26 Junho 2023
A tradição elaborou uma "teoria do sexo feminino" para fundamentar a resposta aos requisitos subjetivos necessários para a ordenação. O fenômeno, teologicamente falando, não é muito antigo.
O artigo é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, publicado por seu blog, Come Se Non, 24-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com exceção de algumas expressões, que podem ser encontradas aqui e ali na Escritura, nos Padres, na tradição jurídica, sinodal e papal, pelo menos até o século XII não aparece uma verdadeira teorização do “sujeito a ser ordenado”. Não é difícil observar que o aparecimento do tema ocorre dentro do refinamento da definição, não em positivo, mas em negativo.
a) Impedimentos ou substância?
Principalmente, mas não exclusivamente, o caminho não é o dos "requisitos", mas dos "impedimentos". Do sujeito a ser ordenado não se fala pelo que deveria ter, mas pelo que não deveria ter. É interessante notar que não há vestígios de nada disso nas Sentenças de Pedro Lombardo. Para o grande mestre parisiense, as questões que ameaçam a ordenação dizem respeito apenas à "simonia" ou à idade. Na grande corrente que desce dos Comentários às Sentenças, nem mesmo em Alberto Magno encontramos um desenvolvimento dos impedimentos que inclua, estruturalmente, o "sexo feminino". Em vez disso, encontramos em seu discípulo direto, Tomás de Aquino, um "sistema geral" de impedimentos. Impedimento é aquela circunstância que torna a ordenação ineficaz (ou inválida). Todos podem ser ordenados, exceto aqueles que têm um “impedimento de autoridade”.
A lista dos impedimentos é esclarecedora, porque mostra como para Tomás todo batizado pode ser ordenado, exceto nos casos em que o sujeito seja impedido ou pelo "sexo feminino", ou pela "incapacidade ou menor idade", ou pela "escravidão", ou pela "condição de filho natural" ou pela "deficiência". Essa solução tem duas vantagens: não só articula o obstáculo à ordenação em diferentes dimensões, mas também o interpreta de forma linear como uma “falta de autoridade”. Todos esses 6 impedimentos são “condições de minoridade”. A deficiência pode derivar do destino, idade, contrato ou natureza. Não podem se tornar "ministros de Cristo" e, portanto, assumir uma autoridade, aqueles que são socialmente, fisicamente, contratualmente ou naturalmente desprovidos de autoridade. Todo impedimento deve ser argumentado e assim faz Tomás. A tradição medieval e moderna baseia-se nessa forma de pensar, profundamente influenciada pelo magistério do Doutor angélico.
Antes mesmo de Tomás, entre os juristas medievais, que também contribuíram para a elaboração do conceito de “impedimento” (especialmente no âmbito matrimonial), desenvolve-se uma outra forma de pensar, que é invertida. Tomás coloca como primeiro impedimento o "sexo feminino", e o identifica como "necessitate sacramenti", enquanto todos os outros são "necessitate praecepti", ou seja, podem ser superados com a possível mudança da condição de escravo, de filho natural ou de menor. Em vez disso, a mulher é colocada em uma concepção que a obriga a uma "incapacidade natural", pelo menos no que diz respeito à "eminentia auctoritatis".
A solução oposta é aquela que aparece nos "decretistas" (como Huguccio ou Roberto de Flamesbury) e é aquela do sexo masculino fazer parte da substância da ordem. Nasce a expressão "sexus est de substantia ordinis", que será retomada no plano jurídico e que está na base da solução que consta do CJC de 1917. Essa forma de pensar é invertida em relação àquela dos impedimentos: não se trata de identificar o sexo feminino como impedimento, mas o sexo masculino como requisito substancial. O que muda significativamente, sobretudo nas retomadas contemporâneas, é a forma de argumentar: enquanto o impedimento deve sempre ser justificado, a substância pode ser simplesmente afirmada ou até mesmo pressuposta. Afirmar que o sexo masculino faz parte da substância do sacramento da Ordem pode continuar sendo uma afirmação apodítica, e ter como simples consequência "marginal" a exclusão da mulher da ordenação.
b) Argumentação ou asserção?
Embora tenham o mesmo objetivo, os dois argumentos geraram duas abordagens diferentes da questão. A primeira linha desenvolveu vários argumentos ao impedimento. Enquanto a segunda linha fundou a afirmação da reserva masculina, sem maiores justificativas. A primeira linha promove uma pesquisa teológica dos argumentos, enquanto a segunda conduz a uma teologia de autoridade, na qual a afirmação se explica por si mesma ou por um vínculo direto com a "vontade de Cristo". Outro dado interessante é que no debate dos últimos 50 anos, também no magistério católico, se passou do primeiro para o segundo estilo: enquanto Inter Insigniores propõe argumentos para justificar o impedimento, Ordinatio sacerdotalis limita-se a reafirmar a natureza substancial do sexo masculino e dela extrai a falta de poder da Igreja sobre um elemento que é de substância não para o sacramento da Ordem, mas para a ordenação sacerdotal.
Um efeito de distorção desses dois tipos de argumentação diz respeito à forma de interpretar o "sexus femininum": para a corrente do impedimento, o sexo feminino é a forma mais explícita e clara de "falta de autoridade". Para a corrente da substância, o sexo feminino é simplesmente a negação do sexo masculino. Por esse motivo a primeira solução pode estar aberta a uma ressignificação, enquanto a segunda é digital e não apresenta verdadeiras razões: se você não for homem, não é ordenado. A razão final aqui é a anatomia, enquanto na outra é a autoridade. Um argumento sobre a autoridade poderia ser substituído por um ato de fé sobre a anatomia. E a semelhança potencial do sexo masculino do ministro ordenado à Imaculada Conceição ou à Assunção, por grau de autoridade, parece produzir uma distorção não irrelevante do magistério.
c) Humilhadas e ofendidas?
Para concluir este raciocínio, gostaria de mostrar as surpreendentes potencialidades da abordagem tomista. Para Tomás, de fato, a questão do “sexo feminino” é uma questão de “falta de autoridade pública”. A correlação entre sexo feminino e falta de autoridade não é natural nem revelada. É uma reconstrução cultural, vigente por muitos séculos, mas que entrou em crise no século XIX e trouxe no século XX um dos três "sinais dos tempos" que João XXIII reconheceu profeticamente em 1963, com a Pacem in Terris. Uma mulher que "in re publica interest" - que ingressa na vida pública - é uma novidade decisiva para repensar profundamente a tradição.
Diante dessa novidade, que já tem 60 anos, a Igreja ainda se move de duas maneiras. Por um lado, pode retomar o raciocínio sobre os impedimentos, assim como exposto por Tomás, mas com novos conteúdos: diferente é hoje o filho natural, diferente é hoje o portador de deficiência, desapareceu hoje o escravo, muito diferente é a mulher. E um Tomás 700 anos mais jovem poderia ter descoberto que o sexo feminino não é de forma alguma desprovido de gradus eminentiae em termos de autoridade.
Por outro lado, a Igreja poderia permanecer na abordagem "substancial", na afirmação pura do masculino, do qual o feminino é simples negação. Ao repetir esse argumento, que em si se presta a ser simplesmente afirmado, sem nenhuma argumentação, quase como um destino, a Igreja não deve estranhar que as mulheres, simplesmente negadas, se sintam humilhadas e ofendidas. A violência de algumas aparentes soluções sistemáticas é igual à indiferença com que são repetidas despreocupadamente. E disso os teólogos, em vez de se calarem, deveriam se preocupar.
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Diaconato feminino e o Sínodo: questão de autoridade ou de anatomia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU