20 Fevereiro 2024
"Todas esses incríveis avanços científicos, essas fantásticas redes neurais e esses programas de inteligência artificial inimagináveis, para conseguir o quê? Para criar um mundo em que, enquanto a privatização e o capital de risco esvaziam nosso ambiente de toda a riqueza física, o capital na nuvem se dedica a esvaziar nossos cérebros", escreve Yanis Varoufakis, economista, blogueiro e político grego membro do partido SYRIZA, ex-ministro das finanças do governo Tsipras no primeiro semestre de 2015, em artigo publicado por El País, 11-02-2024.
Yanis Varoufakis (Falero, Grécia, 1961) é economista, ensaísta, ativista e político. Foi ministro das Finanças na Grécia e é cofundador, junto com Bernie Sanders, da Internacional Progressista (IP). Este é um texto escrito por ele para Ideas por ocasião do lançamento de seu último livro, intitulado Tecnofeudalismo: o sucessor silencioso do capitalismo" (editora Deusto), que publicado em 14 de fevereiro.
Um novo capital mutante matou e substituiu o capitalismo: o capital na nuvem. Não fabrica coisas, mas é composto por dispositivos concebidos para modificar nossos comportamentos. E está se saindo muito bem.
Olhemos para onde olharmos, estamos testemunhando o triunfo do capital. Nos armazéns, fábricas, escritórios, universidades, hospitais públicos, meios de comunicação, até mesmo no espaço, mas também no microcosmo das sementes patenteadas. Como então me atrevo a afirmar que o capitalismo foi morto? Quem o matou? A resposta é deliciosamente irônica: o capitalismo foi morto por sua própria mão: pelo capital.
Se estou certo, o preocupante não é o que a Inteligência Artificial (IA) fará conosco no futuro, mas o que já fez: o capital tornou-se tão dominante e mudou para uma variante tão tóxica que, como um vírus estúpido, acabou por matar o seu hospedeiro, o capitalismo, para substituí-lo por algo muito pior.
O capital na nuvem, é claro, não vive realmente na nuvem, mas sim na Terra; reside em equipamentos conectados em rede, fazendas de servidores, torres de telefonia móvel, programas, algoritmos baseados em inteligência artificial e no fundo dos nossos oceanos, onde se estendem inúmeros quilômetros de cabos de fibra óptica.
Ao contrário dos meios de produção do capital tradicional, como motores a vapor ou robôs industriais modernos, que são meios fabricados, o capital na nuvem não fabrica coisas, mas é composto por dispositivos concebidos para modificar o comportamento humano. Isso é o que são a Alexa da Amazon ou o Assistente do Google: um meio de modificação do comportamento construído precisamente para isso. É uma máquina, uma peça do capital, que treinamos para que nos treine para que a treinemos para que ela decida o que queremos. E, uma vez decidido o que queremos, a mesma máquina nos vende diretamente, sem passar pelos mercados.
Além disso, essa mesma máquina consegue fazer com que sustentemos a enorme rede de modificação do comportamento à qual pertence com nosso próprio esforço, de forma voluntária e gratuita. Quando publicamos avaliações, avaliamos produtos ou postamos vídeos, diatribes e fotos na rede, estamos ajudando a reproduzir o capital na nuvem sem receber um centavo pelo nosso trabalho. A máquina, em última instância, nos transformou em servos da nuvem. Enquanto isso, nas fábricas e armazéns, os mesmos algoritmos que modificam nosso comportamento e nos vendem produtos são usados - normalmente, através de dispositivos digitais no pulso do trabalhador - para fazê-los trabalhar mais rápido, direcioná-los e vigiá-los minuto a minuto.
Impressiona ver como o capital na nuvem consegue desempenhar cinco funções que antes estavam fora do alcance do capital tradicional. Ele captura nossa atenção. Fabrica nossos desejos. Nos vende diretamente, sem passar pelos mercados tradicionais, aquilo que nos fez desejar. Estimula o trabalho proletário nos locais de trabalho. E cria uma enorme mão de obra gratuita (os servos da nuvem).
Alguém se surpreende que os proprietários deste capital na nuvem - chamemo-los de nuvenlistas - tenham um poder até agora inimaginável para obter uma enorme mais-valia dos proletários, um volume incalculável de trabalho não remunerado de quase todo o mundo e, dos capitalistas vassalos, rendimentos da nuvem inconcebíveis? Como eles não seriam muito mais poderosos do que jamais poderiam ter sido Henry Ford ou Rupert Murdoch?
"Espere um momento", dirão vocês. "Em que Jeff Bezos difere de Henry Ford? Não são todos monopolistas?" Não. A Amazon.com não é uma empresa capitalista monopolista. No momento em que entramos no site Amazon.com, saímos do capitalismo. É verdade que é um local cheio de compradores e vendedores, então é uma enorme plataforma comercial, mas não é um mercado. O dono de tudo é um homem chamado Jeff, que é muito mais do que um monopolista.
Jeff não possui as fábricas onde são produzidos os artigos que os capitalistas tradicionais não têm outra opção senão vender em sua plataforma. O que ele possui é o algoritmo que decide quais produtos vemos, o mesmo algoritmo que treinamos para que nos conheça perfeitamente e nos associe a um vendedor - que também conhece perfeitamente - de forma que cada associação tenha as maiores chances de permitir que Jeff extraia a maior margem possível do vendedor por cada coisa que é comprada: até 40% do que pagamos.
A mente se revolta diante de uma exploração de tal dimensão e tão radicalmente nova. O mesmo algoritmo que ajudamos a treinar em tempo real para nos conhecer de cima a baixo modifica nossas preferências e administra a seleção e entrega dos produtos que vão satisfazer essas preferências. Se duas pessoas digitarem "bicicletas elétricas" na amazon.com, receberão recomendações totalmente diferentes. É como se, em um mercado ou shopping center tradicional, as duas pessoas estivessem lado a lado, olhando na mesma direção, mas vendo coisas diferentes com base no que o algoritmo de Jeff quer que cada uma veja.
Todos nós que entramos no Amazon.com navegamos em um isolamento construído pelo algoritmo, como se estivéssemos em um panóptico no qual não podemos nos ver uns aos outros, mas apenas o algoritmo que vê tudo ou, para ser mais preciso, o que o algoritmo nos permite ver para obter o máximo dividendo da nuvem, a versão atual da renda que os senhores feudais cobravam por suas terras de seus vassalos e camponeses.
Isso não é capitalismo. Senhoras e senhores, bem-vindos ao tecnofeudalismo.
O capitalismo, não nos esqueçamos, tinha dois pilares: os mercados e os lucros. Naturalmente, os mercados e os lucros continuam onipresentes. Mas o capital na nuvem os deslocou do centro de nosso sistema socioeconômico, os empurrou para as margens e os substituiu.
Os mercados, o meio no qual o capitalismo se desenvolve, foram substituídos por feudos na nuvem, plataformas de comércio digital como Amazon.com ou Alibaba que, como vimos, parecem mercados, mas não o são.
E os lucros, que são o combustível do capitalismo? Bem, foram substituídos por suas antecessoras feudais: as rendas. Especificamente, as rendas da nuvem, uma nova forma de aluguel que deve ser paga pelo acesso a esses feudos ou plataformas digitais.
Como surgiu o capital na nuvem? Ele nasceu no fim dos anos noventa, quando a internet original, que era um bem comum - funcionava como uma zona livre de capitalismo - aquele internet 1.0, por assim dizer, caiu nas mãos das grandes empresas tecnológicas que estavam surgindo, que a privatizaram.
Quem pagou os trilhões de dólares que custou para fabricar e acumular o capital da nuvem tão rapidamente nas mãos de alguns poucos nuvenlistas? O surpreendente é que foram, principalmente, os bancos centrais dos países do G-7. Como isso é possível? Bem, por acidente, ou, para ser mais preciso, por causa da crise.
Após o colapso do setor financeiro em 2008, os banqueiros centrais imprimiram nada menos que 35 trilhões de dólares para resgatar os bancos enquanto nossos governos impunham duras medidas de austeridade ao povo. Os capitalistas foram astutos o suficiente para prever que as pessoas não teriam um centavo e não poderiam comprar seus produtos. Então, em vez de investir, levaram o dinheiro do banco central para a Bolsa de Valores e para os mercados de títulos, onde compraram ações, títulos e, de passagem, iates, arte, bitcoins, NFTs e qualquer "ativo" que encontrassem.
Os únicos capitalistas que realmente investiram em capital foram os proprietários das grandes empresas de tecnologia. Por exemplo, nove em cada dez dólares investidos na criação do Facebook vieram desse dinheiro dos bancos centrais. Foi assim que o capital na nuvem foi financiado e como os nuvenlistas se tornaram nossa nova classe dirigente.
Como resultado, o verdadeiro poder hoje não está nas mãos dos donos de maquinário, edifícios, ferrovias, companhias telefônicas ou robôs industriais. Esses capitalistas terrestres ultrapassados continuam a extrair mais-valia do trabalho assalariado, mas não estão mais no comando. Eles se tornaram vassalos dos proprietários do capital na nuvem, dos nuvenlistas. Quanto aos outros, voltamos à nossa antiga condição de servos e contribuímos para a riqueza e o poder da nova classe dominante com nosso trabalho não remunerado, que se soma ao trabalho assalariado que fazemos quando temos a oportunidade.
Ainda não estão convencidos? Sim, é difícil abandonar a palavra "capitalismo". Os liberais não são os únicos para quem ela é como água para os peixes. Os socialistas também precisam sentir que nosso propósito na vida é derrubar o capitalismo. É difícil aceitar que o capital nos superou e o substituiu por algo pior. Na verdade, meus amigos de esquerda são os que mais tentam me dissuadir e me convencer de que, sim, talvez o capital na nuvem seja importante, mas "ainda é capitalismo, cara".
O site da Amazon está cheia de compradores e vendedores, mas não é um mercado, o dono de tudo é Jeff Bezos.
Vamos chamá-lo de capitalismo rentista ou capitalismo monopolista, sugerem eles. Mas não é suficiente. O aluguel da nuvem não é como o aluguel do solo, porque exige um enorme investimento em novas tecnologias. E tampouco são rendas de um monopólio, porque Bezos e Zuckerberg não monopolizam mercados para vender o que produzem (como faziam Ford e Edison), mas sim substituíram os mercados e não estão interessados em fabricar nada (ao contrário de Ford e Edison).
Que tal capitalismo de vigilância? Também não. Os nuvenlistas não apenas usam algoritmos para lavar nossos cérebros em nome dos anunciantes em um ambiente capitalista. Não, o capital na nuvem se reproduz graças ao nosso trabalho gratuito, explora diretamente o trabalho assalariado e extrai rendas da nuvem dos capitalistas vassalos em plataformas comerciais que não são mercados. Isso não é capitalismo, senhores.
Mas e a afirmação de que o tecnofeudalismo é parasitário do setor capitalista integrado nele? É verdade. Se os capitalistas convencionais desaparecessem, os nuvenlistas também desapareceriam, incapazes de cobrar rendas da nuvem dos fabricantes. E daí? Quando o capitalismo acabou com o feudalismo, os capitalistas se tornaram parasitas dos senhores feudais, no sentido de que, sem terras privadas que produzissem alimentos, o capitalismo teria desaparecido. Agora, o setor capitalista tradicional também alimenta o tecnofeudalismo, mas os que dominam são o capital e as rendas da nuvem.
O conceito de tecnofeudalismo demonstra que o fato de os trabalhadores do setor automobilístico e os enfermeiros se organizarem, embora ainda seja essencial, é insuficiente. Ele esclarece o custo de mobilização contra o cartel dos combustíveis fósseis quando nossos meios de comunicação funcionam graças a um capital na nuvem pronto para envenenar a opinião pública. Explica por que a transição para carros elétricos causou a desindustrialização da Alemanha, à medida que os lucros da engenharia mecânica de precisão são substituídos pelos dividendos que os proprietários do capital na nuvem obtêm ao observar as rotas e os hábitos dos motoristas. De repente, faz muito mais sentido a decisão de Elon Musk de comprar o Twitter, como interface entre suas ações de capital mecânico na Tesla e SpaceX e o capital na nuvem. A nova guerra fria entre Estados Unidos e China, especialmente desde o início da guerra na Ucrânia, é explicada como a repercussão de um confronto fundamental entre dois tecnofeudalismos com rendas da nuvem, um em dólares e outro em yuanes.
Não é incrível? Todas essas incríveis avanços científicos, essas fantásticas redes neurais e esses programas de inteligência artificial inimagináveis, para conseguir o quê? Para criar um mundo em que, enquanto a privatização e o capital de risco esvaziam nosso ambiente de toda a riqueza física, o capital na nuvem se dedica a esvaziar nossos cérebros. Para que possamos ser donos individuais de nossas mentes, devemos ser donos coletivos do capital na nuvem. Quando recuperarmos nossas mentes, poderemos trabalhar todos juntos para encontrar maneiras de criar um novo capital comum na nuvem. Será extremamente difícil, mas é a única maneira de fazer com que nossos artefatos baseados na nuvem deixem de ser um meio fabricado para modificar o comportamento e se tornem um meio para a colaboração e a emancipação humanas.
Servos das nuvens, proletários das nuvens e vassalos das nuvens do mundo, unam-se! Não temos nada a perder, exceto nossas correntes mentais.
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Somos humildes servos dos senhores da nuvem: bem-vindos ao tecnofeudalismo. Artigo de Yanis Varoufakis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU