24 Agosto 2024
“Embora nos vendam “mudanças”, tanto a direita quanto a esquerda quando estão no poder se limitam a gerir o que existe. E o que existe é a espoliação, as guerras para a espoliação”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 23-08-2024. A tradução é do Cepat.
Para refletir sobre os estados realmente existentes, é necessário deixar de lado as ideologias e os julgamentos prévios para nos concentrarmos no que verdadeiramente estão fazendo ou deixando de fazer, em sua relação com os povos indígenas, negros e pardos. Pensar o Estado a partir do que vem fazendo nos últimos anos é muito mais útil do que remontar a teorias que, muitas vezes, partem de outras teorias abstratas que não interagem com a realidade.
Dias atrás, a revista Science publicou um estudo sobre o acesso da população mundial à água potável: cerca de 55% da população do mundo não tem acesso à água potável segura, ou seja, 4,4 bilhões de pessoas que vivem majoritariamente nos países do Sul global. “A contaminação fecal afeta quase metade da população em áreas de renda baixa e média”, diz o relatório comentado pelo El País, o que provoca anualmente mais de meio milhão de mortes por diarreia.
Do total, 1,2 bilhão vive no sul da Ásia, quase 950 milhões na África subsaariana, cerca de 850 milhões no leste da Ásia, quase 500 milhões no sudeste asiático e mais de 400 milhões na América Latina e o Caribe. O que os estados fazem para resolver tal drama? A resposta é: pouco ou nada.
Na verdade, limitam-se a promover o extrativismo/acumulação por espoliação (mineração, monoculturas, grandes obras de infraestruturas, especulação imobiliária etc.) que só agravam o caos climático e a escassez de água para quem não pode pagar por ela.
Embora o estudo mencionado não reúna dados do Norte global, nem de alguns países do Sul, como Chile e Uruguai, sabemos que nessas regiões existem grandes desigualdades no acesso à água. Em grandes cidades da América Latina, como Buenos Aires, São Paulo e Cidade do México, existem bairros inteiros com déficit crítico de água, questão que não está sendo atendida pelos estados.
No país onde moro, o Uruguai, sempre houve abundância de água potável de excelente qualidade. No entanto, nos últimos 30 anos, a deterioração é evidente, a tal ponto que hoje a água que consumimos não é segura. Nenhum dos governos destas três décadas, onde progressistas e conservadores se revezaram, levou a sério as consequências das monoculturas e da pecuária, responsáveis pela contaminação de todos os rios.
Os estados estão se limitando a facilitar a acumulação por espoliação, de formas muito diversas. O sociólogo William I. Robinson argumenta, em artigo recente, que “nesta era do capitalismo global, o sistema produz uma multiplicação historicamente sem precedentes de humanidade excedente”, pessoas “demais para ser úteis ao capital como exército de reserva, incapazes de consumir, inquietas e em constante movimento”. Para contê-las, porque os de cima não almejam mais integrá-las, recorrem ao “estado policial global, cujo objetivo final contingente é o extermínio”.
Estamos, então, diante de estados para o extermínio, cujo maior exemplo é Gaza, que para Robinson “aparece como uma forma de acumulação primitiva através do genocídio”. É o espelho no qual o resto da humanidade deveria se olhar.
O importante é compreender que estamos diante de uma realidade estrutural, que não depende mais de quem governa, ou seja, de quem administra o Estado, que disso se trata a arte de governar. Embora nos vendam “mudanças”, tanto a direita quanto a esquerda quando estão no poder se limitam a gerir o que existe. E o que existe é a espoliação, as guerras para a espoliação.
O que foi dito acima não quer dizer que não existam alternativas, mas, sim, que não podemos continuar confiando nos estados para que forneçam os serviços que lhes correspondem. Enquanto na Cidade do México vários bairros permanecem sem água porque se privilegia as áreas de alta renda e as indústrias, em La Polvorilla (Comunidade Habitacional Acapatzingo), a comunidade organizada conseguiu sua autonomia de água através da construção de três fontes diferentes. Não dependem do serviço estatal irregular.
O grande problema que enfrentamos é que a imensa maioria da população, ao menos em nosso continente, segue confiando nos estados e nos governos para resolver os seus problemas mais urgentes. Quando agem diferente e assumem o controle da água, como fizeram os Povos Unidos na região dos vulcões de Puebla, a resposta do Estado é a repressão para que a multinacional Bonafont retome as fontes.
Mesmo nas grandes cidades, cenário mais difícil para os setores populares, é possível avançar em autonomias de todos os tipos, se conseguirmos nos organizar e olhar longe, escapando do imediatismo e das armadilhas estatistas do sistema. É possível, mas para isso é necessário navegar contra a corrente, desafiar a rotina e a desordem capitalista, em particular a que reproduzimos todos os dias com total indiferença.
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Pensar o Estado a partir das resistências de baixo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU