26 Fevereiro 2024
A espantosa atualidade da pensadora francesa que apostava na experiência para desvelar o mundo. Foi operária na Renault e lutou na guerra civil espanhola. Fugindo de sectarismos comunistas, sugeriu: a revolução se faz em primeira pessoa.
O artigo é de Amador Fernández-Savater, editor da Aquarela Livros, ex-diretor da revista Archipiélago, atualmente transmite na Rádio Círculo o programa Uma linha sobre o mar, dedicado à filosofia de garagem, publicado por CTXT e reproduzido por Outras Palavras, 23-02-2024. A tradução é Rôney Rodrigues.
Pense e resista, pense em primeira pessoa e resista sem o culto ao poder, resistência do pensamento a toda paixão de unanimidade e pensamento de resistência capaz de percebê-la nos mínimos detalhes da realidade.
Lendo hoje em dia os textos políticos de Simone Weil (1909-1943), nos dois workshops organizados pelo CTXT, todos os participantes ficaram impressionados com a sua atualidade. “Mas quando isso foi escrito?”, alguém perguntou. Como é possível estar tão preso aquilo que é o mais vivo do presente, como ela sempre esteve, e ao mesmo tempo pensar para cem anos (e contando)? O que, nos perguntávamos, é o “método Weil”?
É claro que é uma questão de conteúdo, de afirmações, de argumentos, o que ela escreveu sobre o poder ou a guerra será sem dúvida discutido durante décadas, mas há também uma dimensão de olhar, de escuta, de abertura à realidade. Uma forma de estar no mundo e entre as coisas marcada pela atenção e receptividade radicais.
Colocar o corpo para pensar era uma constante em sua vida. Ingressou em uma fábrica para pensar as condições de trabalho. Viveu como uma miliciana para pensar na guerra. Militou como sindicalista para pensar a revolução. Somente através da experiência nos é dada a verdade de um fragmento do mundo. “A verdade não é apenas uma obra nascida do pensamento puro. (…) Uma verdade é sempre a verdade de algo, o esplendor da realidade. (…) Desejar a verdade é desejar o contato direto com a realidade.”
O corpo de Simone Weil, que teria morrido virgem, era um corpo-esponja capaz de registrar os mínimos detalhes e pensar a partir deles as tendências ocultas da época. A base material de seu método. Um corpo poderoso é um corpo sensível, fechado em si mesmo e ao mesmo tempo aberto, capaz de detectar os menores terremotos como um sismógrafo. Não necessariamente um corpo liberado ou expansivo, mas sem vulnerabilidade, sem fissura, sem ferida que o conecte ao mundo.
Força do desespero, força da guerra, força das palavras: resgato agora das conversas destes dias três pontos atuais do pensamento de Simone Weil.
Reprodução | Outras Palavras
Em 1932, pouco antes de Hitler chegar ao poder, Simone Weil viajou para a Alemanha para ver e pensar por si mesma o que estava acontecendo por lá. Normalmente, muitos vivem-se num país e não se sabem quase nada do que acontece. Simone Weil passa algum tempo em outro país e parece ver, ouvir e saber tudo. A sua biógrafa, Simone Pétrement, conta-nos que ela viajou sozinha, teve relativamente poucos encontros, especialmente com trabalhadores, fez muitas caminhadas e documentou extensivamente. Suas cartas e histórias são testemunho dessa capacidade de ver a época simplesmente caminhando por suas ruas.
Weil pensa e descreve duas coisas: a situação de fundo e as forças presentes. Situação e forças como eixos coordenados do método de Weil.
Em primeiro lugar, a situação de grave crise econômica na República de Weimar. Uma situação potencialmente revolucionária porque a vida de cada pessoa está indissociavelmente ligada ao destino comum. O pessoal nem sempre é político, mas é quando ambos vibram juntos. Quando o que está em jogo na situação comum e objetiva desafia a parte mais íntima e subjetiva de cada pessoa.
As forças presentes são três: o movimento hitlerista, o Partido Social Democrata (SPD) e o Partido Comunista (KPD).
Qual é a força dos hitleristas? É a força do desespero, responde Simone Weil, colocada ao serviço da classe dominante. A ressonância com o presente é óbvia. A extrema direita capta e captura o mal-estar social (que a esquerda não sabe representar) e direciona a serviço da reprodução do mesmo sistema que a provoca.
Os hitleristas conseguem isso através do nacionalismo, diz Weil. A armadilha nacionalista é sempre a mesma: substitui a pergunta “o quê” pela questão “quem”. O problema então não é mais o capitalismo em si, mas o capitalismo “inglês” ou “francês”. O culpado da crise econômica é o Pacto de Versalhes, que impôs condições humilhantes para a rendição alemã após a Primeira Guerra Mundial. Hitler vingará essa humilhação e restaurará o orgulho ferido.
Através do deslocamento que o quadro nacionalista opera, o mal-estar social fica ligado aos representantes do capitalismo nacional. O “socialismo” reivindicado pelos hitleristas é o nacional-socialismo: o capitalismo de Estado. A grande burguesia alemã utiliza-o contra movimentos efetivamente revolucionários, mas desta forma alimentará o fogo no qual ela própria acabará por arder.
A segunda força presente é o Partido Social Democrata, enraizado sobretudo na classe trabalhadora e nas fábricas alemãs. Weil valoriza muito essa implementação, pois sempre atribuiu grande importância à experiência de trabalho como determinante da subjetividade, da forma de pensar, sentir e agir.
Mas Weil também detecta um problema: a força do SPD e dos seus grandes sindicatos, que consiste em ter construído um mundo inteiro para os trabalhadores, composto por escritórios, bibliotecas, escolas e locais de férias, está firmemente costurada no regime de Weimar, na sua estabilidade e legalidade. E como desafiar aquilo de que se depende? “Os sindicatos estão acorrentados ao aparelho estatal por correntes de ouro.”
Pensar, para Simone Weil, exige um gesto radical de renúncia: às seguranças e certezas que nos constituem, ao próprio Eu. Ela própria renunciou a muitas coisas durante a sua vida para poder pensar livremente: a sua condição burguesa, o seu sucesso intelectual, a sua filiação religiosa, inclusive a sua segurança física.
O SPD pensa a situação de crise a partir do interesse de preservar a sua infraestrutura organizacional, mas desta forma torna-se surdo à gravidade do que está acontecendo e permanece subordinado ao status quo. Ele capitulará ao novo regime hitlerista, de mãos e pés atados. O pensamento conservador não é apenas uma questão de ideologia…
A última força presente é o Partido Comunista (KPD), estabelecido principalmente entre os desempregados alemães. Isso já representa um problema para Weil, pois para ela o trabalho produz subjetividade e a experiência do não-trabalho é subjetiva como uma incapacidade de propor uma alternativa para o futuro.
O segundo problema do KPD é ser liderado a partir de Moscou. Ou seja, ele é pensado de um lugar diferente ao que está em marcha. Quem vive as coisas não decide sobre elas, quem decide sobre elas não as vive. “Todos os fracassos do KPD são influenciados por Moscou”, conclui Weil, implacável.
A URSS está menos preocupada com uma Alemanha nazista do que com uma Alemanha antissoviética (seja qual for a sua origem). Os seus cálculos e decisões são feitos a partir dos interesses geopolíticos da URSS, não da situação atual na Alemanha ou da preocupação com as vidas dos militantes comunistas, sacrificados como peões no tabuleiro de xadrez.
Weil discute a decisão catastrófica do KPD de copiar a estrutura nacionalista de pensamento. O fascínio pela sua eficácia leva a abandonar as próprias categorias (internacionalismo) e a imitar o adversário, entrando numa lógica simétrica e espelhada. A mesma coisa que hoje se chama, em linguagem populista, “disputa de significantes nacionais (ou de ordem e certezas) à direita”. Pensar através da cabeça do adversário.
O resultado final é que o SPD e o KPD se confrontam ferozmente e não intervêm na situação de crise. A “frente única” é tentada mil vezes nas ruas, entre os próprios trabalhadores e a partir da base, mas nunca se cristaliza ao nível das decisões táticas e estratégicas do partido. Mesmo no caso dos comunistas, são preferidas alianças específicas com os hitleristas contra os social-democratas, inimigos históricos.
O que finalmente precipita o desastre é um problema de representação, de delegação de pensamento e decisão a líderes independentes da situação. O proletariado resiste ao desespero, os trabalhadores não se tornam ladrões ou criminosos, nacionalistas ou hitleristas. Mas a sua gestão pensa no que acontece de no exterior: o exterior dos interesses geopolíticos ou das propriedades a serem conservadas. “Os trabalhadores alemães têm contra si todo o poder constituído, o que está instalado em seu lugar”.
Com base na sua curta mas intensa experiência na guerra civil espanhola, e através do poema homérico A Ilíada, Simone Weil desenvolve uma poderosa meditação sobre a guerra, mais especificamente sobre a força que é ativada na guerra.
Ao contrário do marxismo, que nos ensina a ver por trás das declarações e retóricas humanistas a dura realidade dos interesses econômicos, Simone Weil ensina-nos a ver por baixo dos interesses econômicos outra realidade mais decisiva e determinante: a materialidade dos afetos, a embriaguez da guerra. O econômico esconde o pulsional!
O que é a embriaguez da guerra? É a paixão absoluta que toma e cega os combatentes, impedindo-os de ver a realidade e os seus limites. Quem tem força acredita, só por tê-la, que também tem razão e que o derrotado, por ser mais fraco, carece completamente dela. Entre o adversário e eu, pensa o intoxicado pela guerra, não há nada em comum, não há humanidade comum. Querer a vitória absoluta é buscar o extermínio radical do outro.
Esta embriaguez lembra o mecanismo (ao mesmo tempo racional e passional) que o General Von Clausewitz chamou de “escalada a partir dos extremos” e que define toda a guerra como uma tendência. Um jogo recíproco de ataques e represálias que, numa espiral louca e incontrolável, ameaça levar consigo tudo e todos que estão pela frente. O vencedor finalmente reina sobre um território devastado, ele é sempre o rei do deserto.
Este é o pano de fundo da famosa carta que Weil dirigiu ao escritor George Bernanos após retornar da frente de Aragão. Bernanos, depois de primeiro ter aplaudido a revolta franquista, se distanciou horrorizado ao testemunhar a repressão franquista na ilha de Maiorca. Simone Weil mostra-se em sua carta estar horrorizada pelo outro lado, que viu colegas anarquistas, eles próprios tomados pela embriaguez da guerra, executarem fria e brutalmente padres ou jovens falangistas.
Esta paixão pelo absoluto opõe-se ponto a ponto à concepção de mundo de Weil: como um emaranhado de relações, uma malha de vínculos, que acima de tudo exige de nós uma arte de mediações. Viver é como navegar: temos que contar com o que temos ao nosso redor: os ventos, as correntezas, a terra. A paixão bélica absoluta é, pelo contrário, como um navio que pretende avançar, destruindo o próprio ambiente em que se move.
Quando Netanyahu promete trazer “vitória total” a Israel, ele fala da embriaguez da guerra. O genocídio, a deslocação de populações, a destruição de casas são o extremo de uma cadeia lógica que nenhuma potência ocidental ousa hoje interromper. Mas não existe uma “vitória total”, ensina Weil ao ler A Ilíada, os “heróis” que acreditam controlar a força são na verdade manipulados por ela como marionetes patéticas, e sempre acabam sendo eles próprios arrastados pela poeira.
Por que a guerra? O problema, diz Weil, é precisamente que as guerras não têm um objetivo preciso ou uma origem clara, mas antes assumem qualquer pretexto para o desenvolvimento da vontade de poder. Como o rapto de Helena na Ilíada. Todos os personagens do poema homérico – exceto Páris – não se importam com Helena, mas a “afronta” que o seu rapto representa levará o mundo conhecido à catástrofe e à destruição total.
Mas e os conflitos contemporâneos? Já nem encontramos na origem o corpo encantador de Helena, pelo menos algo material, sensível e palpável. “São palavras adornadas com letras maiúsculas”, diz Weil, “aquelas que desempenham o papel de Helena (…) Atribuía-se letras maiúsculas a palavras vazias de significado e os homens derramarão rios de sangue”.
Palavras maiúsculas, palavras mortais, pelas quais as pessoas se matam e morrem. Que palavras são essas? Weil cita e analisa as seguintes: Nação, Segurança, Capitalismo, Comunismo, Fascismo, Ordem, Autoridade, Propriedade, Democracia. Não muito diferente, como se pode verificar, das palavras atualmente dominantes na linguagem política.
Mas mais do que tais ou quais palavras, o que é mortal é um tipo de efeito, de operação, de uso. O caráter mortal não é apenas uma propriedade da palavra em si, mas um tipo de funcionamento. Cada palavra pode cristalizar-se num fetiche e numa palavra mortífera.
A palavra mortal é, antes de tudo, uma palavra absoluta. Entidade autossuficiente, independente de todas as condições, de toda correspondência com o real, de toda medida ou proporção, de toda possibilidade de verificação.
Pensemos no uso que hoje se faz da palavra “democracia” entre os nossos políticos. Como uma questão absoluta, não relativa a algo: processo, medição, condições. Designar uma realidade como “democrática” significa que ela não pode ser discutida, questionada, verificada. É assim, ponto final.
A palavra absoluto é uma palavra vazia que se refere a tudo e a nada, não se refere a algo preciso, verificável, observável e palpável. Não admite resposta, réplica, dialética, diálogo. São palavras-monólogo que expulsam o outro, removem-no como interlocutor crítico e resolvem toda a discussão. A palavra absoluto sempre tem a última palavra.
A palavra mortal é, em segundo lugar, uma palavra moralizante. Distribui o Bem e o Mal. Me identifica com o Bem, te identifica com o Mal. Dá-me a razão completa, tira-a de ti. O outro não tem razão ou motivos, nada que valha a pena ouvir, discutir, não tem legitimidade na sua história. É puro Mal.
A utilização atual do termo “terrorismo” pela direita global é o exemplo mais óbvio. Serve para designar qualquer coisa porque não significa nada, coloca o outro fora da discussão, convida à sua eliminação. Mas a esquerda também tem as suas próprias palavras mortíferas, o seu uso mortal de certos termos, talvez o mais marcante hoje seja “fascista”. Um rótulo que serve de arma de arremesso, que inviabiliza toda escuta do que não é politicamente correto, todo diálogo com o diferente, qualquer indício de revisão das próprias ideias.
Existem palavras que possibilitam a relação, levam em conta o outro e ao outro, ao diferente e mutável. São palavras relativas, relativas a algo, relativas a alguém. Há outras palavras, porém, que impulsionam o avanço daquela nave que destrói tudo em seu caminho. São palavras maiúsculas, palavras mortais, palavras que contagiam a guerra e a sua paixão pelo absoluto.
Lutar na guerra envolve desativar a natureza mortal das palavras. “Esclarecer ideias, desacreditar palavras congenitamente vazias, definir o uso de outras através de análises precisas, isto é, por mais estranho que pareça, um trabalho que poderia preservar as existências humanas.”
Há, finalmente, um termo que Weil defende e resgata: luta de classes. Por que, em que sentido isso pode ser afirmado?
A crítica de Weil às paixões absolutas e totalitárias não é liberal, mas de inspiração maquiaveliana. A sociedade, diz o famoso florentino, está sempre dividida entre quem oprime e quem não quer ser oprimido. A única coisa que limita a voracidade infinita dos poderosos é a resistência dos sem-poder. Na verdade: só a luta dos fracos (escravos, mulheres, trabalhadores) fez este mundo progredir em termos de liberdade, igualdade e justiça.
Weil parece não acreditar, no final de sua vida, na palavra “revolução”. Não tem ela um caráter absoluto? Derrubar tudo, reiniciar tudo, mas sempre tudo. A resistência, porém, estabelece uma relação de forças. Onde havia uma única força, potencialmente totalitária, de repente aparecem duas ou mais que se limitam e se equilibram. A luta é ao mesmo tempo uma relação. Uma relação em divisão. O oposto da guerra.
Combater a guerra não implica estabelecer a paz, garantida por uma arquitetura jurídica definitiva, mas antes permitir a relação de forças, heterogêneas e mutáveis, que se limitam e se equilibram. A verdadeira catástrofe é, portanto, uma sociedade sem divisão, intolerante aos conflitos, incapaz do saber-fazer com as lutas levantadas pelos que estão abaixo, pelos impotentes, pelos fracos. Uma sociedade exatamente como a nossa.
Pensar e resistir, pensar em primeira pessoa e resistir sem culto ao poder, resistência do pensamento a toda paixão de unanimidade e pensamento de resistência capaz de percebê-la nos mínimos detalhes da realidade: aqui estaria a chave do método Weil para pensar o presente há cem anos?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Um convite ao pensamento de Simone Weil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU