23 Outubro 2024
"Que o nosso silêncio possa diariamente oferecer oportunidades de escuta desta silenciosa e indizível Palavra, que se identificou com o ser humano, suas alegrias e suas dores, seus limites e suas impotências e silenciosamente continua nos acompanhando, mais íntima do que as nossa intimidades."
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Foi lendo a biografia de Jacques Lacan, magistralmente escrita por Elisabeth Roudinesco [1], que me senti invadido por uma tempestade de pensamentos dançando ao redor da palavra, das palavras, das línguas e das linguagens, dos discursos, narrativas, prisões dogmáticas e cemitérios ideológicos... e isto me preocupa, porque surge em mim uma reação poética e teológica a séculos de filologias e linguísticas, rios imensos das mais diferentes maneira de olhar para a questão, a partir das primeiras abordagens sobre o sentido das palavras na filosofia platônica até a psicanálise. Sem esquecer dos delírios linguísticos de James Joyce, William Burroughs e do nosso Guimarães Rosa. Manumissão e manutenção das palavras.
"Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento", de Elisabeth Roudinesco (Companhia das Letras, 2008) (Imagem: Reprodução)
Tive a impressão que com Lacan se afirme nitidamente a convicção, a fé, bem ocidental, da centralidade das palavras ne condição humana. É o sonho que as palavras possam revelar verdades, traduzir o inconsciente, abrir portas, desvendar mistérios, desatar nós, quebrar correntes, sarar feridas e traumas, iluminar contradições e curar as doenças do eu. E, no mesmo tempo, temos a constatação de certa constitutiva limitação e impotência, diante do mal de viver de seres humanos, desestabilizados pela modernidade, que fragmenta, confunde, fere, manipula, disciplina e controla. O eu, outrora sólido e em familiaridade, serena ou armada, com o mundo, “desmancha no ar”. A antropologia das cristandade e, junto com ela, também o cogito-sum cartesiano não são mais hegemônicos.
Parece que nos sobra, como realidade incontestável, uma babel rizomática (Guattari e Deleuze), raízes multíplices, que misturam linhas de continuidade e linhas de fuga, sem hierarquias e sem projetualidade. Decreta-se o fim do eu descrito como uma arvore, como uma arquitetura ordenada, hierárquica e projetual. E as palavras ficam inevitavelmente inscritas e perdidas neste rizoma. E o ser humano aparece como uma “máquina desejante”, que se opõe à ordem capitalista com uma atitude constitutivamente revolucionária. Mas, a impressão que permanece é que o único valor inspirador é a subversão. Nada além da subversão.
E assim me lembro de quando era criança e, todo dia, antes de ir à escola, ia para Missa e servia como coroinha. A Missa era celebrada em Latim, com que a gente já começava a se familiarizar na quinta série, com o estudo da Análise Lógica, introdução ao Latim, que nos acompanharia até à Universidade. Em suma, nós entendíamos o sentido de quase todas as palavras do formulário litúrgico. No meu caso, porém, a dificuldade de entender se manifestava com prepotência, quando no fim da Missa, o padre lia em voz alta a Gloria que se encontrava à esquerda do altar: os primeiros versículos do Evangelho de João. “In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum... Et Verbum caro factum est, et habitavit in nobis.” Um labirinto de palavras em que este Verbum, variamente repetido, ressoava como um mistério incompreensível. E não adiantava pedir ao padre uma explicação. Ele ficava me olhando com um sorriso vagamente irônico, dizendo que eu era criança, pequeno demais para perguntas deste tamanho.
É obvio, que todos nós continuamos crianças seduzidas e curiosas, merecendo aqueles olhares amavelmente irônicos, quando interrogamos, no silêncio, o Verbum que para João não é um dos muitos nomes possíveis do inefável IHWH, mas é definitivamente o próprio IHWH, Dabar, Palavra dita para criar tudo o que existe. O teólogo João é o responsável da migração de toda a davar, de todo o falar de Deus, no Primeiro Testamento para a pessoa de Jesus de Nazaré, Palavra, que não somente cria o universo, mas nos surpreende com a identificação corpórea com o universo por ele criado.
Palavra que não pode ser dita, inefável, mas que, nos mesmo tempo, nos diz e dizendo nos faz. Palavra que diz e faz o universo e seus discursos. Palavra que vem antes dos fatos e dos eventos, das palavras e das línguas. Aparentemente ausente, se faz, porém, presente, quase se contradizendo, também como escuta do grito de dor dos oprimidos e envia quem possa falar palavras de vida e liberdade em seu nome.
Palavra que é fonte de todas as línguas e de todos os discursos. Palavra que convida a um uso das palavras, que não contradiga a sua fonte. E todas as línguas, evidentemente sobretudo aquelas que se orgulham das suas raízes cristãs, estão assim convidadas a um discernimento: podem viver na Luz, na Beleza gloriosa e amorosa do Verbum ressuscitado, que ainda carrega as feridas da crucificação ou podem escolher, traindo o Dabar-Logos-Verbum, a versão metafisica e racionalista do Logos semeada pelo pensamento grego. Ou podem, em estratégias minimalistas, reduzir línguas e discursos à mera instrumentalidade da descrição e da informação, contexto já amplamente presente na nossa história, bem antes da chegada dos algoritmos da inteligência artificial.
Giorgio Agamben recentemente nos lembrou de um tragédia que, por enquanto, parece não interpelar os intelectuais ocidentais: “E se os hebreus são ou pelo menos eram parte da cultura europeia, é necessário lembrar as palavras de Scholem frente a secularização consumada pelo sionismo de uma língua sagrada para uma língua nacional: 'Nós vivemos na nossa língua como cegos que caminham na beira de um abismo... Esta língua é gravida de catástrofes...dias virão em ela se revoltará contra aqueles que a falam'.”
Tem, nestas considerações um recado precioso também para nós. Nos é dito que o Cristianismo não pode ser definido simplesmente como religião do livro, da palavra revelada e escrita, porque fundamental para os discipulado é uma pessoa, a Palavra que se fez carne, Palavra, que é a única companhia necessária para entrar no diálogo entre a vida e as palavras da Escritura.
Feita a premissa que a Carta aos Hebreus seja a inocente responsável pelas sucessivas deformações teológico-pastorais da exegese tipológica, que transformaram o leigo Jesus de Nazaré num sacerdote e elegeram a interpretação da Páscoa em termos sacrificiais a pedra angular da teologia católica, encontramos aqui uma perola preciosa em 4, 12-13, que nos diz: “A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Ela julga os pensamentos e as intenções do coração. E não há criatura que possa ocultar-se diante dela. Tudo está nu e descoberto aos seus olhos, e é a ela que devemos prestar contas.” Parece evidente que o autor não está falando da palavra escrita: ele está falando da Dabar-Logos-Verbum, da própria pessoa do Crucificado-Ressuscitado.
Que o nosso silêncio possa diariamente oferecer oportunidades de escuta desta silenciosa e indizível Palavra, que se identificou com o ser humano, suas alegrias e suas dores, seus limites e suas impotências e silenciosamente continua nos acompanhando, mais íntima do que as nossa intimidades. Palavra que continua se fazendo carne na nossa existência, na nossa história, repropondo a praxe do seu Evangelho que liberta os pobres e inspira, com a Páscoa, os caminhos do Reinado de Vida e Justiça.
Notas
[1] Roudinesco Elisabeth, Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, São Paulo, Companhia das Letras, 2008
[2] Quodlibet, Una voce, 11 ottobre 2024, Giorgio Agamben, Popoli che hanno perduto la lingua
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Jesus, a Palavra. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU