24 Fevereiro 2024
"Ao longo da história, a pastoral cristã baseada na racionalidade superou muitas polarizações, em diversas e conturbadas situações. A fé cristã superou, por exemplo, a polarização bárbaro x cidadão promovida pelo Império Romano até sua queda no século V d.C. Superou a polarização raça ariana x raças inferiores que justificava a insanidade nazista. A luta de comunidades cristãs lideradas pelo Pastor Martin Luther King quebrou a polarização branco x negro, revogando as leis segregacionistas norte-americanas vigentes nos anos 60 nos EUA. Os cristãos brasileiros podem, seguindo essa tradição milenar do cristianismo, ajudar a erradicar a polarização cidadão de bem x cidadão do mal que impregna a extrema-direita e também setores da esquerda".
O artigo é de Evaldo Luis Pauly, bacharel (1985) e mestre em Teologia (1993) pelas Faculdades EST de São Leopoldo/RS; pastor da IECLB (1985-2005); doutor em Educação pela UFRGS (2000) e docente emérito da Universidade La Salle – Canoas/RS (2006-2020).
Como pastor ou pastora pode orientar evangelicamente um membro pobre da comunidade religiosa luterana que aceitou uma cesta básica em troca da promessa de voto? Talvez a fé na onisciência divina que é muito presente nos meios populares. A conversa sobre Deus que tudo vê, pode combinar-se com a concepção dialética luterana da liberdade de e, simultaneamente, liberdade para. “O voto é secreto, mas não para Deus! Qual pecado é pior? Ficar com a cesta básica e não votar nesse candidato ou votar nele mesmo sabendo que é corrupto pela compra de voto?” Para a dialética luterana, o voto secreto permite que o eleitor brasileiro tenha liberdade de usufruir da cesta básica e liberdade para votar em outro candidato que talvez seja mais honesto. Justificado pela fé, o eleitor pobre recebe um duplo benefício. É beneficiado pelo voto secreto, a primogenitura das liberdades democráticas, e vota em quem quiser. É beneficiado pela cesta básica que recebeu – o prato de lentilhas de Esaú (Gn 25).
A corrupção política gerada pela compra de votos acabará quando a maioria do eleitorado votar considerando, de fato e exclusivamente, seu próprio benefício, seu próprio interesse. O eleitor, justificado pela, pode se dar conta de que é do seu interesse receber a cesta básica e não votar no candidato que a forneceu. A fé na onisciência de Deus justifica o fato de, simultaneamente, aceitar a cesta básica e não votar no candidato corrupto, justamente, por tê-la fornecido em troca do voto. Esse duplo benefício decorre da dialética antropológica luterana do simmus iustus et peccator. Filhos e filhas de Deus podem assumir o pecado inerente à disputa eleitoral e ao exercício do mandato popular. Influenciado pela dialética luterana, Weber (1974, p. 147) constata que "os primeiros cristãos sabiam muito bem que o mundo é governado pelos demônios e quem se dedica à política, ou seja, ao poder e força como um meio, faz um contrato com as potências diabólicas, e pela sua ação se sabe que não é certo que o bem só pode vir do bem e o mal só pode vir do mal, mas que com frequência ocorre o inverso. Quem deixar de perceber isso é, na realidade, um ingênuo em política".
A antropologia pessimista de Lutero pode ser uma contribuição confessional à construção republicana de eleições um pouco mais honestas e menos corruptas. É plausível que a teologia popular luterana brasileira reinterprete o conselho pastoral de Lutero a Melanchton: “Pecca fortiter, sed crede fortius”. Essa fórmula pode ser a base pedagógica do “preparo para o exercício da cidadania” (LDBEN, Art. 2º) nas práticas do serviço pastoral de orientação eleitoral, em especial, aos membros pobres da igreja. Nessa perspectiva se pode ler a última tese proposta por Lutero (1987, p. 53-54) ao capítulo geral alemão dos agostinianos em 1518 na cidade de Heidelberg: "O amor humano evita os pecadores e os maus. Cristo diz: 'Não vim chamar os justos, mas pecadores' (Mt 9.13). E este é o amor da cruz, nascido da cruz, que não se dirige para onde encontra o bem de que possa usufruir, mas para onde possa proporcionar o bem ao mau e ao pobre".
Um autor clássico da sociologia política alemã do início do século XX, Robert Michels, desenvolveu a noção de que uma espécie de “lei de bronze” imobilizaria o partido revolucionário pela burocratização ou pela influência dos parlamentares eleitos. Em alguns casos o partido popular transforma-se num “Estado dentro do Estado” (MICHELS, 1982, p. 221). A análise política de Michels (1982, p. 239) assemelha-se ao pessimismo da antropologia luterana, quando considera a "concepção realista das condições mentais das massas nos mostra com evidência que, mesmo admitindo a possibilidade de uma melhoria moral dos homens, os materiais humanos, dos quais os políticos e os filósofos não podem fazer abstração em seus projetos de reconstrução social, não estão em condições de justificar um otimismo excessivo".
É natural que a direção igrejas formule orientações genéricas para o eleitorado cristão por ocasião dos processos eleitorais. Tornou-se uma tradição no Brasil, as igrejas forneçam cartilhas e cartas aos membros. É óbvio que ela não pode ir além do abstrato conceito político do bem comum da doutrina social da igreja. Na intimidade com o eleitor, o pastor deve ir além desse conceito. O bem comum é um ideal democrático, pouco operacional numa disputa eleitoral. Afinal, todo político é a favor do bem comum, até o corrupto. Todos os partidos defendem o bem comum. O eleitor cristão que se envolve concretamente em campanha eleitoral, sabe que a disputa pelo poder não é limpa porque o objetivo é derrotar o adversário.
No senso comum da gente luterana, política é coisa suja. E, de fato, é! A maioria dos membros das igrejas tradicionais tem boas razões para não participar da política porque sua sujeira lhes parece inevitável. É pastoralmente prudente impedir que a disputa político-partidária adentre na comunidade religiosa. Por óbvio, não se pode usar o púlpito para defender – como se fosse pregação do Evangelho – o interesse partidário do pastor. Em torno do altar se assentam para comungar todas as pessoas sejam candidatas ou eleitoras, vencidas ou vencedoras. Sob o poder do Espírito Santo, adversários políticos são irmãos na fé não por mérito mas por graça. A Igreja comprometida com o estado democrático de direito e com o Espírito Santo, não tem preferência partidária. Somente pessoa física tem liberdade de, se quiser, filiar-se a um partido político. O indivíduo é o único titular do direito eleitoral, ou seja, só ele pode habilitar-se para o exercício mínimo da cidadania que é votar e ser votado. Na democracia brasileira, o eleitor vota secretamente em eleitor indicado por partido político e homologado pela Justiça Eleitoral. Pela doutrina da justificação pela fé, não existe partido bom e justo porque seus filiados são, simultaneamente, justos e pecadores. O militante cristão de esquerda não é melhor e muito menos pior que o cristão de direita.
O senso comum crê que a política é coisa suja. Essa crença é a base sobre a qual se pode compreender a justificação pela fé como sendo uma escova e o interesse dos pobres em melhorar de vida como sendo o sabão. Assim, simultaneamente, com escova e sabão se pode limpar a sujeira da política! O paradigma luterano de justificação pela fé já aparece em alguns cientistas políticos brasileiros contemporâneos que trabalham com a teoria da escolha racional, descrevendo o surgimento de um novo tipo de eleitor: o eleitor de resultados. Para pensar de forma pastoral sobre o processo eleitoral, nessa perspectiva teórica, há que se acrescentar que, para o eleitor religioso, a fé integra sua racionalidade. No caso do PL e de outros partidos extremamente conservadores, se verifica a presença de igrejas e seitas fundamentalistas defensoras da teologia da prosperidade ou da mais recente teologia do domínio. No caso específico da fundação do PT, constata-se a presença de militantes das Comunidades Eclesiais de Base e das pastorais populares da IECLB, os “igrejeiros” como são chamados pelas demais tendências do PT. A presença de cristãos em movimentos de esquerda na América Latina não é apenas uma aliança tática com marxistas. É muito mais. !A questão das alianças aparece como superada: os cristãos se tornaram um componente dos movimentos populares socialistas, libertadores ou revolucionários. Eles trouxeram uma sensibilidade moral, uma experiência do trabalho popular “na base” e uma urgência utópica que contribuíram para enriquecer o movimento" (LÖWY, 1999, p. 60).
Na medida em que o PT se tornou um partido hegemônico com a vitória eleitoral de 2002, parte da militância cristã passou a ter dificuldades em permanecer “na base”, no trabalho formiguinha, No cotidiano da pastoral nas periferias. Muitos cristãos de esquerda não conseguiam justificar o governo petista. Qualquer governo sob o regime legal do capitalismo pratica injustiças contra os trabalhadores, alguns governos mais democráticos e populares praticam-nas com intensidade menor. É difícil para um militante cristão justificar as concessões e as negociações para garantir a governabilidade. Para a tradição cristã, no entanto, não há necessidade de justificação porque não existe governo bom e justo. “Não há um justo, nem um sequer” (Rm 3.10). Paulo, no entanto, não termina nessa constatação. Vai mais longe, encerrando o capítulo: “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei” (Rm 3.31).
Na prática, qualquer governo estava submetido à Lei 8.666/93 e, agora, à Lei Nº 14.133/2021 que define as licitações e contratos da Administração Pública. A licitação carrega uma óbvia contradição moral ao pretender garantir a probidade moral da gestão pública. A boa licitação define a forma justa de transferir dinheiro público para uma empresa privada. É óbvio que qualquer empresa visa ao lucro. O lucro permite que a empresa capitalista honesta pague suas obrigações trabalhistas e tributárias, entre outras. A empresa vencedora da licitação lucra com dinheiro público. Essa moral contraditória está tão naturalizada no senso comum que fundamenta a crença irracional de que a privatização atende melhor as funções estatais que decorrem da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
As pastorais populares têm dificuldades morais com os conchavos políticos, mesmo sendo óbvio que em “troca de serviços leais, hoje [1], os líderes partidários distribuem cargos de todos os tipos (...). Todas as lutas partidárias são lutas para o controle de cargos, bem como lutas para metas objetivas” (WEBER, 1974, p. 107). Essa realidade atrapalha as ações das pastorais populares no âmbito governamental e político-partidário. Essa dificuldade das pastorais populares talvez tenha facilitado a desenvoltura das igrejas e seitas fundamentalistas da extrema-direita no cenário político brasileiro.
Nossa tradição republicana não aprendeu que a harmonia entre os poderes decorre do mútuo policiamento que, ao fim e ao cabo, resulta da divisão do poder estatal em Executivo, Legislativo e Judiciário. Hoje, o Brasil e muitas outras democracias precisam ir além da clássica separação do poder proposta por Montesquieu na Revolução Burguesa da França de 1789. É preciso pensar na distinção de poderes que afetam a democracia como é o poder econômico, o poder dos “códigos de conduta” e o poder "daqueles que sabem, sejam estes os sacerdotes nas sociedades religiosas ou os intelectuais nas sociedades secularizadas, sobre aqueles que não sabem; por último, pela posse dos meios de coerção que marca, em última instância, o poder político, que é o poder dos poderes, e se exerce contra grande massa de impotentes. A história do pensamento político consiste, sobretudo, na invenção de instrumentos institucionais destinados a fazer que quem possua um poder qualquer não tenha condições de abusar dele. O remédio fundamental sempre foi a luta contra a concentração de mais poderes nas mãos de um único indivíduo ou de um único grupo" (BOBBIO, 2016, p. 14).
A maioria do eleitorado brasileiro ainda não abandonou a moral política aristocrática baseada na aparência e na herança familiar para adotar a moral republicana moderna baseada na autonomia do indivíduo e na livre concorrência entre os partidos. Falta-nos o senso comum dos pais fundadores dos EUA em 1776: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados." [2]
A polarização existente desde 2002 entre petistas e antipetistas radicalizou-se na campanha eleitoral de 2018 quando Bolsonaro (PSL) recebeu 57,8 milhões de votos (55%) e Haddad (PT), 47 milhões (45%). Acirrou-se no segundo turno de 2022, quando Lula (PT) fez 60.345.999 (50,9%) e Jair Bolsonaro (PL), 58.206.354 (49,1%) [3]. Desde então a polarização não arrefeceu, pelo contrário, assumiu características de atos de sabotagem e atentado terrorista urbano nos atos dos dias 12 e 24 de dezembro de 2023 que antecederam as manifestações golpistas nas depredações ocorridas em Brasília em 8/1/2023. Nesse dia foram presas 243 manifestantes, 1.152 no dia 9 e outras 35 nas operações policiais subsequentes e ainda em curso [4]. Na normalidade democrática, encerrado o pleito e homologado o resultado, o diálogo e a negociação para os acordos partidários amenizam a polarização. Não parece ser este o caso.
Ao longo da história, a pastoral cristã baseada na racionalidade superou muitas polarizações, em diversas e conturbadas situações. A fé cristã superou, por exemplo, a polarização bárbaro x cidadão promovida pelo Império Romano até sua queda no século V d.C. Superou a polarização raça ariana x raças inferiores que justificava a insanidade nazista. A luta de comunidades cristãs lideradas pelo Pastor Martin Luther King quebrou a polarização branco x negro, revogando as leis segregacionistas norte-americanas vigentes nos anos 60 nos EUA. Os cristãos brasileiros podem, seguindo essa tradição milenar do cristianismo, ajudar a erradicar a polarização cidadão de bem x cidadão do mal que impregna a extrema-direita e também setores da esquerda.
A racionalidade decorrente da fé cristã pode superar a polarização ideológica através da oferta de formação política racional por todas as correntes partidárias já que todas declaram almejar o bem comum. A União Democrata-Cristã – CDU, partido conservador de direita ao qual se filia a Chanceler alemã Angela Merkel, promove formação política a partir “do princípio de que é possível ensinar e aprender democracia, tal como é possível ensinar e aprender a jogar tênis ou tocar piano” (KRAFT, 1995, p. 4). Tal aprendizado, portanto, depende tanto dos dons e habilidades do discente quanto do preparo pedagógico do docente. A consciência política – de esquerda ou de direita – não nasce por geração espontânea.
A racionalidade derivada da fé parece, mas não é, a mesma dos iluministas do século XVIII. Para Lutero (1993, p. 29), “se queremos viver piedosamente, é necessário que mantenhamos uma distinção certíssima entre a força de Deus e a nossa, entre a obra de Deus e a nossa”. Cristo sabia claramente do que estava falando quando envia seus discípulos para o mundo: “Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas” (Mt 10.16). As pastorais populares precisam perder as ilusões pois toda instituição é falível. As esquerdas, especialmente depois da Queda do Muro de Berlim em 1989, têm a obrigação de resistir à ilusão de que haja um governo de esquerda bom e justo. Na melhor das hipóteses, governos de esquerda promovem uma injustiça menor. Razão pela qual é imperativo que o campo democrático e popular se esforce para submeter o Estado ao controle público tal como prevê a Constituição liberal de 88. Trata-se do princípio da representação – em alguns casos de forma paritária – entre governo, sociedade civil e movimentos sociais nos conselhos gestores de políticas públicas sociais. Como todos são pecadores, há necessidade do mais amplo controle social possível!
Para viver e suportar a universalidade do pecado, cotidianamente, é prudente que as pastorais das igrejas históricas assumam a democracia como um ato de fé. A fé ajuda a suportar o fato de a democracia nunca ser suficiente. Essa insuficiência também se apresenta na igreja, tal como se pode deduzir da aprovação de Lutero (2000) sobre o modelo de gestão concebido e experimentado pelos moradores da cidade de Leisnig nos anos iniciais da Reforma.
O senso comum da pastoral popular atribui derrotas da esquerda à falta de consciência da maioria do eleitorado. Essa atribuição é um moralismo preconceituoso, como se eleitor conservador fosse um alienado político! Há boas razões para o eleitor votar na direita! Há boas razões para que pessoas religiosas não gostem de participar da política! O problema da desmobilização e da falta de participação do eleitorado não são o conservadorismo e a alienação. A crise de representação nas democracias ocidentais é responsabilidade de partidos de esquerda ensimesmados em suas lutas internas, sua falta de interesse em motivar a filiação de mais eleitores, talvez para que a máquina partidária permaneça como máquina eleitoral a serviço dos parlamentares e dos CCs, como percebeu Weber na República de Weimar, diante do iminente avanço nazista. As esquerdas precisam responder as perguntas de Bobbio (2016, p. 30): "em um regime democrático, os partidos precisam responder: como se entra no partido? Quais as obrigações do inscrito? Entre as obrigações, existe também a de pagar uma cota de inscrição? Quais são os órgãos de direção e de governo? É assegurada a democracia interna, e como isso é feito?"
A ciência política responde a algumas dessas questões. O problema está no fato de que o “ideal democrático tradicional não se preocupou em constituir formas efetivas de ‘participação igual’ ou pelo menos ‘mais igual’, nas decisões públicas. Este é o desafio a que devemos responder” (GENRO; SOUZA, 1997, p. 19). Um poder que já está aí, mas ainda não preenche o vazio do poder. Essa dialética na relação fé e política parece se resolver pela teologia da cruz. É a proposta tradicional de Cullmann desde 1956. Para ele, a relação Igreja-Estado, ou “Evangelho-Estado” faz parte do “ponto mais central de todo o Novo Testamento: o relato da morte de Cristo” (CULLMANN, 1968, p. 9). A crucificação é um evento político articulado na parceria entre os sacerdotes e o governo romano. A tabuleta sobre a cruz anuncia a razão política pela qual o Estado executou Jesus Cristo.
A consciência política se produz na e pela prática democrática que permanece sempre insuficiente, pecaminosa e carente da graça. Essa prática democrática, didaticamente, pode começar na comunidade religiosa pela promoção periódica de assembleias, de eleições para diferentes dirigentes de grupos (jovens, crianças, mulheres, coro, festeiros, etc.). Os ministros religiosos devem aprender a se submeter periodicamente à avaliação de seu trabalho pastoral pela comunidade local. Os membros da igreja podem aprender a avaliar o trabalho pastoral, as campanhas de caridade, as construções da comunidade, as festas, etc. A pastoral com casais pode contribuir na democratização das relações familiares, ensinando ao marido a não bater na esposa, criando alternativas mais inteligentes para a educação dos filhos, promovendo o cuidado do corpo para o prazer sexual porque, como diz Lutero, pelo corpo damos e recebemos os “prazeres que o estado matrimonial proporciona quando [...] marido e mulher se amam, são unidos, um se preocupa com o outro” (LUTERO, 1995, p. 179).
A democracia não é exclusiva da política partidária das direitas e muito menos das esquerdas. Até fábricas desenvolveram práticas democráticas visando ao aumento dos lucros patronais e dos salários. É o caso famoso da Toyota japonesa que incentivou a participação dos operários na gestão dos processos industriais. A democracia na linha de produção dessa empresa aumentou tanto o lucro patronal, quanto a remuneração dos trabalhadores. A gestão democrática aumentou a produtividade da indústria nos tigres asiáticos a ponto de provocar a crise econômica das montadoras americanas nos anos 80 e 90. O economista Tauile, um dos primeiros pesquisadores brasileiros a estudar o modo de produção da Toyota no Japão recomenda que o Brasil adote essa democratização pela "introdução de novas tecnologias em consonância com a introdução de incentivos e novos padrões de remuneração, criando novas formas de organização e de gestão, e métodos de produção mais eficientes (à la Japão, mas respeitando a especificidade brasileira) etc." (TAUILE, 1989, p. 60).
A metodologia teológica da justificação pela fé tem competência para analisar a democracia porque trabalha mais com a materialidade da vida do que com a espiritualidade. Analisa a vida concreta, mas não aceita o determinismo materialista. Como afirma o pedagogo católico Paulo Freire (2003, p. 17): nós “somos seres condicionados, mas não determinados”. Não existe governo livre, bom e justo! Há governos que, à luz de indicadores sociais objetivos, distribuem para mais ou para menos a riqueza socialmente acumulada, administram com mais ou menos eficiência bens e serviços públicos, justiça e liberdade. Não há governos honestos, existe legislação pública mais ou menos eficaz na repressão da corrupção.
A justificação pela fé permite teorizar sobre a estrutura corrupta do estado brasileiro e, simultaneamente, motivar a participação de pessoas honestas nessas estruturas pecaminosas. Existem milhares de conselhos municipais dos quais podem participar as pessoas da comunidade. A pastoral popular pode apoiar candidaturas vinculadas às igrejas. Atuando nos Conselhos, as comunidades religiosas podem participar da gestão de políticas públicas sociais, sem o ônus de assumir o desgaste da partidarização. Nestes diversos Conselhos municipais [5], a comunidade faz política concreta e compreende a advertência de Lutero para contra a corrupção moral dos governantes do seu tempo que diante da corrupção deveriam “impedir e coibir. Se não o fazem, uma vez mais são culpados de todos os pecados” (LUTERO, 1995, p. 289).
[1] Weber, a convite dos alunos da Universidade de Munique, faz essa palestra. Em 1918, ele já percebia o avanço da extrema-direita alemã. Encerra sua fala: “Não o florescer do verão está à nossa frente, mas antes uma noite polar, de escuridão gelada e dureza” (1974, p. 152). Em 1920, nessa cidade, é fundado o partido nazista, do qual Hitler será líder de 1921 a 1945.
[2] Declaração de Independência dos Estados Unidos da América disponível no link.
[3] Ver no link.
[4] Dados atribuídos ao STF pela CNN. Disponível no link.
[5] Basta mencionar os Conselhos Municipais de Educação, do FUNDEB, de Saúde, de Assistência Social, dos Direitos das Pessoas com Deficiência, do Idoso, Conselho Tutelar, etc. Consulte o site da Prefeitura. O dado é antigo, mas evidencia a capilaridade do exercício da cidadania sem a conotação negativa da partidarização da fé: “O Brasil conta, hoje, com mais de 40 mil conselhos gestores de políticas públicas disseminados nos municípios” (BUVINICH, 2014, p. 55).
BOBBIO, Norberto. Contra os novos despotismos: escritos sobre o berlusconismo. São Paulo: UNESP, 2016.
BUVINICH, Danitza Passamai Rojas. O mapeamento da institucionalização dos conselhos gestores de políticas públicas nos municípios brasileiros. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, v. 48, n. 1, p. 55-82, jan./fev. 2014.
CULLMANN, Oscar. Cristo e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento Participativo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997.
KRAFT, Lothar. Formação política e educação para a cidadania. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1995.
LÖWY, Michel. O marxismo na América Latina. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
LUTERO, Martinho. Martinho Lutero: Obras selecionadas. 13 volumes. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 1993-2018.
LUTERO, Martinho. Da Vida Matrimonial, V. 5, 1995, p. 160-183.
LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. V. 4, 1993, p. 11-216.
LUTERO, Martinho. O Debate de Heidelberg. V. 1, 1987, p. 35-54.
LUTERO, Martinho. Os bordéis públicos não devem ser tolerados, V. 5, 1995, p. 287-290.
LUTERO, Martinho. Estatuto para uma caixa comunitária. V. 7, 2000, p. 37-64.
MATTEUCCI, Nicola; BOBBIO, Norberto; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 3 Ed. Brasília: Editora UNB, 2007.
MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.
TAUILE, José Ricardo. Novos padrões tecnológicos, competitividade industrial e bem-estar social; perspectivas brasileiras. Revista de Economia Política, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, 1989.
WEBER, Max. A ciência como vocação. In: WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 154-183.
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A justificação pela fé e a polarização política da extrema-direita cristã no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU