub-representado e precisa estar nesses espaços. É uma construção que vem sendo feita há quatro anos e, depois da morte da Marielle, intensificou-se mais ainda. Sem dúvidas, ela é um exemplo e tem uma influência em vários sentidos. Essa ligação mal explicada do governo Bolsonaro com a morte da Marielle causa muita indignação e nos coloca em movimento.
Você foi a candidata mais votada do PT e puxou outros dois nomes do partido. Apesar desse desempenho, você recebeu a menor verba de campanha entre os três. Como você sente o racismo dentro do campo progressista?
Eu tenho dito que o campo progressista tem que abraçar a pauta racial e as lideranças negras. O machismo e o racismo também passam pelo interior dos partidos. É claro que a minha candidatura não era tida como a mais viável, e não fui vista como a aposta. Por isso que minha verba era menor e não era acreditada por todas as dificuldades que apresentei aqui. Foi preciso muita estratégia para construir minha campanha. E a esquerda vai ter que entender que, se a gente não falar daquilo que toca a vida das pessoas e não oferecer a elas o que as pessoas querem, colocando legitimidade em nosso discurso, a esquerda vai morrer. É preciso abraçar as lideranças negras e mulheres. Somos nós que estamos na base.
Eu falo na importância da legitimidade, porque quantos anos mais a esquerda vai ficar falando na boca de um homem branco, com mais de 45 anos, que é preciso superar o racismo e o machismo? É diferente eu falar que a gente tem que superar o racismo, construir políticas antirracistas, superar desigualdades. O discurso fica mais forte, ganha legitimidade. O anseio das pessoas é este, ver a transformação acontecendo. É o que acontece quando elas me veem nesse lugar.
Se a esquerda quiser continuar com seus caciques históricos, sem nunca se mover, querendo falar de desigualdade, sem promover de fato a transformação, para que as pessoas possam ver isso esteticamente, fica complicado. Esses 8 mil votos na terra da Lava Jato mostram que eu consegui superar o antipetismo e não tive voto só de pessoas que se declaram de esquerda. É a transformação que as pessoas querem ver.
Você está sempre sorridente. É possível encontrar leveza em meio a tantas lutas?
A luta é para ser feliz. É muito simples. A luta é para se sentir bem, e é isso que venho trazendo em minha trajetória. O meu sentimento de infelicidade, de não pertencimento a essa cidade, foi me levando em busca de ser feliz, me sentir bem, e política serve para isso, promover o bem-estar das pessoas. Se não é este o objetivo, qual é? Política é muito simples, é basicamente isso.
O problema é que a gente tem a não promoção do bem viver, do bem-estar. Isso é a antipolítica, a necropolítica, a política do deixar morrer. Eu quero ser feliz e compreendi que essa minha busca por felicidade é a de várias outras pessoas. Porém, temos que construir instrumentos e mecanismos, como a administração pública. Foi isso que eu compreendi e tento mostrar para as outras pessoas.
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“A eleição de uma mulher negra parecia um muro intransponível”. Primeira mulher negra eleita vereadora em Curitiba fala sobre o racismo na cidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU