Uma mulher ligou para o
Centro de Estudos do Genoma Humano, da USP, querendo saber se faziam exame de DNA.
- Exame de paternidade?, perguntou
Mayana.
- É.
- Infelizmente não fazemos exame de paternidade aqui, e sim exame genético para doenças genéticas.
A mulher se revoltou.
- Como a universidade não faz exame de paternidade?
- Minha senhora, respondeu
Mayana, a única pessoa que está interessada em saber quem é o pai do seu filho é a senhora. Nosso interesse é outro.
A israelense
Mayana Zatz reproduz o diálogo para explicar que o mundo da genética não está no DNA do cotidiano - pelo menos por enquanto. Muita confusão ainda se faz nessa área com conceitos, técnicas, avanços, decisões. Exame genético não é teste de paternidade, embora ele possa revelar, por tabela, que o pai daquela criança deveria ser outro na certidão. Esclarecer essas dúvidas e, principalmente, ajudar as pessoas a se posicionar diante de dilemas bioéticos foi o embrião do livro
Genética (Globo), que
Mayana autografou na terça-feira. Ali ela trata, entre outros capítulos, de paternidade, irmãos salvadores, clonagem, células-tronco, escolha do sexo, genes fúteis e banco de DNA, por onde começa o ponto a ponto abaixo.
Nessa semana, o Senado aprovou projeto de lei que prevê a criação de um banco de dados de DNA para identificação genética de investigados por crimes violentos e hediondos. A decisão foi dita "inconstitucional" por uns, "essencial" por outros, "inócua" por alguns. Gerou polêmica, enfim, como de resto a maioria dos casos que a geneticista coletou no livro, cujo título completo resume a ópera:
Genética: Escolhas que nossos Avós não Faziam.
Mayana Zatz é coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, ligado ao Instituto de Biociências da USP.
A entrevista é de
Mônica Manir e publicada pelo jornal
O Estado de S. Paulo, 18-09-2011.
Eis a entrevista.
Quem não deve...
"Se você é apontado como pai de uma criança e se recusa a fornecer seu DNA, é automaticamente considerado, por lei, pai dela. O que se advoga para defender essa ideia? A proteção da criança. Ela tem direito a ter um pai e a ter um suporte financeiro vindo dele. Ao mesmo tempo, outra lei estabelece que um suspeito de crime pode se recusar a fornecer seu DNA por não querer dar provas que talvez sejam usadas contra ele. Minha pergunta é: será que não deveria valer a mesma lei, ou seja, se a pessoa se recusa a fornecer o DNA, não deveria ser suspeita do crime? Nesse mesmo sentido, não deveríamos nos preocupar em defender a sociedade? Eu, por exemplo, não tenho nenhum problema em fazer um teste de bafômetro quando estiver dirigindo. Você pode ter certeza de que eu vou passar no teste. A pessoa que está sendo investigada e não tem culpa no cartório não vai se preocupar com a investigação do DNA porque não vão encontrar material genético dela na cena do crime.
E quem não consente...
"Há muitos anos o jurista
Luiz Flávio Gomes disse que o DNA descartado não nos pertence, que é uma prova totalmente lícita. Um caso que ilustra isso é o da irmã do Pedrinho, a
Roberta. Pedrinho havia sido sequestrado na maternidade por
Vilma (Martins Costa) e se suspeitava que tivesse ocorrido o mesmo com sua irmã. Mas
Roberta não queria confirmar isso. Dizia que sua mãe era aquela que a tinha criado. Após um depoimento à polícia, e à sua revelia, pegaram seu DNA a partir de uma bituca de cigarro. Depois da análise do material descobriram que ela também havia sido sequestrada. Sim, era um crime. Ela foi raptada e a mãe biológica dela tinha todo o direito de saber disso. Mas ela não queria saber e, principalmente, não queria que isso viesse a público. Na minha opinião, é antiético pegar o DNA nessa situação, ainda mais porque
Roberta não cometeu delito nenhum. Agora, se você é suspeito de um crime... Houve um caso na
Holanda de uma empresa na qual alguém ameaçava um diretor com cartas anônimas - e numa época em que se colava o envelope com saliva. Pegaram o envelope e conseguiram identificar o DNA do sujeito, mas aí precisavam descobrir quem era a pessoa. O que fizeram? Convidaram os funcionários, em grupos pequenos, para tomar um café da tarde. Mataram a charada comparando o DNA da xícara com o DNA da saliva.
Número ou nome?
"Quando descubro que há um gene que aumenta o risco de uma doença qualquer, eu o comparo com a minha amostra de pessoas sem essa doença para ver se aquele gene tem a ver com ela ou não. Temos amostras de centenas de pessoas que quiseram doar sangue para ser um controle. Nos
EUA, quando você faz essa doação, eles o desidentificam. Você passa a ser um número e nunca mais vão saber quem é você. No
Brasil, não. Existe um banco com total sigilo, pouquíssimas pessoas têm acesso a ele, mas, se eu algum dia quiser saber de quem é aquela amostra, eu consigo. Qual é a vantagem disso? Amanhã eu descubro, por exemplo, um gene que aumenta a predisposição para doença cardíaca. E que a doença, se tratada preventivamente, pode não se manifestar. Se eu tiver acesso à pessoa que doou e descobrir que ela tem essa doença, posso beneficiá-la indicando um remédio específico. A desvantagem da identificação é que podem usar o seu DNA para saber se você tem risco de ter algumas doenças de alto custo. O seguro-saúde adoraria ter essa informação, ou mesmo os seus empregadores.
Meio real, meio mirabolante
"Não acompanho séries como o
CSI, mas posso falar do
Planeta dos Macacos, que vi recentemente. No filme há algumas ideias reais e outras totalmente irreais. A terapia gênica de que tratam é uma coisa possível. Ou seja, dá para tentar corrigir um gene defeituoso inserindo a cópia normal desse gene num vírus e fazendo com que ele chegue a todas as células do organismo, "infectando-as". Isso é algo que se pesquisa há muito tempo, embora seja muito difícil de conseguir. A primeira tentativa foi com um rapaz de 18 anos, portador de uma doença metabólica que nem era muito grave. Mas ele morreu. Daí pararam com todos os ensaios clínicos. O que é absolutamente irreal no filme é o filhote de chimpanzé ter ficado mais inteligente porque sua mãe lhe transmitiu geneticamente aquela característica. Não se transmitem características adquiridas, apenas aquelas que estiverem no seu material genético. Outra irrealidade é quando o gás de um spray deixa os macacos mais inteligentes. Um absurdo!
Certidão incerta
"Em 10% das famílias americanas testadas nos EUA, o paciente não é filho de quem se apresenta como pai. No Brasil, não sei se há pesquisa sobre essa incidência, mas já tivemos vários casos aqui no nosso centro. A mãe pode não saber disso com certeza porque tem ou teve dois ou três parceiros ao mesmo tempo. Mas algumas nos dizem: "Olha, vocês não vão fazer teste de paternidade, vão?" Depende do que estejamos pesquisando. Se a doença em questão é de herança materna e um menino está afetado, não me interessa pesquisar o pai. Já numa doença recessiva, que vem do pai e da mãe, é muito importante caracterizar o que vem de ambos, especialmente para saber o risco de recorrência e fazer um diagnóstico pré-natal, por exemplo. Isso levanta outra questão ética, que discutimos entre nós, geneticistas: deveríamos colocar no termo de consentimento a informação de que o teste também pode revelar uma falsa paternidade? E, se isso acontecer, a pessoa examinada gostaria de saber o resultado?
Filho do avô
"O incesto, muito mais comum do que a gente imagina, nem sempre é notificado por nós. Não temos uma regra, discutimos caso a caso, mas nossa conduta é: se isso afetar a descendência, havendo risco para um dos filhos, a gente conta. Caso contrário, não. Digamos que uma pessoa, fruto de um incesto, escapou de ter uma doença geneticamente grave. Se foi premiada no cara e coroa, quero dizer, se ela é saudável e se sua descendência também tende a sê-lo, geneticamente não há por que eu revelar o incesto descoberto no teste de paternidade. Tivemos o caso de uma menina de 16 anos, grávida, cujo feto era fruto de uma relação incestuosa. Isso significava um risco de 50% de ela ter uma criança com uma doença geneticamente grave. Mas, primeiro, não havia indícios de que tinha sido violentada. Segundo, ela tinha dois irmãos com distrofia que estavam em cadeira de rodas - e o pai os sustentava. O que aconteceria se o acusássemos? Quem proveria aquelas crianças? Um trabalho recente, publicado na
Lancet, mostrou que estudos genéticos vêm descobrindo casos de crianças que nascem com malformações por serem filhos de incesto. O trabalho insiste que os geneticistas têm de denunciar a situação. Mas isso é na
Inglaterra. A menina que nos procurou tinha mais de 14 anos e não mencionou ter sido violentada. A gente avalia como prejudicar o mínimo possível.
US$ 6 mil por mulheres virgens
"Acho que não temos o direito de escolher o sexo da criança. Você já coloca uma expectativa em relação àquele filho que é para toda a vida. Além disso, veja o desequilíbrio que aconteceu na
China e na
Índia. Os chineses, por exemplo, estão oferecendo US$ 6 mil por mulheres virgens "compradas" no
Brunei e no
Vietnã. Pagam literalmente o preço da política do filho único - e homem. Isso vem se revertendo no
Japão, onde os casais preferem filhas a filhos, já que elas hoje saem, trabalham, ganham dinheiro, cuidam dos pais. Ou seja, o que era bom em termos de gênero para a família há 30 anos, agora nem é tanto. E os casais se preocupam menos em "equilibrar" a família com os dois sexos. Muitas pessoas me dizem que querem duas meninas ou dois meninos para brincar juntos, embora em
Israel a lei permita que se busque outro gênero, por fertilização in vitro, a partir do quarto filho. Acham que até quatro tentativas vale insistir naturalmente. Uma quinta seria demais.
Eugenia comercial
"Nos EUA, a fissura por esportes é tremenda. Todo americano deseja ter um filho medalha de ouro. Então, não duvido que queiram selecionar embriões com determinadas características genéticas que favoreçam um bom desempenho em determinado esporte. Ou que orientem os filhos para esta ou aquela prática baseados na carga genética da criança. Mas e se ela não tiver a mínima vontade de ser velocista, por exemplo? A pressão vai ser tremenda. Por outro lado, se gostar de determinado esporte e não tiver habilidades para ele, os pais podem desmotivá-la a praticar essa atividade. Na verdade, muitos de nós fazemos esporte por prazer. Veja que há 5 mil pessoas correndo numa maratona e pouquíssimas delas se preocupando em bater recordes. Vão para se divertir.
Cordão de ouro
"A existência de bancos de cordão umbilical aumenta muito a chance de se conseguir uma pessoa compatível, sem precisar gerar outro filho para tanto. Sempre me posicionei contra os bancos privados, mas, quando você vai procurar um público, há bem poucos no Brasil. Por que eu me posiciono contra os privados? Não faz sentido guardar o cordão do próprio filho, pois a chance de ele ter leucemia é muito pequena. E, ainda que venha a ter a doença, não se recomenda usar o sangue do próprio cordão porque ele pode levar à mesma doença. Na maternidade, os pais estão, vamos dizer, abalados, emocionados com a chegada do bebê. E aí alguém diz: "O banco privado de cordão umbilical é uma garantia para o futuro do seu filho". Na realidade, não é bem assim."
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Quando o veredicto é "depende" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU