19 Agosto 2016
Aharon Appelfeld vive em Israel desde o fim dos anos 1980, mas sempre enfatiza as suas origens romenas. A sua família, desde sempre posta no Índex, por ser de origens judaicas, vivia em uma região (a Bucovina) até ser deportada aos campos de concentração nazistas, onde quase todos os membros foram assassinados. Ele, no entanto, conseguiu escapar de um campo de extermínio.
A reportagem é de Riccardo Mazzeo, publicada no jornal Il Manifesto, 18-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por muito tempo, ele viveu como fugitivo nas florestas, até o momento em que se juntou ao Exército Vermelho. Com esse uniforme, ele combateu os nazistas, mas, depois, com o fim da guerra, decidiu ir para a Palestina, ainda sob protetorado britânico. Lá, em um kibutz, estudou e começou a escrever em hebraico, uma língua que ele logo amou, a ponto de se tornar um dos mais importantes escritores da língua hebraica.
Nos seus romances, os temas da Shoá e do "mal radical" retornam muitas vezes, embora filtrados pelo pensamento de Martin Buber e de Gershom Scholem, intelectuais que Appelfeld considera como verdadeiros mestres. Recentemente, o escritor recebeu na Itália o Prêmio Hemingway. Mais do que uma entrevista, o que se segue é uma longa conversa com o escritor israelense.
Eis a entrevista.
Você tem em comum com Edgar Morin a devastadora experiência traumática da perda da mãe em tenra idade: você a perdeu aos nove anos; Morin, aos dez. De que modo essa perda influenciou o seu destino de escritor?
A minha mãe sempre estava comigo quando estava viva. Estivemos juntos no tempo do medo e no tempo da alegria. A sua presença me fazia não me sentir só, porque ela sempre me ajudaria a me levantar se eu caísse e me salvaria dos perigos. Essa sensação nunca me abandonou. Mesmo quando me tornei adulto, ela continuou estando comigo. O amor que eu sinto pelos meus pais, avós e todos aqueles que eu tinha ao meu redor durante a minha infância e que pereceram durante a guerra tornou-se uma parte de mim. Eu os sinto ainda mais perto agora do que quando estavam vivos. A morte não nos separou. Nos meus livros, eu exploro as suas vidas.
Outro judeu importante, Boris Cyrulnik, perdeu os pais, que foram mortos pelos nazistas, e custou muito a sobreviver. No entanto, ele também conseguiu se tornar um psiquiatra e a "traduzir" a sua capacidade de capitalizar os recursos interiores de que dispunha na construção da "resiliência", que é considerada hoje uma pedra angular da ação psicoterapêutica. Como pode explicar a sua resiliência em superar os enormes obstáculos que você encontrou no seu caminho?
Eu vi o mal em todas as suas formas. O mal é uma sombra escura, que está sempre à espreita, mas, em tempos de raiva e ódio, tende a se inflar e a penetrar nas nossas existências. Como podemos enfrentá-lo? Tudo o que podemos fazer é combatê-lo, cultivar a esperança e aumentar a nossa luz. Nos meus romances, eu quero honrar aqueles que viram as trevas, mas nunca renunciaram à esperança.
No seu último livro, "To the Edge of Sorrow" (que será publicado na Itália pela editora Guanda, em janeiro de 2017, com tradução de Elena Löwenthal), você mostra que há um modo para combater o mal. Em certo ponto, um dos partidários reconhece a casa onde o seu tio morava e descobre que ela é habitada por outras pessoas, que usam as roupas dos seus parentes e que queimaram todos os seus livros. Embora se sinta arder de raiva, o partidário e os seus companheiros tentam fazer a coisa mais certa e honrosa: recolhem um pouco de suprimentos e vão embora. Só quando os moradores da casa atiram contra eles é que eles os neutralizam e incendeiam a casa...
Estou convencido de que sempre há, em algum lugar, partidários como esses, que fazem o seu melhor para não perder a própria humanidade, por exemplo, lendo livros. Martin Buber foi o meu mestre, eu estudei com ele. Mais tarde, tornamo-nos amigos e tivemos discussões intermináveis pelas ruas de Jerusalém. Ele nunca teve qualquer vínculo com instituições religiosas, mas sempre falou muito de religiosidade, que é um sentimento forte e quente que nos eleva. As instituições religiosas podem ser obscuras e distantes da realidade, enquanto a religiosidade está intimamente ligada aos indivíduos.
Martin Buber é muito citado por Tom Kitwood, autor de um importante livro sobre um dos distúrbios mais incompreendidos, "Reconsiderar a demência" (Ed. Erickson), no qual ele explica que, se olharmos apenas para os sintomas e esquecermos que os pacientes são seres humanos, antes ainda de serem "pacientes", não somos realmente psicólogos ou psiquiatras dignos desse nome...
A religiosidade é algo que cada um de nós tem dentro de si. Ela desempenha um papel no indivíduo, permitindo-lhe se conectar com aqueles que ama. Ela permite elevar-se. O uso que as grandes Igrejas de todas as fés fazem da religião é o verdadeiro perigo. Elas esquecem o verdadeiro propósito da religião, que é o de elevar as pessoas.
Para muitos estudiosos, a sociedade contemporânea tende a esquecer, a remover o passado. No seu romance, há o futuro (o pequeno Milio) e o passado (a avó Tsirel). Podemos dizer que a literatura pode servir para sair do esquecimento do eterno presente....
A religiosidade, assim como a literatura, não pode resolver os grandes problemas, mas, pelo menos, pode nos tornar conscientes dos danos que provocam. Ela nos põe em contato com o bem, com aquilo que é delicado, como toda a arte. Quando nos sentamos para ouvir Bach, de algum modo, nós mudamos, tornamo-nos pessoas diferentes. Eu sempre tento "salvar" a humanidade nos meus livros. A pergunta é: o que podemos fazer? Como podemos seguir em frente? Devemos renunciar? A resposta se encontra na comunidade, que é responsável por si mesma, pelos seus idosos e pelos seus filhos.
Outro fato muito comovente no seu livro é que o pequeno Milio, no início, não consegue falar, mas, depois que o gigante Danzig cuida dele, no fim do quarto capítulo, ele consegue dizer as primeiras palavras e pronuncia: "Céu". Todas as vezes que o menino diz uma palavra nova, o gigante fica feliz, porque está levando a termo a sua missão...
O gigante desempenha um papel em salvar a humanidade, por exemplo, roubando roupas. É preciso ter roupas quentes e, naturalmente, livros. Livros de diferentes disciplinas e escritos em línguas diferentes.
O protagonista tem uma memória muito vívida de Crime e Castigo, de Dostoiévski, mas quando, finalmente, encontra uma cópia dele, sente-se menos atraído por ele, provavelmente por causa da situação em que se encontra. O que esse livro significou para você?
Quando eu o li, eu era muito jovem, realmente levava-o comigo para o bosque. Ele simplesmente me inspirava. Kafka também é um escritor que me influenciou. Era uma pessoa profundamente religiosa, apesar de tudo. Ele sabia que o mundo estava cheio de demônios. Basta pensar no Holocausto, na guerra, o mundo está cheio de demônios. Explicar as coisas é uma modalidade muito fraca. Não se deveria explicá-las a si mesmos, mas, sim, mostrá-las. Se você fala do mal, mostre-o! Mostre-o, não o explique!
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A luz das palavras para revelar o "mal radical". Entrevista com Aharon Appelfeld - Instituto Humanitas Unisinos - IHU