Por: Patricia Fachin | 18 Setembro 2017
A história, especialmente os séculos 19 e 20, nos mostra que o desejo de sermos governados por um “salvador da pátria”, seja a partir da política ou da justiça, nos conduz a um estado já conhecido. “O século 19 conheceu Napoleão, um dos que prometeram o céu aos europeus, mas entregou o inferno. O século 20 suscitou Mussolini, Hitler, Stalin, Franco, Salazar e uma rede ditatorial que prometia vencer a corrupção, atingir o desenvolvimento econômico, estabelecer a justiça distributiva pelo poder das armas, da censura, das prisões, torturas, no estado de exceção”, lembra Roberto Romano. As ditaduras do século passado, compara, “têm a mesma configuração dos justiceiros que se multiplicam no século 21” e o resultado, adverte, é que o “mundo e o Brasil estão grávidos de fascismo, novamente”.
No caso brasileiro, menciona, pode-se adicionar ainda uma dose de falta de responsabilidade republicana, que está na raiz da formação do país. “Surgimos politicamente à margem e contra as conquistas revolucionárias modernas. Nunca tivemos accountability como a instaurada na revolução inglesa e puritana dos séculos 17 (incluindo depois os EUA e a França). Jamais nossos governantes foram obrigados a prestar contas à cidadania. Ignoramos as conquistas sociais trazidas no bojo das revoluções socialistas do século 20, mantivemos todos os trejeitos e privilégios que nos foram impostos pelos colonizadores: centralização sem peias no âmbito federal em desfavor das regiões, manutenção de prerrogativas deletérias como a de foro, a prática universalizada do favor, uma burocracia que serve mais aos que detêm o poder do que ao cidadão”, resume.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo analisa a conjuntura brasileira, comenta os desdobramentos da Lava Jato, a atuação do judiciário e a expectativa para a eleição do próximo ano. “A crise não é do momento. Ela tem raízes históricas no Estado e na sociedade do Brasil. Em 2018 nada será mudado em termos substanciais. Nenhum partido ou movimento apresenta um projeto novo de nação independente e soberana”, conclui.
Roberto Romano em evento no IHU
Foto: Ricardo Machado | Acervo IHU
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que leitura o senhor faz da atual conjuntura política? Qual sua percepção sobre esse momento político do país?
Roberto Romano - Desde várias décadas constato e digo que o Estado, como ele existe após sua invenção moderna, sofre uma crise inédita. Todos os aparelhos de controle público do mundo, desde a Guerra Fria, sofrem desgastes em suas engrenagens. Vejamos os famosos monopólios estatais. Nenhum Estado consegue hoje manter a ficção jurídica de que pode controlar os corpos dos governados – o monopólio absoluto da força – porque é mais do que evidente o peso do terrorismo, coberto de vários matizes religiosos e ideológicos. Não menos clara é a presença de quadrilhas que negociam drogas, armas, seres humanos em mercados de escravos. Poderes nacionais como os EUA usam tropas mercenárias que operam fora das leis. A ONU demonstra fragilidade maior do que a exibida pela débil Liga das Nações, que não impediu o imperialismo de antigas políticas europeias e a emergência de poderes totalitários. Nenhum Estado, além disso, consegue manter a ficção de ser monopolista da norma jurídica.
Mais do que nunca repetimos o drama narrado por Tucídides. Na ilha de Melos, diante do apelo dos derrotados aos deuses e às leis, às regras éticas e ao convívio civilizado, os vencedores proclamam: “sabemos, e vocês sabem tanto quanto nós, que a justiça só é levada em conta se a necessidade for igual. Sempre que uns possuem mais força e podem usá-la como puderem, os mais fracos arrumam-se como podem”. E dizem ainda os de Atenas: “alguns, por necessidade de natureza, dominam em toda parte segundo a força que tiverem. Não fizemos tal lei e nem somos os primeiros a usá-la. Mas a encontramos e a deixaremos para a posteridade, para sempre. A usamos sabendo que vocês também a usariam e todos os outros que tivessem o mesmo poder”. Por fim, nenhum Estado pode na atualidade reclamar para si o monopólio do controle financeiro, dos impostos e taxas. A lavagem planetária de dinheiro, a corrupção empresarial e política atingiram planos inimagináveis.
Se nenhum Estado pode se jactar dos míticos monopólios indicados, todos eles enfrentam tarefas inéditas. Desde o século 17, mas sobretudo a partir do 20, a Terra assiste a uma concentração urbana como nunca ocorreu na história. Tais aglomerados exigem políticas caríssimas para o corpo e para a alma. Alimentar, alojar, assistir no plano da saúde, da segurança, da educação, do lazer custa muito em termos financeiros, científicos, humanos. Como a arrecadação não basta para suprir tantos quesitos e os recursos tecnológicos são insuficientes, as massas são concentradas em espaços naturais que se desgastam rápido, dada a predação da natureza no ar, na água, na terra. A tendência geral é para a insatisfação coletiva, a revolta contra a desqualificação própria e coletiva, a busca de milagres na ordem política e social. A carência universalizada carrega a volúpia do autoritarismo voluntarioso, a entrega a um líder que prometa o paraíso às custas dos “inimigos” que ameaçariam os seus legítimos donos. Sartre ainda é estratégico em semelhante ponto: a escassez (rareté) de matérias-primas é potencializada pela escassez (disette) na distribuição de bens como alimentos e demais itens. Segue-se a abdicação da liberdade nas mãos de salvadores. Sim, os conceitos trazidos pelo autor da Crítica da razão dialética são imprecisos em termos econômicos. Mas eles captam perfeitamente a gênese dos regimes truculentos que dominaram os séculos passados e ameaçam o presente e o futuro.
O século 19 conheceu Napoleão, um dos que prometeram o céu aos europeus, mas entregou o inferno. O século 20 suscitou Mussolini, Hitler, Stalin, Franco, Salazar e uma rede ditatorial que prometia vencer a corrupção, atingir o desenvolvimento econômico, estabelecer a justiça distributiva pelo poder das armas, da censura, das prisões, torturas, no estado de exceção. O Brasil seguiu a regra com duas ditaduras ferozes. Nossa situação piorou desde o fim oficial dos regimes de força. Basta recordar que em 60% dos nossos municípios falta esgoto digno do nome. Em outros setores da política pública o descalabro é similar. O descontentamento continua gerando o desejo da força ditatorial, do milagre, do salvador. Com milhões de pessoas desempregadas, jogadas ao desespero, as massas estão prontas para o advento do estado de exceção que apenas formaliza a excepcionalidade vivida na prática.
Mundo e Brasil estão grávidos de fascismo, novamente. Sem dinheiro em caixa, os genocidas de boa consciência anunciam sempre uma idêntica mezinha caseira: a privatização de tudo, inclusive da água. Tudo se transforma em moeda corrente nos cofres dos governos, nada escapa à fúria privatista, que aumenta a miséria das multidões em favor dos poucos abençoados pela riqueza e poder.
A burocracia insensível e tosca que nos rege se acumplicia com dirigentes políticos tirânicos (“tirano é quem usa os bens dos governados como se fossem seus”, lição platônica, tomista, retomada por Jean Bodin), gera a fome de justiça traduzida nos salvadores. Quando falta o Soter político como no momento atual (o único com acolhida popular é Lula), brota o justiceiro na figura de Joaquim Barbosa, Sergio Moro, Jair Bolsonaro. O mecanismo totalitário é conhecido. Foi descrito por G. Orwell, W. Reich, E. Canetti, H. Arendt, Cl. Lefort, A. Camus e outros. Mas desmontar tal aparato é tarefa quase impossível. Os que se apossaram do poder com o impeachment de Rousseff laboram de modo célere para a retomada ditatorial. Sua desculpa não reside mais na pátria, nação, classe trabalhadora, salus populi. Eles vivem para a saúde eterna do mercado em detrimento das massas famintas. Daí o genocídio que patrocinam: no mercado, no emprego, na aposentadoria, no corte de verbas para a saúde, segurança, educação.
O massacre sine ira et studio dos indígenas, a venda acelerada do patrimônio natural aos piratas do capitalismo, tudo prenuncia um regime ditatorial monstruoso. O genocídio contra os indígenas, os quilombolas, os sem emprego que hoje ajudam na formação de um enorme exército de reserva dos sem futuro, para satisfazer o capital financeiro. Vem o último assalto às florestas, aos rios, aos minerais e vegetais que antes prometiam vida aos “negativamente privilegiados”. A corrosão da natureza e do caráter humano tem no atual governo brasileiro o seu ícone perfeito. E os setores democráticos, divididos e com vistas curtas, sem nenhuma virtù, apelam impotentes aos deuses e à Fortuna.
IHU On-Line - Quais o senhor diria que são as causas e os elementos centrais que conduziram o Brasil ao estado em que se encontra hoje?
Roberto Romano - Surgimos politicamente à margem e contra as conquistas revolucionárias modernas. Nunca tivemos accountability como a instaurada na revolução inglesa e puritana dos séculos 17 (incluindo depois os EUA e a França). Jamais nossos governantes foram obrigados a prestar contas à cidadania. Ignoramos as conquistas sociais trazidas no bojo das revoluções socialistas do século 20, mantivemos todos os trejeitos e privilégios que nos foram impostos pelos colonizadores: centralização sem peias no âmbito federal em desfavor das regiões, manutenção de prerrogativas deletérias como a de foro, a prática universalizada do favor, uma burocracia que serve mais aos que detêm o poder do que ao cidadão. Se todos os Estados passam por uma crise inédita, o brasileiro chega ao máximo como instrumento a serviço de uma pequena franja da população que age e pensa como os donos de escravos: cabe a ela todos os recursos. A selvageria da classe média endinheirada atinge patamares insuspeitados. Basta visitar algum shopping center de luxo para ver o quanto os agraciados pela desordem vigente agem como bestas feras, ignoram as mínimas normas de convívio civil. No mesmo passo em que se movem como bichos, berram slogans contra a corrupção, cantam as vantagens dos remédios ditatoriais.
Nossa sociedade, bem de acordo com o Estado que nos controla, é indecente. E não uso tal palavra em vão. Recomendo a leitura de um libelo contra coletivos similares ao nosso: “Being Beastly to Humans”, capítulo estratégico do livro escrito por Avishai Margali, The decent society. Se Platão, nas Leis, recomenda ensinar aos jovens a diferença entre a caça aos animais e a caça aos humanos, tal lição jamais foi ouvida no Brasil. Aqui homossexuais, negros, índios, moradores de rua são mortos em escala bélica e os moços “bem-nascidos” pilotam celulares “inteligentes” para perseguir e assassinar moral ou mesmo fisicamente. Se o bom Santo Agostinho dizia que todo reino é uma quadrilha em grande escala, a nossa sociedade (merecemos de fato tal nome?) e o nosso Estado reúnem quadrilhas familiares que pioram os procedimentos autocráticos modernos. Colhemos os frutos de quinhentos anos sob a égide da injustiça, da tirania, do arbítrio. Quinhentos anos intensificados pela técnica da qual somos consumidores, nunca produtores.
IHU On-Line - Diante da revelação de tantos casos de corrupção no sistema político brasileiro, envolvendo o setor público e o setor privado, a política cai em descrédito. Como podemos voltar a acreditar na política ou a recuperar seu valor daqui para frente?
Roberto Romano - “Política” é palavra particularmente dotada de polissemia. Dizer “a” política, no singular, traz o risco de perder a riqueza do termo e das ações nele sugeridas. No Brasil, ela tende a se confundir com a posse, durante algum tempo ou em muitos anos, dos meios de imposição diretiva e dominação pela força, uso privado de leis e impostos. Como se trata de um sistema feito para favorecer minorias, o aspecto oligárquico prima sobre o democrático. Daí que “política” e “políticos” são termos que remetem, entre nós, a um grupo de pessoas que dominam os instrumentos de soberania sem prestar contas aos que sustentam o aparato do Estado. Empresários que usam o capital, em bilhões, dos contribuintes e se postam acima das leis, corporações que exigem privilégios como se fossem algo devido, formam a moldura do que se entende por “política” no país. Tal modo de agir nunca precisou de crédito popular ou fé pública. Ele sempre se firmou em golpes de Estado (incluindo aí os famosos “planos econômicos”) definidos na calada da noite e no silêncio dos palácios. A cidadania nunca acreditou em tal política. Ela sempre buscou um salvador ou justiceiro que a livrasse de semelhantes algozes.
O truque usado pelos tiranos dos gabinetes é simples: apresentam-se como salvadores dos pobres e depois desempenham o papel de salvadores dos ricos. Como tal dialética tende a se desgastar, nos intervalos de um ou outro salvacionismo as mesmas forças geram os justiceiros que agiriam contra os malefícios causados pelos privilégios. Foi assim que medraram os Vargas, os Quadros, os militares, os Collors e, muito provavelmente, os Barbosas, os Moros, os Dalagnóis. Com as heresias contrárias à responsabilidade pública, à democracia, vem o “antídoto” das inquisições. As ditaduras do século 20 têm a mesma configuração dos justiceiros que se multiplicam no século 21. A república dos quartéis e a de Curitiba nascem do mesmo útero que fabrica o autoritarismo.
IHU On-Line - Também há um descrédito em relação ao Judiciário, ou nesse caso a situação é diferente?
Roberto Romano - Defendo com vigor o sistema de justiça, a começar com a promotoria e a defesa. Não existe justiça digna de tal nome se os três ângulos dos tribunais deixam de operar em harmonia tensa. Sem acusação idônea, baseada em provas objetivas, o crime prospera. Sem a defesa com todas as suas garantias, o arbítrio reina. Sem juízes imparciais e alheios às ideologias, religiões, idiossincrasias éticas, os julgamentos se transformam em cruéis farsas.
A história da justiça brasileira é pouco edificante. Um detalhe mostra a violência de muitos agentes judiciários. Todos eles exigem ser chamados de “doutor” mesmo sendo apenas bacharéis em direito. Muitos juízes negam ouvir acusados, se não escutam deles o apelativo “excelência”. Nos últimos interrogatórios de Luiz Inácio da Silva, promotores a ele se dirigiram como “senhor”, deixando ostensivamente de lado o “presidente” exigido pelo protocolo. A mesma arrogância se mostrou quando o ex-chefe de Estado se dirigiu, sem malícia e premido pelo interrogatório inquisitorial, a uma promotora, como “querida”. Moro dele exigiu que tratasse a inquisidora com o título doutoral. Detalhe: o chamou de “senhor ex-presidente”. Errou. O correto é “presidente”.
Tais funcionários não suportam nenhuma quebra protocolar no que lhes diz respeito. Mas sentem-se à vontade para humilhar quem não está mais nos palácios. Um defeito ético grave reside em tais atitudes, que evidenciam gosto de poder baseado na força. Até o julgamento final, em última instância, Luiz Inácio é presidente e assim deve ser tratado. Não é apenas uma questão menor, mas diz respeito aos cidadãos que nele votaram para dirigir o país. Mas se o comportamento de semelhantes operadores da justiça lhes traz admiração momentânea da mídia e justiceiros fascistas, sua arrogância lhes acarreta a desconfiança do cidadão comum, o “leigo” como eles gostam de falar.
Como diz o ministro Ayres Britto, “etiqueta é uma ética de bolso”. Quem falta à etiqueta em nome da própria importância ou da sua relevante função, fere a ética. Sobre o orgulho luciferino dos que se imaginam proprietários do bem público, escrevi um artigo extenso anos atrás. Talvez sua leitura ajude o convívio respeitoso no que resta de trato polido entre nós: “Os laços do orgulho, reflexões sobre a política e o mal”.
IHU On-Line - Como o senhor avaliou o episódio da absolvição da chapa Dilma-Temer? A decisão lhe pareceu correta ou não? Por quê?
Roberto Romano - Foi um espetáculo bufo e trágico que escancarou a parcialidade no trato jurídico. A mentirosa razão de Estado dispensou a análise de provas, evidências, lógica. Mas tal procedimento teve o aplauso envergonhado de muitos setores postos à esquerda, porque salvou Rousseff com seu companheiro de chapa. O realismo político mata toda veleidade de trato reto, em qualquer ponto da paleta ideológica. Digamos que o “julgamento” em questão mostrou o lado escondido do Retrato de Dorian Gray, o vezo de servir como instrumento a serviço da tirania. Ao assistir a íntegra daquela peça, reli dois textos terríveis. O primeiro é o clássico Atrocious Judges, lives of judges infamous as tools of tyrants and instruments of opression (1856), e o capítulo de Elias Canetti (Massa e Poder), dedicado ao presidente Schreber. O episódio poderia ser usado como referência nos dois tratados.
IHU On-Line - Na semana passada o procurador Geral da República, Rodrigo Janot, denunciou a cúpula do PMDB no Senado, como Renan, Sarney, Jucá e Lobão, e também alguns membros do PT, como a ex-presidente Dilma, Gleisi, Lula, Palocci, Mantega, sob acusação de organização criminosa. Nesta semana, a PGR pediu a prisão dos irmãos Batista, Saud e Miller. Como o senhor avalia, de um lado, essas denúncias e esse pedido e, de outro, a atuação da PGR e do STF? Alguns avaliam que a atuação do Judiciário em geral tem sido mais política do que jurídica. Compartilha dessa visão?
Roberto Romano - É preciso, na justiça e na política, sempre levar em conta o kayrós, o tempo certo. A lição de prudência trazida pelos gregos e ampliada por Maquiavel serve para aquilatar o acerto ou erro dos atos. Em todas as denúncias determinadas na pergunta acima, o tempo certo primou pela ausência. Elas vieram tarde demais e foram ditadas pela azáfama da crise política. Para o sucesso é preciso planejamento, força ética, rigor contra todos os palacianos. Semelhantes pontos faltaram na ação de procuradores e de seu chefe. A balbúrdia com a delação dos Batista é um exemplo, entre milhares, de açodamento, arrogância e imprudência que não deve ser imitado.
IHU On-Line - Diante dos últimos acontecimentos, como o depoimento dos irmãos Batista, a prisão de Geddel e o depoimento de Palocci, como o senhor está avaliando o desenvolvimento da Lava Jato?
Roberto Romano - Naquela operação existem tentativas de atenuar a corrupção, infelizmente tisnadas pelo messianismo soteriológico de alguns procuradores e juízes. Em determinados momentos, os atos daqueles funcionários se aproximam de procedimentos inquisitoriais, dignos do livro escrito por Nicolau Eymerich. Eles têm “convicções”, o que é bom. Mas tais certezas precisam ser acrescidas de provas objetivas. E para conseguir tais provas, delações não bastam. Caso contrário, temos apenas o mimetismo de tudo o que ocorreu nos tribunais soviéticos de 1936. Os promotores que trabalhavam sob as ordens de Andrei Wyshinsky para “regenerar” a sociedade russa também ostentavam convicções. Eles deixaram de lado a prática jurídica elementar: reus sacra res. Nas Dez Medidas apresentadas em nome do povo brasileiro, fala-se em aceitar provas ilícitas, desde que colhidas de boa-fé. É o subjetivismo no seu esplendor. Devemos apoiar operações como a Lava Jato. Mas lembremos, sempre, que elas são conduzidas por seres humanos, não por entidades angélicas.
IHU On-Line - O que o depoimento do Palocci trouxe de novidade ao cenário da Lava Jato?
Roberto Romano - Nada. Aliás, foi um espetáculo abjeto. Mas recordemos: tal objeção não foi causada pela Lava Jato. Esta última foi um ponto a mais na linha descendente na vida ética do ex-ministro e da esquerda que o levou aos mais elevados cargos. Palocci pertenceu à famosa Libelu, corrente trotskista que assumia a internacional socialista como alvo e princípio. Durante tempos aquele setor foi contrário ao ingresso no PT, pois este último seria uma tática do capitalismo para desviar os fins da revolução. Quando entrou para o PT, após a aceitação dos dirigentes de seu movimento, o jovem médico assumiu a ala exatamente oposta à de seus antigos companheiros. Ele se transformou em realista, a sua primeira abjeção, partilhada aliás por inúmeros quadros que antes do PT viam o proletariado tomando o poder em cada esquina.
A abjeção mais grave começou em Ribeirão Preto, quando ele foi prefeito e assumiu a tarefa de trazer para dentro de seu partido a prática das privatizações. Tal agir lhe trouxe simpatias da direita e do metafísico “mercado”. Depois vieram as denúncias de péssimo uso da coisa pública, com direito a tomates e ervilhas nos lanches estudantis, cujo ganho foi subtraído misteriosamente em não menos misteriosos gastos eleitorais. Depois, veio a tese da união com o empresariado, o qual, diga-se de passagem, nunca deixou de ser golpista desde 1964. E veio a macropolítica econômica, com o superávit primário que subtraiu recursos dos programas sociais, em proveito do mercado. E veio a abjeção das ações truculentas e ilegais contra Francenildo Costa, das quais o ex-ministro saiu ileso e abençoado. Depois... A esquerda, o que fez em todas aquelas ocasiões? Silêncio obsequioso. Poucas vozes se levantaram contra aquele escândalo ambulante. É difícil, hoje, dizer que tudo foi ignorado pela liderança do PT e por seu líder máximo.
Agora o ex-ministro assume o papel mais abjeto ainda de delator a soldo de sua própria soltura da cadeia. Mas ele não foi um estranho no ninho do poder petista. Fazer autocrítica de seu passado significa para a esquerda descer fundo no exame dos desvios éticos cometidos por quadros poderosos, que conduziram a política da esquerda durante os anos de governo. José Genoino, um homem de respeito, disse logo no início do primeiro mandato petista no âmbito federal: “estamos no governo, mas não no poder”. Sábias palavras, mas postas de lado pelos que se embriagaram de realismo político e com a desculpa da governabilidade.
As alianças, hoje execradas por muitos progressistas, eram defendidas com acidez por dirigentes e militantes. Vários alunos meus, que antes do governo Lula diziam lutar pela revolução e contra os corruptos da direita, vieram me ensinar o quanto eram importantes os tratos com Sarney, Barbalho, Temer, ACM e tutti quanti. Mesmo quando Temer foi indicado para vice de Rousseff, o realismo era a tônica dos que entoavam a canção do “é corrupto, mas está conosco no Congresso”. Com as minhas objeções, todos saíam com os ombros erguidos, com pena do velho professor liberal e moralista.
IHU On-Line - Qual é o impacto político do depoimento de Palocci para o meio político, para o ex-presidente Lula e para o PT em geral?
Roberto Romano - O impacto, como disse acima, já veio há muito tempo. Ele é coetâneo da renúncia petista e de esquerda aos princípios éticos que norteavam a luta contra o privatismo e a ditadura civil militar. Trata-se de algo teorizado por Richard Sennett, sob o nome de “corrosão do caráter”. Ou, no dizer de Norberto Bobbio, o impacto de sair da praça, onde vive o povo, e passar a residir nos palácios, onde mora a riqueza e o prestígio. Mas, como toda corrosão de caráter, a sofrida pelos realistas de plantão lhes retirou os verbos, as verbas, as culpas e desculpas. Se não existir mudança de comportamento naquele setor, logo ele será apenas insignificante, no Estado e na sociedade. Especialmente entre os “negativamente privilegiados” que ele pretendia representar, mas traiu com os dominadores tradicionais.
IHU On-Line - O senhor já declarou algumas vezes que precisamos de um novo modelo de Estado. Que modelo de Estado seria adequado para o Brasil?
Roberto Romano - Um Estado cuja burocracia seja bem menor, no qual a soberania popular seja um fato, não um slogan. Um Estado no qual as bases municipais sejam autônomas e no qual sejam de fato aplicados recursos, sem desvios, na saúde, na educação, na tecnologia, nas artes. Um Estado democrático no qual partidos políticos sejam movidos mais pelas bases do que pelas cúpulas. Estado sem privilégios financeiros ou jurídicos, aberrações como a prerrogativa de foro etc. Estado no qual a responsabilidade seja a norma indeclinável para o Executivo, o Legislativo e sobretudo para o Judiciário. Um Estado repúblico, como diria o fabuloso Padre Vieira.
IHU On-Line - Diante da crise pela qual o país passa, que saídas vislumbra para a política? Alguma expectativa para a eleição de 2018?
Roberto Romano - A crise não é do momento. Ela tem raízes históricas no Estado e na sociedade do Brasil. Em 2018 nada será mudado em termos substanciais. Nenhum partido ou movimento apresenta um projeto novo de nação independente e soberana. Só espero que os justiceiros da hora não aprofundem a prática nefasta da delação, pois ela é o mais eficaz corrosivo da ética e do caráter. Lembro que as piores ações políticas da modernidade foram efetuadas sob o signo do delator. Apenas enumerando: a ditadura napoleônica fundamentou-se na delação e na espionagem.
Releia-se o magnífico O Vermelho e o Negro. Após o fascismo e o nazismo, tivemos a delação generalizada na URSS onde, inclusive, houve o culto do garoto delator que passou o nome de seu pai para o Estado e se tornou um herói da Revolução (cf. Catriona, K.: Comrad Pavlik, the rise and fall of a soviet boy hero). Nos EUA, o macarthismo suscitou delatores em todos os quadrantes, num momento infernal daquele país. Em todas as ditaduras que desgraçaram o mundo no século 20, a instituição dos delatores foi a mais presente.
Na tirania Vargas e na de 1964, os chamados “dedos-duros” trouxeram lágrimas e dor para os cidadãos que acreditavam nos valores democráticos. O solo da consciência humana está cheio das sementes malditas de onde brotam as delações. Recomendável a leitura do espantoso artigo de Sartre, “O que é um colaborador?”.
Na República de Vichy a delação era sinal de bom senso calculador. Mas nenhum cálculo é sem defeitos. O delator que colabora com a tirania só percebe alguns elementos do cálculo. Ele esquece os demais. Assim, os delatores que ajudaram Pétain e seus quadros viam as armas nazistas. Mas não perceberam, diz Sartre, a força da URSS, dos EUA, da Grã-Bretanha. Sobretudo, não viram a capacidade de resistência popular.
É o que se passa hoje em nosso país. Nele, a delação se torna um procedimento padronizado. A delação destrói as fibras da alma e apodrece os vínculos entre humanos. Se ela for um remédio, lembremos que na origem da medicina, na Grécia de Hipócrates, o mesmo vocábulo para um bálsamo serve para o seu contrário, o veneno. Ambos se chamam pharmakon. Pelo que constatamos, a dose do remédio o transforma, célere, em tóxico que espalha a morte civil em nome da saúde social, na suposta luta contra a corrupção.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Roberto Romano - The rest is silence [o resto é silêncio].
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"O massacre dos indígenas, a venda do patrimônio natural, tudo prenuncia um regime ditatorial monstruoso". Entrevista especial com Roberto Romano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU