Nestes tempos de “eu S.A.”, o desafio de redescobrir Lutero e a Reforma. Entrevista especial com Rudolf Eduard von Sinner

Teólogo luterano analisa o que do “espírito da Reforma” de mais de 500 anos atrás pode ainda nos dizer sobre a realidade em que vivemos

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: João Vitor Santos | 31 Outubro 2023

Neste dia 31, fazemos a memória da Reforma, um movimento que foi gestado por nomes como Erasmo de Roterdã (1466-1536), mas que eclodiu a partir das ações de Martinho Lutero (1483-1546) e reconfigurou o Ocidente numa transição epocal entre o medievo e a modernidade. Hoje, vivemos uma outra transição epocal. Terá, mais de 500 anos depois, um movimento cristão condições de responder à questão de nosso tempo?

O teólogo Rudolf Eduard von Sinner acredita que sim. “A novidade da pós-modernidade é o crescimento exponencial da diversidade ou ao menos da consciência e do reconhecimento dela. As igrejas e as teologias são hoje uma voz entre outras. Alguns podem considerar isto uma perda, mas a meu ver propicia chances para dar testemunho do Evangelho no meio da pluralidade das vozes, procurando nem tanto a autopropagação, mas a contribuição para o bem comum”, analisa. Por isso, é fundamental ter clareza na centralidade da mensagem de Lutero e seu movimento. “O centro mesmo da Reforma foi a misericórdia de Deus que propiciava aos crentes uma ‘troca alegre’: Jesus, o Filho de Deus, carrega o peso do pecado e transmite a salvação para os filhos e as filhas de Deus que o seguiam”, explica, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Na prática, seguindo com von Sinner, significa que “todas e todos estão diretamente diante de Deus mediante Jesus Cristo, sem necessidade de nenhuma mediação sacerdotal ou eclesiástica. Não precisavam, nem tinham como contribuir para a salvação com méritos pessoais, qualidades específicas ou pagamentos em dinheiro”. Mas, o teólogo adverte que a Reforma, pensada por Lutero, não é estática, num só momento na história. Pelo contrário, está em movimento e há de ser revista, a partir de sua mensagem central, ao longo dos tempos.

É por isto que von Sinner considera que o cristianismo da mudança epocal em que vivemos carece de uma outra reforma. “Com o passar do tempo, precisamos não apenas revisitar ou reformular as respostas tradicionais, mas também rever as perguntas às quais querem responder”, aponta. Afinal, Lutero, quando pensou nas questões reformadoras estava mergulhado no tardo-medievo, ainda muito preocupado com o pós-morte, medo do inferno e desafio de alcançar o céu. “Hoje, parece-me que as pessoas se preocupam muito mais com a vida do aqui e agora. Perguntam-se pelo valor que têm diante da vastidão do universo, desconhecida na época da Reforma. Parece que são apenas uma gotinha num enorme oceano”, reflete. E acrescenta: “nestes tempos de ‘eu S.A.’, a aceitação incondicional de minha pessoa sem necessidade de grandes números, títulos, contas bancárias ou algo do tipo ainda me parece fazer muito sentido para escapar da infame ‘rodinha do hamster’ na qual facilmente chegamos a correr e nos esgotar”.


Rudolf Eduard von Sinner | Foto: Arquivo Pessoal

Rudolf Eduard von Sinner é suíço naturalizado brasileiro, licenciado e doutor em Teologia, ambos pela Universidade de Basileia, na Suíça. De 2003 a 2019, foi professor de Teologia Sistemática, Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso na Faculdades EST, em São Leopoldo, onde também foi pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa e diretor fundador do Instituto de Ética. Desde março de 2019, é professor adjunto de Teologia Sistemática na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, onde também atua como coordenador do PPG em Teologia. Trabalha também no PPG em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUCPR. Realizou pós-doutorado como membro residente do Center for Theological Inquiry – CTI em Princeton, Nova Jersey (EUA) e como fellow do Lichtenberg-Kolleg em Göttingen (Alemanha). Entre seus livros publicados, destacamos: Public Theology in the Secular State: a Perspective from the Global South (Zürich: LIT-Verlag, 2021) e Teologia pública em debate (São Leopoldo/RS: Sinodal; EST, 2020).

Na manhã da terça-feira, 31-10-2023, o Instituto Humanitas Unisinos - HU promoveu o debate a Reforma e o nosso futuro enquanto humanidade. Participaram a rev. Dra. Elaine Neuenfeldt, gerente do programa Justiça de Gênero da ACT Alliance, em Genebra, Suíça; o pesquisador associado das Faculdades EST de São Leopoldo, Walter Altmann; e o pesquisador de Teologia e História da EST e coordenador do PPG-EST Wilhelm Wachholz

Confira a íntegra da atividade em vídeo abaixo:

 

Confira a entrevista.

IHU – A Reforma reconfigurou a vida no século XVI, sendo importantíssima na transição epocal para a Modernidade. Quais consequências poderá ter para o século XXI, na transição epocal que vivemos para a chamada pós-modernidade?

Rudolf Eduard von Sinner – A Reforma Protestante teve sua força na redescoberta do Evangelho para o tempo atual. Nisto, ela continua exemplo – precisamos da volta às fontes para exercer a missão no presente e orientar o futuro. Insistiu na importância e igualdade de todo o povo de Deus, que à época se confundia com o conjunto dos cidadãos, ainda que em duas e depois três confessionalidades – católica, luterana e calvinista. Tragicamente os anabatistas foram excluídos e procurou-se destruí-los.

A vocação era, segundo Lutero, o exercício do mandato divino por cada um(a) no seu lugar, não apenas para os clérigos. Meninas e meninos teriam que ter educação de qualidade paga pelo Estado, o cuidado para com os pobres e os doentes e a justiça social teriam que estar na pauta dos governantes, como Lutero reivindicou em seu comentário ao Magnificat de Maria. Este belo livro, no Brasil publicado por uma editora católica (Santuário), não é um tratado de mariologia, mas uma ética política dirigida ao governante a partir do canto de Maria (Lc 1,46-55).

Magnificat: o louvor de Maria, de Martim Lutero (Aparecida, 2015), comentado pelo professor von Sinner | Foto: divulgação

Pós-modernidade

A novidade da pós-modernidade é o crescimento exponencial da diversidade ou ao menos da consciência e do reconhecimento dela. As igrejas e as teologias são hoje uma voz entre outras – os tempos da cristandade se foram. Alguns podem considerar isto uma perda, mas a meu ver propicia chances para dar testemunho do Evangelho no meio da pluralidade das vozes, procurando nem tanto a autopropagação, mas a contribuição para o bem comum. As palavras-chave são diálogo e compromisso.

IHU – Mais especificamente, o que o espírito que animou a Reforma pode nos dizer sobre a crise climática atual e as guerras que temos vivido?

Rudolf Eduard von Sinner – Lutero considerava o uso da força como uma necessidade para conter o mal. Defendeu a ação militar contra os turcos, que à época estavam ameaçando arrasar a Europa. Chegaram duas vezes até Viena. Contudo, não defendeu cruzadas, apenas ações defensivas.

Outrossim, valorizou a dedicação e a devoção dos muçulmanos e recomendou a publicação do Alcorão traduzido ao latim e, inclusive, o prefaciou. Quanto aos judeus, escreveu um tratado mais conciliador, “Que Jesus Cristo nasceu judeu”, de 1523, que foi visto por alguns judeus como ar fresco dentro da forte restrição dos direitos civis dos judeus na Europa à época.

O antissemitismo era comum. Vinte anos depois, em 1543, escreveu um tratado “Sobre os judeus e suas mentiras”, que devemos hoje considerar um dos escritos mais horríveis que Lutero escreveu. Seu colega reformador Martin Bucer, em Estrasburgo, foi muito mais aberto e dialógico.

Espírito que animou a Reforma

Você fala corretamente do “espírito” que animou a Reforma – é este espírito evangélico, vinculado ao Evangelho da misericórdia e do amor de Deus para com os seres humanos e toda criação, que é importante também hoje. Isto não nos obriga seguir os reformadores em tudo que fizeram e disseram, pois em cada época e em cada contexto o Evangelho precisa ser novamente interpretado e vivido. É este o espírito da Reforma.

Lutero ainda teve clareza e o cuidado para com o ser humano, especialmente o doente e necessitado, e com a natureza fazia parte da missão cristã. Existem lindos textos de Lutero que indicam isso. Entre outras orientou, num escrito de 1527, que não se deve fugir de uma “praga mortal”, referindo-se à onda de peste que assolava sua região à época. Lutero e sua esposa Catarina abriram sua casa para acolher doentes.

Em seu escrito, reprimiu tanto os que negaram a doença, achando que como crentes eles eram imunes, quanto os que fugiram de suas responsabilidades para com os doentes. Aqueles, no entanto, que realmente não tinham responsabilidades, estes deveriam, sim, fugir para não espalhar mais a doença. Teria ajudado muito observar isto na pandemia de Covid-19.

IHU – Todos os anos, quando celebramos a experiência da Reforma, destacamos de forma laudatória o passado, mas pouco falamos do presente e do futuro. A que o senhor atribui isso? Será um dos sintomas da perda da relevância do cristianismo em nosso tempo?

Rudolf Eduard von Sinner – Não vejo tal celebração apenas como uma celebração do passado. Aos 500 anos da Reforma, foi publicado um livro “do conflito à comunhão”, que mostrou um clima ecumênico muito diferente do que em todos os centenários anteriores. Houve uma celebração ecumênica nacional na catedral metropolitana de Porto Alegre.

A pesquisa católica sobre Lutero descobriu ele mais católico do que muitos católicos de sua época. Afinal, o debate teológico proposto por Lutero em suas 95 teses contra as indulgências, provavelmente afixadas publicamente em 31 de outubro de 1517, não aconteceu à época – o que houve era a resistência do poder eclesiástico contra aquele mongezinho rebelde que não quis se retratar a não ser que seja comprovado falso na base da Escritura. A Reforma sobreviveu porque o povo tomou ela por si – a revolução midiática do século anterior permitiu uma panfletagem ampla e não deixou ser abafada pelas autoridades eclesiásticas e políticas.

O filme “Lutero”, que veio a público em 2003, foi um enorme sucesso também no Brasil, visto por muitos católicos inclusive. A grande mensagem que emergiu foi a da liberdade – e esta continua relevante hoje. Interessa também a muitos pentecostais e até agnósticos.

Por fim, as celebrações dos 500 anos procuraram, especialmente nas terras de Lutero, descobrir novas formas de dialogar com o mundo atual. Uma delas foi um robô que proferia bênçãos com imposição de uma mão metálica e uma mensagem. É claro que criou polêmica – enquanto alguns gostaram demais, outros acharam fora de propósito. Temos que ousar nos meter também em temas e práticas polêmicas e reter aquilo que é bom.

IHU – Qual é a mensagem central propagada por Martinho Lutero?

Rudolf Eduard von Sinner – Para Lutero, o centro mesmo da Reforma foi a misericórdia de Deus que propiciava aos crentes uma “troca alegre”: Jesus, o Filho de Deus, carrega o peso do pecado e transmite a salvação para os filhos e as filhas de Deus que o seguiam. Todas e todos estão diretamente diante de Deus mediante Jesus Cristo, sem necessidade de nenhuma mediação sacerdotal ou eclesiástica. Não precisavam, nem tinham como contribuir para a salvação com méritos pessoais, qualidades específicas ou pagamentos em dinheiro.

Na terminologia técnica da época, chamava-se justificação por graça mediante a fé. Esta terminologia hoje é muito difícil para compreender. Mas ser aceito por Deus incondicionalmente – e, em decorrência disto, pelos seres humanos – continua uma mensagem importante em meio às exigências do mercado e às exigências a si mesmo. É uma boa fundamentação inclusive dos direitos humanos e fundamentais, pois se aplica a cada ser humano sem nenhuma acepção. Decorrente dessa mensagem central é a mensagem da liberdade do ser humano – o que certamente não perdeu sua importância.

IHU – Como o senhor compreende que a mensagem da justificação pela fé pode ser apreendida em nosso tempo? Por que parece haver uma incompatibilidade desta mensagem com a forma como temos vivido?

Rudolf Eduard von Sinner – Com o passar do tempo, precisamos não apenas revisitar ou reformular as respostas tradicionais, mas também rever as perguntas às quais querem responder. Como dizia Gottfried Brakemeier, professor emérito de Teologia, grande ecumenicista e ex-presidente da IECLB, Paulo tinha que ser derrubado do cavalo para enxergar que ele deveria servir a este cujos seguidores estava perseguindo. Lutero tinha que ser erguido do fundo de poço e libertado de seu enorme peso de querer agradar a Deus e não conseguir fazê-lo, e enxergar a grande misericórdia divina.

Isto num momento da história em que pouca gente passava dos 32 anos e havia muita preocupação com a vida após a morte, com muito medo do inferno e até do purgatório. Estavam vivas as imagens do inferno, do purgatório e do paraíso descritos na Divina comédia, de Dante Alighieri, no século XIV.

Hoje, parece que as pessoas se preocupam muito mais com a vida do aqui e agora. Perguntam-se pelo valor que têm diante da vastidão do universo, desconhecida na época da Reforma. Parece que são apenas uma gotinha num enorme oceano – que diferença fazem? Tem muito perigo de ser moído pelos moinhos do capitalismo selvagem de hoje, ou por cobrança externa ou por autocobrança, sendo cada um(a) seu(sua) próprio(a) empreendedor(a) – com alto perigo de fracassar diante de si mesmo. Nestes tempos de “eu S.A.”, a aceitação incondicional de minha pessoa sem necessidade de grandes números, títulos, contas bancárias ou algo do tipo ainda me parece fazer muito sentido para escapar da infame “rodinha do hamster” na qual facilmente chegamos a correr e nos esgotar.

IHU – Qual o lugar da fé na sociedade do século XXI? Como ela tem se revelado? Ou tem cada vez menos se revelado?

Rudolf Eduard von Sinner – A continua muito viva, especialmente no Sul Global, na América Latina e na África, na grande e cada vez maior diversidade de suas formas de ser vivida. Vimos uma politização constante de grupos cristãos que anteriormente se abstiveram da política. Vimos uma vergonhosa adesão maciça de grupos evangélicos, mas também de muitos católicos ao projeto negacionista, neoliberal e insano (literalmente) do bolsonarismo. Seus resquícios ainda estão entre nós, perpetuando desprezo diante das muitas mortes na pandemia, que poderiam ter sido evitadas, diante de minorias que sofrem violência constantemente e diante do total descuido com o meio ambiente.

Temos que recuperar o Evangelho em sua mensagem libertadora e cuidadora. Na Europa, bem mais secularizada, a fé parece ter se despedido – mas isto pode ser uma impressão superficial. Ela se diversificou e não está restrita às igrejas tradicionais – no entanto, estas continuam sendo integrantes imprescindíveis da sociedade civil que contribuem para com o bem comum. São elas também que mantêm viva a memória cultural e religiosa da fé – e muita gente, ainda que não frequente uma igreja, ainda é membro e paga sua contribuição, pois sente que, se não existisse, algo faltaria.

IHU – Nossas igrejas cristãs têm tentado demonstrar sua relevância no mundo, para além da fé, nas obras de ajuda humanitária, na diaconia, no amor ao próximo e na fraternidade. Mas tem sido convincente?

Rudolf Eduard von Sinner – Sem dúvida ainda hoje é o que mais convence na atuação das igrejas e lhe dá credibilidade. Onde estaríamos no Brasil se não tivéssemos organizações religiosas que ajudam as pessoas em suas necessidades e as acolhem como família estendida em meio à violência, ao desprezo e à carência? O Estado não dá conta, nem outras organizações da sociedade civil. Igrejas e suas organizações atuam na educação, na saúde, na assistência social, e muito.

Em pesquisas da organização Latinobarómetro, a confiança nas igrejas vem logo após a confiança nos bombeiros, muito antes da confiança no governo, nos políticos ou na polícia. Isto resulta da sua atuação social e diaconal. No entanto, os casos de pedofilia e abusos sexuais na Igreja Católica e a intolerância e o chamado “racismo religioso” em igrejas principalmente evangélicas têm arranhado esta imagem positiva. Aqui há muito a ser feito.

IHU – A fé sem obras é morta. Mas quais os desafios do cristianismo para que nas obras, especialmente de caridade, tão importantes em nosso tempo, não percamos a dimensão da fé? Ou, por outro lado, o que faz as obras de uma igreja serem  diferentes de uma ONG, por exemplo?

Rudolf Eduard von Sinner – Pois é, não devemos esquecer que, se a diaconia é um aspecto irrenunciável do ser da igreja, ela não é o único. O testemunho da fé é para as pessoas poderem encontrar o Deus misericordioso que propicia perdão e reconciliação – com Deus, com a outra pessoa, consigo mesmo. A libertação do pecado, como dizemos na linguagem teológica, desdobra-se na libertação da integralidade do ser humano em todas as suas dimensões, espiritual e material.

Como dizia Lutero, as obras são decorrentes da fé e se tornam boas na medida em que são praticadas na fé. Por isso a igreja tem feições de uma ONG, mas não se restringe a isso. Ela não pode deixar de tratar do sentido da vida e das grandes questões da nossa existência – por que existimos, para que existimos, para onde vamos.

IHU – O que é ser cristão hoje?

Rudolf Eduard von Sinner – Um dos aspectos é o desdobramento da questão anterior: ser testemunho do Evangelho que dá sentido à vida mesmo em meio ao sofrimento, mas procura proclamar e propiciar a libertação de tudo que nos amarra. Disto decorrem obras de diaconia. A liberdade cristã, como já dizia Lutero, não é apenas ter liberdade de escolha. Esta é boa escolha e nunca na história foi tão grande como hoje.

Escolhemos a nossa religião, onde vamos morar, com quem casar-se, onde e em que trabalhar. É verdade que muitos não podem efetivamente usufruir desta liberdade por restrições materiais ou pelas mais diversas ameaças à sua existência. Isto nunca deveria nos deixar quietos. Agora, a liberdade cristã é uma liberdade que se coloca a serviço – de Deus e dos seres humanos. Um não cristão não pode fazer este serviço também? Pode, é claro. Mas a questão importante para nós é: um cristão pode não servir?

IHU – Vivemos tempo de emergência de uma outra reforma no cristianismo?

Rudolf Eduard von Sinner – Creio que sim, em várias frentes. Uma delas é que a teologia da prosperidade tomou conta de grande parte do cristianismo no Brasil e alhures. O desejo de dar-se bem na vida é compreensível e faz parte do nosso tempo. Mas o Evangelho é totalmente deturpado quando Deus não dá a graça e seu amor gratuitamente, mas tem que ser comprado e teria que fazer a sua parte obrigatoriamente quando o “cliente” paga.

Também precisamos de uma Reforma que pudesse afinar o testemunho cristão num pluralismo sem desprezo nem violência, mas com gratuito amor e paciência. É também necessário reconhecer o devido espaço das mulheres, das pessoas afrodescendentes, das pessoas indígenas, das pessoas com deficiência e da população hoje denominada de LGBTQIA+ na igreja e na sociedade. Pode ser a parte mais difícil, mas é necessária, a meu ver.

IHU – A Igreja Católica viveu nestes últimos dias a primeira etapa da assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade. Um dos temas postos a partir das paróquias, onde emergiu a consulta sinodal, é a ordenação feminina. As igrejas que nascem dos reformadores históricos já vivem esta realidade. Por que este tema é importante e como o sacerdócio ou a diaconia feminina podem contribuir para amplificação da mensagem do cristianismo?

Rudolf Eduard von Sinner – Lamentavelmente nem todas as igrejas oriundas da Reforma vivem esta realidade. Mas o número das que o fazem é muito considerável. Algumas igrejas pentecostais também começaram a ordenar mulheres, que de fato já faziam todo trabalho pastoral igual aos homens, mas não eram reconhecidas.

Jesus teve muitas mulheres entre seus discípulos e entre as pessoas que o procuraram, e reconheceu-as de uma maneira muito além do seu tempo. Paulo cumprimenta Febe como “diácono” (!) e “preposta”, portanto liderança, o que as traduções de Romanos cap. 16 tendem a esconder. Também tradicionalmente faziam da Junia em Rm 16,7 um homem, Junias, pois acharam insuportável a ideia que uma mulher poderia ser citada entre os que “se destacam entre os apóstolos”.

Agora, diáconas existiam nos primeiros cinco séculos, com o mesmo tipo de ordenação que seus colegas varões. Caiu em desuso depois, mas o diaconato feminino pode sem problemas ser reativado tanto na Igreja Católica quanto na ortodoxa. O sínodo discutiu isso e ainda não chegou a um consenso, mas ao menos está na pauta. Me parece algo sobremaneira importante, pois fomos privados durante séculos da benéfica contribuição das mulheres. Onde ela existia e existe, ela tende a ser invisibilizada.

Testemunho feminino

O trabalho de religiosas no Amazonas, por exemplo, é muito pouco valorizado, mas é importantíssimo. É uma questão da completude e integralidade do ministério do povo de Deus e uma questão de justiça. Também é uma questão sociológica: a ordenação somente de varões já de longe não dá mais conta do trabalho pastoral a ser feito.

No estado do Amazonas, por exemplo, temos hoje cerca de 400 padres e mais de 3.000 pastores (e agora também pastoras) somente das Assembleias de Deus. A Igreja Católica está perdendo o norte. Vejo como único caminho a inclusão e valorização do ministério de mulheres e a abolição do celibato obrigatório.

IHU – Nestes mesmos encontros da assembleia sinodal, o Papa Francisco tem insistido na mensagem de que todo o batizado na fé cristã tem seu espaço na comunidade de fé, deve ser ouvido e ativo no Segmento de Cristo. Diante dos desafios atuais, como conquistar este coração dos batizados para que efetivamente vivam a fé cristã?

Rudolf Eduard von Sinner – Acredito que um dos grandes problemas da atração de pessoas às igrejas é o abalo de sua credibilidade por erros morais (abusos sexuais) ou políticos. Também a falta do ministério de mulheres e a manutenção do celibato obrigatório na Igreja Católica são coisas cada vez menos compreensíveis, e uma hierarquia que não respeita a colaboração das pessoas leigas é um testemunho muito negativo.

Lutero defendeu – como já lemos na primeira carta de Pedro 2,9 – o sacerdócio universal de todos(as) os(as) crentes. A Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Igreja, Lumen Gentium, incluiu esta compreensão e fortaleceu a noção bíblica do Povo de Deus. O papado hoje representa, estruturalmente, a última monarquia absoluta da Europa e, em grande parte, do mundo.

O Papa Francisco faz muito para mudar isto, vejo, reconheço e aprecio. Ele fala, com toda propriedade, de uma Igreja em saída. As pessoas cada vez menos vêm por si mesmas. É preciso ir ao encontro delas, onde estão, pois os convidados do banquete não vieram, para citar a parábola registrada no Evangelho de Lucas 14,15-24. Levar o povo de Deus como um todo a sério, conceber o ministério ordenado no meio e a partir dele e construir uma liderança compartilhada entre ministros(as) ordenados(as) e pessoas leigas me parecem elementos muito profícuos. E ver como e onde as pessoas de fato vivem – não adianta reproduzir estruturas de uma igreja que deram certo no passado quando a realidade mudou substancialmente, por exemplo por meio da maciça urbanização.

Entre o culto e a praia, a opção pelos dois

Para dar apenas um exemplo muito simples: os cultos na igreja luterana em geral ocorrem na manhã de domingo. Uma paróquia perto do mar percebeu que quase ninguém mais vinha – é que vão para praia naquele horário. Já à noite tem como celebrar culto com boa adesão...

Há também o Culto de Tomé, algo concebido na igreja luterana finlandesa nos anos 1980, num ambiente urbano e (pós-)moderno, procurando propiciar uma preparação e celebração mais participativa que atendem melhor às necessidades das pessoas. As pessoas podem orar, aconselhar-se, agradecer e interceder, receber o perdão e saem com uma unção e bênção personalizada. Toque a emoção tanto quanto a razão, o que é especialmente importante numa igreja como a minha, que tende a ser muito racional.

Leia mais