Por: João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto | 28 Outubro 2023
O historiador Franco Cardini compreende a figura de Martinho Lutero como um agostiniano atormentado com a ideia de salvação e, particularmente, escandalizado com a corrupção do alto clero. Para o professor, são esses elementos que o fazem questionar o poder papal. Movimento semelhante ao que fez Francisco de Assis, em plena Idade Média. A diferença, segundo Cardini, está na associação que Lutero faz com o poder temporal. “O seu sonho de retorno ao Evangelho faz parte de um programa e de um projeto”, reitera. “A diferença está no fato de que Lutero, rebelando-se contra o papa, apelou ao mais alto poder temporal da época”, destaca na entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line.
Cardini lembra que Lutero nunca quis um cisma, e, embora tivesse a intenção de romper com o pensamento medieval, gostaria realmente de voltar ao cristianismo apostólico. Ou seja, a sua contribuição para a eclosão da modernidade foi quase uma consequência não planejada. “O seu gesto encontrou-se com um dos elementos do nascimento da Modernidade: a desagregação do universalismo cristão, o nascimento do absolutismo moderno. Sem o apoio político da alta nobreza alemã e uma notável ‘simpatia’ do imperador Carlos V, a ‘revolta’ de Lutero não teria sucesso”, pontua. O professor recorda também que, a partir de Lutero, todos os reformadores são levados a uma associação com o poder político da época para se dissociarem da igreja de Roma. “Mas o resultado disso foi a constituição de Igrejas nacionais subordinadas ao poder temporal”, completa.
Franco Cardini (Foto: ICIB)
Franco Cardini é italiano de Florença. Historiador, professor do Istituto Italiano di Scienze Umane - Sum. Ocupa-se, há meio século, com estudos sobre as relações entre Europa medieval e Oriente, essencialmente como os temas cruzadas, peregrinações, relações culturais, relações político-diplomáticas, laços econômicos e comerciais. Ao longo das últimas três décadas, tem ampliado sua investigação aos tempos modernos e contemporâneos. Entre as publicações, destacamos o título em português Atlas histórico do cristianismo para jovens (Cidade Nova, 2010), e os livros Samarcanda: Un sogno color turchese (Società editrice il Mulino, 2016) e Andare per le Gerusalemme d'Italia (Società editrice il Mulino, 2015).
Esta entrevista foi publicada originalmente em outubro de 2017, na edição n. 514 da revista IHU On-Line, intitulada Lutero e a Reforma – 500 anos depois. Um debate. A edição completa está disponível aqui.
IHU On-Line – Como compreender a figura de Martinho Lutero no contexto do tempo medieval?
Franco Cardini – Idade Média, Idade Moderna e assim por diante são abstrações. Lutero é um religioso agostiniano atormentado pelo problema da relação entre salvação da alma e predestinação, e sinceramente escandalizado pela corrupção do alto clero do seu tempo. O seu sonho de retorno ao Evangelho faz parte de um programa e de um projeto não muito diferentes dos de Francisco de Assis: a diferença está no fato de que Lutero, rebelando-se contra o papa, apelou ao mais alto poder temporal da época.
O seu gesto encontrou-se com um dos elementos do nascimento da Modernidade: a desagregação do universalismo cristão, o nascimento do absolutismo moderno. Sem o apoio político da alta nobreza alemã e uma notável “simpatia” do imperador Carlos V , a “revolta” de Lutero não teria sucesso. E ele nunca pensou em provocar um cisma.
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IHU On-Line – De que forma podemos entender as mudanças do pensamento medieval ao moderno e por que a Reforma Luterana pode ser tida como um marco dessa mudança?
Franco Cardini – Na Reforma, há duas características tipicamente modernas: a relação primária com o Estado laico e a atitude individualista no exame da Sagrada Escritura.
IHU On-Line – A experiência do protestante Lutero provoca transformações nas relações entre poder temporal e espiritual? Como?
Franco Cardini – Com Lutero e depois de Lutero, todos os reformados (com exceção de algumas seitas radicais) se apoiariam nos poderes temporais ou, melhor, lhes solicitariam a se substituírem à Igreja na gestão de poderes e de riquezas. Mas o resultado disso foi a constituição de Igrejas nacionais subordinadas ao poder temporal.
IHU On-Line – A Igreja medieval passou por reformas que antecederam a luterana. Como esses movimentos vão impactar no pensamento do monge Lutero?
Franco Cardini – Sem dúvida, Lutero é influenciado pelas reformas anteriores. O tema reformare deformata é típico e usual na vida da Igreja.
IHU On-Line – E como a cisão promovida pelo monge vai gerar outras reformas, tanto dentro do catolicismo como do protestantismo, com divisões duras entre os próprios evangélicos?
Franco Cardini – Uma vez iniciado o processo de cisma, ele se reproduziu, por natureza própria.
IHU On-Line – No que consiste a paradoxal coexistência das ideias de liberdade e servidão presentes em Lutero? Como esses conceitos se articulam no mundo medieval e de que forma são ressignificados na Modernidade?
Franco Cardini – A coexistência da liberdade do cristão e a servidão do súdito é um elemento constante na Idade Média. O tema central da Idade Média, a partir desse ponto de vista, é a relação entre onipotência divina e respeito, por parte de Deus, pela vontade humana. Como essa vontade pode verdadeiramente ser livre sem prejudicar o princípio da onipotência divina continua sendo o principal problema que permanece mesmo depois da Reforma.
IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre o processo de secularização e mesmo a ideia de globalização, dos tempos modernos até os dias atuais, com a descoberta de Lutero acerca das contradições entre fé, liberdade individual e Onipotência divina presentes na alma cristã?
Franco Cardini – A Modernidade, na sua essência, é duas coisas: individualismo e primado da economia. Lutero estabelece um ponto firme do primeiro através do “livre exame da Sagrada Escritura”. Calvino, do segundo, através do conceito de sucesso na vida mortal como sinal da predileção divina e, portanto, da predestinação à salvação. Os poderosos e os ricos tornam-se os candidatos à salvação espiritual, os prediletos de Deus. A sintaxe do “Discurso das bem-aventuranças” é invertida, e afirma-se a ideia de que poder e riqueza estão do lado da vontade de Deus.
IHU On-Line – Lutero propõe um outro tipo de humanismo cristão?
Franco Cardini – O humanismo cristão de Lutero se baseia no de Lorenzo Valla: exegese filosófica da Escritura como possibilidade e capacidade de entender o seu autêntico valor, portanto, estudo filológico como início da salvação espiritual.
IHU On-Line – Quais foram os limites do protestantismo luterano?
Franco Cardini – Essencialmente, o apoio por parte das aristocracias alemãs, depois a subordinação da Igreja reformada a um poder temporal que encontrava na rebelião contra a Igreja e na apropriação dos seus poderes e das suas riquezas a fonte das suas novas prerrogativas.
IHU On-Line – De que forma o movimento de Lutero pode inspirar outros movimentos no nosso tempo?
Franco Cardini – A rejeição do princípio de autoridade eclesiástica e da relativa disciplina, portanto, a “democratização” da vida das comunidades cristãs é fonte contínua de nascimento de movimentos autorreferenciais.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz da aproximação entre católicos e luteranos? Quais desafios ainda precisam ser superados?
Franco Cardini – Problemas como o celibato do clero não obstaculizam a reaproximação; são mais pesados os problemas relacionados à exclusividade do exercício ministerial por parte das pessoas de sexo masculino. A questão do primado de Pedro e da sua aceitação poderia ser superada através do reconhecimento de um primado no plano da auctoritas e de uma condução por parte do corpo episcopal da Igreja (“conciliarismo”) sobre o da potestas. O culto à Virgem e aos santos poderia ser aceito com base nos costumes eclesiais.
IHU On-Line – O senhor é um estudioso das cruzadas medievais. Que relações podemos estabelecer entre essas guerras e os conflitos entre muçulmanos e cristãos no nosso tempo?
Franco Cardini – Nenhuma, exceto o uso distorcido que foi feito por parte de historiadores improvisados e de publicistas ignorantes e desonestos para se servir do passado para estabelecer uma analogia com os do presente que têm uma origem totalmente diferente. O mundo muçulmano não tem nenhuma verdadeira memória das cruzadas (no árabe clássico, não havia sequer uma palavra para designá-las). O ressentimento, no máximo, diz respeito ao período colonial e, sobretudo, às décadas da hegemonia e da exploração desde o fim da Primeira Guerra Mundial até hoje.
IHU On-Line – O que a aproximação entre católicos e luteranos pode significar ao diálogo inter-religioso? E como pensar em estabelecer esse diálogo para além do cristianismo?
Franco Cardini – Tendo claro que as religiões correspondem ao Absoluto, e, sobre o Absoluto, não se pode dialogar. Mas os seres humanos de diferentes religiões dialogam: e dialogam com base em problemas éticos, econômicos e sociais comuns. A partir desse ponto de vista, a colaboração entre religiões diferentes é fácil e desejável.
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O encontro entre Reforma e o surgimento da Modernidade. Entrevista especial com Franco Cardini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU