Por: Patricia Fachin | 01 Junho 2017
Muitas vezes confundida com Parkinson ou Alzheimer antes de ser corretamente diagnosticada, a doença de Huntington compõe o conjunto das doenças genéticas hereditárias raras que atingem um a cada dez mil seres humanos, e é pouco conhecida entre a população mundial. Segundo a presidente da Associação Brasileira de Huntington – ABH, Vita Aguiar de Oliveira, essa doença neurodegenerativa tem “início tardio, e 80% dos casos manifestam-se entre os 30-50 anos; 10% antes dos 20 e 10% após os 50”. Ela explica ainda que “quem herdar o gene desenvolverá a doença em algum momento de sua vida. A pessoa que tem o gene da doença de Huntington - DH tem uma vida ‘normal’ até que esse gene desencadeie a produção alterada de uma proteína, a huntingtina, que irá provocar a morte dos neurônios e início dos sintomas da doença”.
Apesar de ser pouco conhecida, a doença de Huntington ganhou visibilidade mundial no último dia 18-05-2017, quando portadores da doença e seus familiares, pesquisadores e profissionais da saúde do mundo todo foram recebidos pelo Papa Francisco em uma audiência no Vaticano.
O historiador Kenneth Serbin, portador da doença, e a presidente da ABH participaram do encontro com o Papa Francisco no Vaticano e relatam, na entrevista a seguir, suas impressões sobre esse momento. Por e-mail, Vita disse à IHU On-Line que “a audiência foi cercada de emoções e informações” e que o Papa ressaltou temas como “compromisso, fragilidade, solidariedade, desafios e esperança”. “Ele disse para não termos vergonha de falar sobre a Doença de Huntington, de nunca mais a ocultarmos, para que mesmo mostrando fragilidade, entendamos que sempre somos amados por Deus, e que o ponto de maior apoio são as famílias, que estão ocupando um lugar privilegiado na vida dos pacientes, trazendo a dignidade, e com elas podemos construir uma rede de apoio, uma rede solidária”.
O professor e historiador Kenneth Serbin conversou com a IHU On-Line por telefone. Ele ressaltou que o Papa “abraçou” a causa dos portadores de Huntington e “declarou ao mundo que essa doença não deve ser escondida e que deve haver todo o esforço para enfrentá-la por meio da pesquisa científica”.
Na entrevista a seguir, Serbin e Vita comentam como foi o encontro com o Papa Francisco, explicam o desenvolvimento da doença e informam quais são as principais pesquisas desenvolvidas atualmente para oferecer um tratamento adequado aos pacientes. Vita comenta ainda quais são as principais dificuldades enfrentadas pelos pacientes brasileiros que buscam assistência na rede pública de saúde e, especialmente, a burocracia enfrentada pelos familiares ao solicitarem a aposentadoria dos doentes. “Um dos maiores problemas enfrentados pelas famílias com DH é a questão das aposentadorias: normalmente o paciente sai do mercado de trabalho ainda na fase produtiva (por volta dos 35-45 anos). Para se conseguir o Auxílio Doença, é um número sem fim de perícias médicas.
A DH não faz parte do Rol das Doenças Graves, conforme descreve o artigo 59/65 da lei 8213/91 e, por ser desconhecida dos médicos peritos, ocasiona enorme estresse e problemas financeiros”. Segundo ela, “desde 2003 tramita na Câmara Federal um projeto de Lei para a inclusão da DH nesse Rol”, mas, apesar de terem sido realizadas “duas reuniões com chefes da Perícia do INSS” e “uma audiência pública no Senado que tratou deste tema”, o projeto de lei ainda não foi aprovado.
Vita Oliveira | Foto: Arquivo Pessoal
Vita Aguiar de Oliveira é presidente da Associação Brasileira de Huntington – ABH. O pai dela era portador de Huntington e três de suas irmãs faleceram em decorrência da doença. Atualmente, seu sobrinho está na fase avançada da doença.
Serbin | Foto: curehdblogspot
Kenneth Serbin é historiador, professor de História da Universidade de San Diego, Califórnia, EUA. O pesquisador também é portador da doença e sua mãe faleceu de Huntington. É autor de “Padres, celibato e conflito social” (Needs of the heart. Tradução: Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras: 2008) e “Diálogos nas sombras” (Companhia das Letras: 2001).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é a doença de Huntington? Quais são os conhecimentos científicos sobre o desenvolvimento da doença?
Vita Aguiar de Oliveira – A doença de Huntington - DH é uma doença genética hereditária, neurodegenerativa. Se o pai ou a mãe carrega o gene alterado para a DH, a chance de qualquer um de seus filhos herdá-lo é de 50%; portanto, sua característica é de herança dominante.
A pessoa com DH apresenta movimentos involuntários nos membros inferiores e superiores, não consegue pegar objetos com facilidade, derruba em demasia, tropeça bastante, joga seu corpo para os lados, em movimentos descoordenados. A DH afeta também os movimentos internos, por isso a pessoa vai perdendo a capacidade de engolir, provocando engasgos, que muitas vezes levam à pneumonia aspirativa, quando não à morte.
A parte muscular vai enfraquecendo, a pessoa para de andar e o caminho é uma cadeira de rodas que terá que ser adaptada, pois com os movimentos involuntários a pessoa escorrega e pode vir a cair. A DH também afeta a cognição, provoca desordem mental, dificuldades de planejamento e alterações de comportamento, um dos sintomas mais difíceis de se lidar no convívio com outras pessoas.
Ao descobrir a doença, toda a família sofre, muitos casais se separam por não suportarem o cuidado que demanda a enfermidade de seu cônjuge. Há casos em que, prestes a casar, um dos dois opta por desistir porque descobre que seu par carrega 50% da chance de ter a doença e, consequentemente, seus filhos poderão herdá-la também.
A média de sobrevida dos pacientes com DH é de 15-20 anos, mas há relatos de até 40 anos. Com o avanço dos sintomas a pessoa deixa de falar, andar, comer e, no final, algumas famílias optam por fazer procedimentos invasivos como a traqueostomia, gastrostomia, para prolongar a vida do seu ente querido. A DH provoca estigma e preconceito, devido ao desconhecimento e ao medo de contágio, por exemplo.
Kenneth Serbin – A doença de Huntington leva o nome de um médico americano, George Huntington, que no século XIX provou que essa era uma doença genética e descreveu seus sintomas. Antes disso a doença era conhecida como “Mal de São Vito”. Essa é uma doença neurológica, que ataca principalmente o cérebro e outras partes do corpo: os neurônios morrem ou ficam comprometidos, o tamanho do cérebro diminui e as pessoas perdem suas capacidades físicas e mentais. Alguns dos sintomas são a coreia, isto é, movimentos involuntários, rápidos e irregulares, a perda da capacidade de engolir alimentos, a perda do equilíbrio e, por conta disso, muitos pacientes não conseguem andar direito e, no final da vida, acabam numa cadeira de rodas ou ficam acamados. Esses são os sintomas físicos.
Entre os sintomas cognitivos está a perda da capacidade de falar, raciocinar e se comunicar com os outros, ou seja, a pessoa fica completamente dependente dos outros para viver. Muitos pacientes também desenvolvem problemas psíquicos e comportamentais, como depressão, alucinações, agressividade e desejo de se matar; há uma alta taxa de suicídio entre os pacientes de Huntington.
Huntington é uma doença complexa e hereditária: todos nós temos o gene huntingtina, e esse gene produz uma proteína que é essencial para a vida, mas em algumas pessoas o gene tem uma expansão, ou seja, ele é mais longo, e é essa característica que causa a doença de Huntington. Todos os filhos de um pai que tem essa doença têm 50% de chances de herdar o gene defeituoso. A minha mãe morreu de doença de Huntington, e eu poderia ter herdado dela a cópia boa do gene, mas herdei a cópia defeituosa e por isso sou portador de Huntington também. As pessoas, quando descobrem que há várias gerações da doença em suas famílias, ficam amedrontadas e se questionam se deveriam ou não fazer o teste diagnóstico para verificar se têm ou não a doença.
Por ser uma doença tão complexa, ela é confundida com Parkinson ou Alzheimer ou com outras doenças. Na minha família, por exemplo, levamos meses para descobrir que a minha mãe tinha Huntington e não outra doença. A doença de Huntington é rara e por isso o encontro com o Papa foi importantíssimo para divulgá-la: um em cada dez mil seres humanos tem essa doença, mas além dessa há outras doenças raras.
Membros da Associação Brasileira de Huntington – ABH, em Roma, Itália. (Foto: Vita de Oliveira | Arquivo Pessoal)
IHU On-Line – Como é feito o teste para diagnosticar a doença?
Vita Aguiar de Oliveira – O gene da DH está localizado no braço curto do cromossoma 4. Para diagnosticar a doença, geralmente os médicos, principalmente os da área da neurologia e da genética, fazem um estudo do histórico familiar, da árvore genealógica do paciente e, de acordo com a observação clínica dos movimentos involuntários, depressão, irritabilidade, inflexibilidade, e também com a contribuição dos familiares, vão fechando o diagnóstico. A comprovação do diagnóstico é feita através de teste biomolecular específico para Huntington, por análise de DNA.
Não existem medicamentos específicos para tratamento dos sintomas da DH. Os utilizados hoje são “emprestados” de outras patologias, como neurolépticos, antidepressivos. Por isso, o que vemos são os nossos familiares sendo “engolidos” pela doença.
Kenneth Serbin – Hoje, nos EUA, esse teste é feito a partir da coleta de saliva, mas durante muito tempo o teste era feito a partir da análise de amostra de sangue, ou seja, a partir dessas coletas os técnicos analisam o material genético do paciente e descobrem se ele tem ou não esse gene defeituoso. As consequências de ter esse gene são enormes, e a maioria das pessoas que corre esse risco não quer fazer o teste diagnóstico por medo do resultado.
IHU On-Line – Como e a partir de quando a doença se manifesta?
Vita Aguiar de Oliveira - É uma doença de início tardio: 80% dos casos manifestam-se entre os 30-50 anos; 10% antes dos 20 e 10% após os 50. Quem herdar o gene desenvolverá a doença em algum momento de sua vida. A pessoa que tem o gene da DH tem uma vida “normal” até que esse gene desencadeie a produção alterada de uma proteína, a huntingtina, que irá provocar a morte dos neurônios e início dos sintomas da doença.
Kenneth Serbin – Essa doença se desenvolve na fase adulta, em pacientes com 30 a 50 anos de idade. Na maioria dos pacientes a doença dura cerca de 20 anos, ou seja, a partir do início dos primeiros sintomas a pessoa tem mais 20 anos de vida. A minha mãe, por exemplo, apresentou os primeiros sintomas de Huntington por volta dos 48 anos de idade e morreu com 68 anos. Como a doença é degenerativa, a pessoa vai piorando, e no início o paciente até consegue lidar com os sintomas, mas depois fica mais difícil, à medida que ele vai perdendo a fala, a capacidade de andar e de engolir alimentos. Meu pai cuidou da minha mãe até o último ano de vida dela, apenas nos últimos sete meses ela ficou num hospital que oferecia assistência 24 horas; ela morreu em 2006. Eu fiz o teste diagnóstico em 1999 e herdei uma cópia igual ao grau de defeito do gene dela. Em alguns casos a pessoa pode herdar uma cópia pior, ainda mais defeituosa. Embora eu seja portador do gene, minha filha, felizmente, não o herdou.
IHU On-Line – Como o senhor tem lidado com essa doença?
Kenneth Serbin – Eu tenho muita sorte, porque estou com 57 anos e a doença ainda não se desenvolveu. Minha mãe aos 57 anos já estava com a doença em fase bastante avançada. Então, para mim, cada dia é uma benção. Eu gosto muito de uma frase que meu sogro costumava dizer: “Todo dia é um dia de lambuja”, ou seja, cada dia é como se fosse um dia extra. Entre os cuidados que tomo, procuro manter uma dieta cuidadosa e saudável e evito o consumo de carne vermelha.
IHU On-Line – Você tem familiares que são portadores da doença? Pode nos falar sobre a experiência como familiar de portadores de Huntington?
Pacientes de Huntington e seus familiares (Foto: Vita de Oliveira | Arquivo Pessoal)
Vita Aguiar de Oliveira - Todas as pessoas que são envolvidas com a Associação Brasil Huntington têm histórico familiar com a DH. Meu pai era portador do gene da Doença de Huntington, herdou do pai dele — não conheci meu avô, mas minha mãe conta que meu pai era muito parecido com ele nos movimentos involuntários. Meu pai casou e teve cinco filhas, sendo que três delas herdaram o gene da DH e desenvolveram a doença. Todas casaram e tiveram filhos. Um dos meus sobrinhos está num estágio bem avançado de DH. Meu pai era uma pessoa muito carinhosa, mas era muito severo, se irritava facilmente, em contrapartida oferecia muito colo. Lembro, ainda criança, do seu comportamento, das ideias fixas, de ser briguento: não gostava de ouvir um não e achava que as pessoas o perseguiam.
O tempo foi passando, ele começou a apresentar movimentos involuntários, mexendo muito com os braços e as pernas. Depois começou a engasgar muito, foi perdendo suas forças motoras e faleceu em 1975 de um ataque do miocárdio, quando foi internado porque estava muito fraco e engasgando muito, com muita coreia. Como os médicos não haviam fechado o diagnóstico, ele foi tratado como um doente dos "nervos".
A primeira irmã que desenvolveu os sintomas estava na faixa dos 25 a 30 anos, estava casada e com três filhos menores. Os primeiros sintomas percebidos foram apatia, movimentos involuntários — ela deixava cair as coisas. Ela estava trabalhando à época e seus superiores aconselharam que ela procurasse um hospital Universitário para saber o que tinha. Foi através dela que tomamos conhecimento do primeiro diagnóstico de DH em nossa família.
Na época não existia ou não tínhamos conhecimento do exame molecular para Huntington. Foi um baque para todos nós ao saber que era uma doença genética, dominante e hereditária e que não tinha cura. Chorei muito, fizemos acompanhamento com neurologista, mas também não tínhamos acesso a outras terapias. Procurávamos dar suporte aos seus filhos, e seu marido foi um exemplo de companheiro: acompanhou-a em todos os momentos. A degeneração foi seguindo progressivamente, até seu falecimento.
Nas nossas outras duas irmãs, os sintomas não foram diferentes. Uma delas apresentava comportamento depressivo, agressivo e com poucos movimentos involuntários — a doença se manifestou na faixa de 20 a 30 anos. Ela teve cinco filhos, mas teve um quadro de forte depressão a ponto de não ter capacidade de cuidá-los. Apesar disso, ela teve uma qualidade de vida um pouco melhor, pois já sabíamos da doença. Fizemos um Plano de Saúde e tivemos um bom suporte quando ela teve pneumonia aspirativa, por questões de engasgo. Ela foi submetida à traqueostomia e depois gastrostomia, procedimentos invasivos. Minha outra irmã, a mais velha, começou a desenvolver os sintomas com poucos movimentos involuntários, e piscava muito. Também teve mudança no comportamento, mas mais leve. Ela também teve cinco filhos. Todas elas já faleceram.
Uma das minhas irmãs e eu não apresentamos a doença, por isso nos envolvíamos muito com as outras irmãs e com todos os sobrinhos. Mas mesmo assim internações em casa de repouso foram necessárias, pois trabalhávamos e os sobrinhos eram todos menores de idade; não conseguíamos dar conta das irmãs doentes e dos sobrinhos que nasciam, e dos outros que já estava crescendo, passando para juventude. Todos precisavam de atenção, inclusive nós.
Orávamos, rezávamos, rogávamos a Deus pela sua misericórdia. Tivemos muito contato com a Igreja Católica, que é a nossa origem, com a Associação Médica Espírita em S. Paulo — todos davam suporte para acalmar e seguir em frente.
A Dra. Monica Haddad, neurologista especialista em Huntington, sempre nos orientou muito bem. Por conta da doença de Huntington, me envolvi com a ABH. Quando uma das minhas irmãs estava em surto, procurei a ABH e agendei uma consulta em Atibaia com Dr. Walmir Galvão, médico que estimulou as famílias a se organizarem e a criarem uma associação de apoio para as pessoas com DH e seus familiares. Assim nasceu a ABH, em 1997.
A partir de 2004, já aposentada, me envolvi com ABH e com o Fórum dos Portadores de Patologias do Estado de São Paulo - FOPPESP, com o Conselho Municipal de Saúde do Município de São Paulo, participando de Conferências nas três instâncias, levando as propostas da Doença de Huntington e Doenças Raras para discussão e aprovação.
Também participo do Comitê de Ética em Pesquisa, como membro do CEP UNIFESP, representando o usuário, e do Comitê de Bioética do HC/FMUSP. Continuamos com muita esperança, principalmente após a reunião com o Papa Francisco, de elaborar projetos que sejam viabilizados com a ajuda de terceiros, para que possamos atender as demandas dos pacientes e familiares, sobretudo daqueles que apresentam condições economicamente e socialmente desfavoráveis, como também atuar firmemente no movimento Doença de Huntington "Ocultar nunca mais".
IHU On-Line – Feito o diagnóstico da doença, é preciso ter algum cuidado especial?
Kenneth Serbin – Como a doença causa, entre outras coisas, muitos movimentos involuntários, isso faz com que a pessoa consuma muitas calorias. Um ser humano normal consome mais ou menos duas mil calorias por dia, mas pacientes de Huntington chegam a consumir até quatro mil calorias por dia e precisam comer bastante carboidrato, mas mesmo assim a pessoa ainda perde bastante peso. Por isso a pessoa precisa consumir muitas calorias. Não existe atualmente nenhum tratamento para a doença, mas alguns medicamentos ajudam a controlar os movimentos involuntários.
IHU On-Line – Apesar de ainda não terem descoberto a cura da doença ou o desenvolvimento de um tratamento específico para amenizar os sintomas, existem pesquisas sendo realizadas na área da genética para encontrar a cura ou tratamentos para a doença?
Vita Aguiar de Oliveira - No início de abril, ficamos muito felizes pela notícia de que a Teva Farmacêutica lançou um medicamento, a deutetrabenazina, que ajudará no controle dos movimentos coreicos. Mas a grande esperança neste momento é uma pesquisa que está sendo desenvolvida no Canadá, que é o “silenciamento do gene do DH”. Temos a esperança da sua disponibilização em 2019.
O silenciamento significa que as células doentes não se multiplicarão ao tomar o medicamento e a doença será estagnada. Por outro lado, o gene continua sendo transmissível à prole, que viverá com a mesma chance de 50% de herdar a doença.
Outras pesquisas podem ser acompanhadas no site.
Kenneth Serbin – Há muito investimento em pesquisa, ensaios clínicos e até uma tecnologia chamada silenciamento genético, que é desenvolvida no Canadá e na Europa, que está testando alguns tratamentos em seres humanos. Esse é um ensaio clínico histórico. Quando se iniciaram esses tratamentos, em 2015, eu fiz um vídeo para a comunidade brasileira de Huntington, porque esse tratamento é uma grande esperança para pacientes do mundo todo que têm essa doença.
Existem vários tipos de silenciamento genético. Esse tipo de silenciamento do qual estou falando foi desenvolvido em San Diego, nos EUA, onde moro. Todo gene cria uma proteína nos nossos corpos e cada gene codifica uma proteína; o nosso DNA tem o mensageiro RNA, que leva o código genético do gene para fazer as proteínas. Nesse caso, o silenciamento genético interrompe o processo de ação desse mensageiro, ou seja, bloqueia o RNA, o qual não consegue levar a mensagem do gene para as fábricas das proteínas dentro das células e, por isso, diminui a quantidade de proteína nas células feitas pelo gene Huntingtina.
IHU On-Line – Nos EUA estão fazendo algum outro tipo de pesquisa além do silenciamento genético?
Kenneth Serbin – Muitas pesquisas estão procurando modificar ou afetar o mecanismo da doença. Isso porque, quando o gene é defeituoso, acontecem muitas coisas dentro da célula, como problemas de nível de energia, em que as células perdem energia e ficam comprometidas e começam a morrer. Por isso estão procurando maneiras de fortalecer as células para que elas possam sobreviver mais tempo. Nesse sentido há muitas pesquisas e há um número cada vez maior de ensaios clínicos. Nem todos eles vingam, mas isso faz parte da ciência. Desenvolveram recentemente um medicamento que tem um mecanismo parecido com o do Viagra, mas infelizmente o ensaio clínico realizado no ano passado não deu certo. De toda forma, continuam sendo feitas tentativas.
IHU On-Line - Como a doença de Huntington tem sido tratada no Brasil?
Vita Aguiar de Oliveira - A DH, como toda doença rara, ainda não está contemplada para ser tratada em centros de especialidades. Em janeiro de 2014 foi publicada a Portaria 199/2014 do Ministério da Saúde, que “institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprova as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS e institui incentivos financeiros de custeio”. Porém ela ainda não saiu do papel.
O SUS tem como porta de entrada para os usuários iniciarem seus tratamentos as Unidades Básicas de Saúde - UBS, que são classificadas como atendimento de Baixa Complexidade.
O usuário entra com a queixa, e de acordo com ela é encaminhado para a “Média Complexidade”, que são os Ambulatórios de Especialidades (neurologia, cardiologia etc.); conforme a complexidade de casos, são encaminhados para a “Alta Complexidade”, que são os Hospitais Universitários.
A maioria dos pacientes com DH faz acompanhamento nos hospitais-escola das universidades públicas ou mesmo nos ambulatórios de especialidades. Outros fazem seu tratamento na rede privada, geralmente com os mesmos médicos que atendem na rede pública. E têm ainda aqueles que fazem acompanhamento nos serviços suplementares de saúde (convênios), nem sempre com especialistas, já que a DH é uma doença rara e os atendimentos, de fato, se concentraram nos hospitais-escola. Mas este acompanhamento é feito quase que somente na neurologia e/ou, em alguns casos, psiquiatria.
Os pacientes precisam muitíssimo dos serviços de rede multidisciplinar para ter uma boa qualidade de vida: fonoaudiologia, fisioterapia, psicoterapia, terapia ocupacional, nutricionista, mas nem sempre conseguem vagas na rede pública, ou enfrentam filas de longa espera e, quando chega sua vez, muitos não conseguem chegar até o local, pois necessitam de terceiros para acompanhá-los e nem sempre a família possui esse terceiro com disponibilidade de tempo e transporte.
Outro quesito é a falta de transporte público adequado para levar o paciente aos serviços do atendimento multidisciplinar. O SUS prevê atendimento domiciliar, mas a demanda é muito maior do que as equipes existentes. É previsto pela equipe domiciliar capacitar cuidador familiar para exercícios de fisioterapia, mas na prática isso vem sendo construído muito lentamente.
O paciente de Huntington queima muitas calorias (em grande parte por conta dos movimentos constantes e em parte ainda de causa desconhecida), portanto é necessário um bom acompanhamento nutricional. São muito comuns os quadros de desnutrição e caquexia na DH.
Um dos maiores problemas enfrentados pelas famílias com DH é a questão das aposentadorias: normalmente o paciente sai do mercado de trabalho ainda na fase produtiva (por volta dos 35-45 anos). Para se conseguir o Auxílio Doença, é um número sem fim de perícias médicas. A DH não faz parte do Rol das Doenças Graves, conforme descreve o artigo 59/65 da lei 8213/91 e, por ser desconhecida dos médicos peritos, ocasiona enorme estresse e problemas financeiros. Desde 2003 tramita na Câmara Federal um projeto de Lei para a inclusão da DH nesse Rol. Já tivemos duas reuniões com chefes da Perícia do INSS, para expor nossas dificuldades e uma audiência pública no Senado que tratou deste tema, no qual os Ministérios da Saúde e da Previdência se comprometeram a analisar o caso, mas nada ainda conseguimos.
IHU On-Line – Dizem que essa doença tem mais incidência em famílias provenientes da América do Sul. Há alguma razão para isso?
Vita Aguiar de Oliveira - A prevalência tem se mostrado alta em algumas regiões específicas, por conta do isolamento das famílias com DH (seja pela localização geográfica, seja pelo preconceito) que gera um alto índice de casamentos consanguíneos, que eleva de 50% para 75% as chances de herança do gene. É o que se observa próximo ao Lago de Maracaibo e em Barranquitas, na Venezuela. O mesmo é também observado no Brasil, nos municípios de Ervália-MG e Feira Grande, em Alagoas.
Kenneth Serbin – Isso porque em algumas comunidades, ao longo das gerações, as pessoas têm casado entre si e passado entre si esse gene. A comunidade mais famosa está localizada na região do Lago de Maracaibo, na Venezuela. Aliás, uma família dessa região foi a Roma para participar do encontro com o Papa.
Kenneth Serbin em encontro com Papa Francisco (Foto: Regina Serbin | Arquivo pessoal)
No Brasil também existem vários núcleos de pacientes com essa doença. Em Minas Gerais, por exemplo, no município de Ervália, existe um número alto de pacientes de Huntington porque, ao longo de gerações, as famílias casavam entre si e passavam o gene. Em Alagoas também há um núcleo de pacientes na cidade de Feira Grande.
No encontro realizado com o Papa conheci um médico do Ceará, o doutor Luiz Furtado, que descobriu núcleos da doença no estado do Ceará. Mas também há pacientes em outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, e estima-se que existem 20 mil pacientes sintomáticos de Huntington no Brasil e milhares de pessoas que correm o risco de desenvolver a doença.
IHU On-Line - Como foi o encontro com o Papa Francisco sobre a doença de Huntington? Que aspectos do encontro destacariam?
Vita Aguiar de Oliveira - A Audiência foi cercada de emoções e informações. A Venezuela apresentou uma região muito pobre, pessoas com DH necessitando de comida, DH em muitas crianças e adolescentes (o que não é comum) e adultos, ou seja, situação que não difere muito da Colômbia. Essas regiões fazem parte do projeto “Fator H”, que tem como objetivo auxiliar pessoas que vivem em comunidades na linha da pobreza.
Do Brasil tínhamos pacientes acompanhados de seus familiares de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Foram 36 brasileiros presentes na audiência. Estavam presentes 26 países, com estimativa de 2000 pessoas entre pacientes, familiares, convidados. O Papa Francisco não poupou esforços, escutou, cumprimentou, abraçou tirou fotos, recebeu presentes, ali todos os pedidos foram atendidos.
A questão principal tratada foi DH – Doença de Huntington “Oculta nunca mais”. Em sua carta, lida no encontro, o Papa Francisco falou de temas como compromisso, fragilidade, solidariedade, desafios e esperança. Falou para não termos vergonha de falar sobre a Doença de Huntington, de nunca mais a ocultarmos, para que mesmo mostrando fragilidade, entendamos que sempre somos amados por Deus, e que o ponto de maior apoio são as famílias, ocupando um lugar privilegiado na vida dos pacientes, trazendo a dignidade, e com elas podemos construir uma rede de apoio, uma rede solidária.
O Papa solicitou aos pesquisadores que continuem buscando as pesquisas, mas que evitem aquelas que preveem o uso de embriões. A ABH entregou uma carta ao Papa pedindo que os dilemas éticos que envolvem a DH sejam objeto de estudo dos grupos de bioética, filosofia e teologia do Vaticano.
Kenneth Serbin – O encontro foi maravilhoso, o Papa foi muito acolhedor e falou por mais ou menos 20 minutos, em italiano — havia tradução para inglês e espanhol —, e depois publicaram o discurso dele no site do Vaticano. Ele falou sobre a importância da família e elogiou a forma como as famílias têm cuidado dos pacientes de Huntington; falou sobre como a rede de apoio de familiares, cuidadores, médicos e pesquisadores é muito importante e necessária para cuidar das pessoas com essa doença.
O Papa também mencionou a importância da pesquisa para encontrar tratamentos para os pacientes, e chamou a atenção para não desenvolverem pesquisa com embriões humanos — esse foi o único momento menos interessante para nossa comunidade.
Além disso, ele falou que essa doença não deveria ser mais escondida, e justamente por isso o slogan do evento foi “HD Hidden No More”, em português, “Huntington oculta nunca mais”. Ele abraçou a nossa causa, declarou ao mundo que essa doença não deve ser escondida e que deve haver todo o esforço para enfrentá-la por meio da pesquisa científica.
Kenneth Serbin em encontro com Papa Francisco (Foto: Regina Serbin | Arquivo pessoal)
O evento foi transmitido ao vivo pela internet e algumas pessoas dos EUA, da América Latina e das Filipinas puderam assisti-lo. O vídeo está [em italiano] no canal do YouTube do Vaticano e as pessoas podem consultá-lo.
IHU On-Line – Houve um desconforto quando o Papa pediu que não se fizesse pesquisa com embriões, ao menos entre os cientistas?
Kenneth Serbin – Houve um desconforto porque muitas doenças são investigadas a partir do uso de células-tronco. O Papa não usou o termo “células-tronco”, mas mencionou que é preciso ter cuidado com a pesquisa de embriões humanos, porque esses embriões são usados e depois destruídos. O fato é que os embriões utilizados para pesquisa já são embriões que serão descartados, porque são embriões usados em fertilização in vitro e que não serão mais utilizados. Não é que os cientistas estejam criando embriões com o objetivo de fazer uma pesquisa — isso não acontece na legalidade; talvez aconteça na ilegalidade.
Infelizmente várias publicações focalizaram nesse aspecto do encontro, mas foi desnecessário, porque o encontro não foi sobre o uso de embriões em pesquisa, mas sim sobre o Papa acolhendo a nossa comunidade.
Depois do seu discurso, o Papa passou quase uma hora entre as fileiras, cumprimentando as pessoas. Ele cumprimentou aproximadamente 300 pessoas. Todos que participaram do evento ficaram muito emocionados ao verem o Papa Francisco, e eu mesmo quase chorei. Falei com o Papa em espanhol e mostrei a ele um quadro com uma foto dos meus pais. Contei que minha mãe tinha falecido dessa doença e que meu pai havia cuidado dela por 20 anos. Depois eu dei a ele dois dos meus livros, “Padres, celibato e conflito social” (Needs of the heart. Tradução: Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras: 2008) e “Diálogos nas sombras” (Companhia das Letras: 2001), e expliquei rapidamente do que os livros tratam. Então ele tomou minhas mãos, como tomou as de outros, e eu agradeci por ele apoiar a nossa comunidade. Foi um momento muito emocionante.
IHU On-Line - Essa foi a primeira vez que o Vaticano promoveu um encontro sobre a doença de Huntington? Por que essa doença virou tema de interesse e de discussão do Vaticano e do Papa Francisco?
Vita Aguiar de Oliveira - É com muita gratidão que agradecemos ao Papa Francisco por nos ter recebido no dia 18/05/2017, para que mostrássemos ao mundo a Doença de Huntington.
O processo se iniciou quando a Senadora italiana Elena Cattaneo, que também é pesquisadora da DH, escreveu ao Papa Francisco pedindo-lhe para receber um paciente da Venezuela.
O Papa Francisco, ser humano de grande magnitude, ao ver que a DH afeta milhares de pessoas em todo o mundo e especialmente em parte da América Latina, sabendo do sofrimento que causa ao paciente e seus familiares, principalmente àqueles de baixa condição socioeconômica, abriu a audiência para a América Latina e demais países.
O tema do encontro foi HDdennmore “Oculta nunca mais” ou “esconder nunca mais”. O evento foi organizado pelo jornalista e portador do gene da DH, Charles Sabine, pela pesquisadora e senadora italiana Elena Cattaneo, por Ignacio Munoz SanJuan e Claudia Perandones, pesquisadores, e Louise Vetter.
Na logística para recebimento do paciente e seu acompanhante familiar, tiveram apoio da Casa di Esercizi Spirituali dei Ss. Giovanni e Paolo – Passionisti Roma e da Casa Per Feri Suore Salesiane dei Sacri Cuori. Paciente e familiar da América Latina hospedados nesses dois locais não tiveram despesas com hospedagem e alimentação, foi uma grande providência divina, possível através dos patrocínios recebidos pela organização do evento.
As Associações dos representantes de pacientes e familiares (da Venezuela, Colômbia, Argentina, Brasil) também foram convidadas a participar desta organização, comunicando as famílias sobre o evento, incentivando-as a participar, se inteirando com os organizadores sobre as acomodações etc.
A Associação Brasil Huntington - ABH teve um papel fundamental de cuidar de todos os detalhes para que pacientes e familiares pudessem participar da Audiência com muita harmonia. Concluindo: a DH virou tema no Vaticano porque tem pessoas extremamente sensíveis envolvidas com sua causa, assim como o Papa Francisco. Esse evento foi organizado para mostrar ao mundo que existimos, que independente de sermos doentes, somos filhos de Deus, que necessitamos do seu olhar, do seu apoio, seja pesquisador, familiar ou gestor.
Kenneth Serbin – Foi a primeira vez que um papa ou um líder mundial recebeu a comunidade de Huntington. Agências como Reuters informaram que 1.700 pessoas participaram do encontro, mas eu diria que foram 1.500. De todo modo, esse foi o maior encontro de pacientes e familiares de pacientes de Huntington reunidos na história. Foi um momento importante porque ajudou a reunir a nossa comunidade, e deu um ibope incrível na imprensa internacional sobre a doença.
IHU On-Line – Depois deste encontro com o Papa, que tipo de atividades a comunidade de Huntington deve promover?
Vita Aguiar de Oliveira - Após o encontro, foi-nos dito por um dos organizadores que está em negociação com a Instituição Caritas, que ela irá ajudar nos projetos sociais ao atendimento das famílias com DH.
Deu-se início à criação da “Rede de Associações de Huntington”, tendo como proposta inicial capacitar pessoas das Associações, levantar as necessidades das pessoas portadoras de DH, criar página na web etc.
Kenneth Serbin – Por enquanto vamos continuar divulgando o encontro recente com o Papa, para dar coragem às famílias e às pessoas. Um dia antes e um dia depois do evento, reunimos os membros da comitiva brasileira que estava em Roma e todos estavam muito contentes e com boas ideias para serem implementadas, como, por exemplo, a possibilidade de encaminhar o tratamento dessas doenças raras pelo SUS.
Nota da IHU On-Line: Kenneth Serbin enviou duas sugestões de vídeos que falam sobre a DH e que podem ser vistos abaixo. .
Começa em 2015 um ensaio clínico de silenciamento gênico para a doença de Huntington from Gene Veritas on Vimeo.
A Doença de Huntington, a Bioética e a Promessa da Biotecnologia from Gene Veritas on Vimeo.
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Papa Francisco abraçou a causa dos portadores de Huntington. Entrevista especial com Vita Aguiar de Oliveira e Kenneth Serbin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU