19 Dezembro 2023
Emad Abu Kishk é o presidente da Universidade Al-Quds da Palestina e é considerado um dos mais ouvidos conselheiros do presidente do Estado da Palestina, Mahmud Abbas. Jurista, professor de doutrinas políticas na mesma universidade, há quase 10 anos lidera a mais conhecida realidade acadêmica da Palestina e ocupa diversos cargos públicos em instituições estatais palestinas, como a Comissão Anticorrupção, a Academia Nacional de Administração Pública e o Waqf (a instituição que governa a Esplanada das mesquitas de Al-Aqsa e os locais sagrados islâmicos de Jerusalém). Tivemos um encontro com ele na reitoria da Universidade Al-Quds.
“Formação e educação são um passo central na busca da paz. É por isso que estou muito satisfeito com os grandes progressos que fizemos com a universidade que dirijo. Temos a melhor faculdade de medicina da Palestina. Nossa universidade está alcançando metas que não imaginávamos. Em algumas áreas, a preparação dos nossos estudantes excede até mesmo os padrões daqueles que estudam em universidades israelenses, bem como dos estudantes que se formaram em universidades ocidentais. Isso à luz das óbvias dificuldades logísticas que os nossos estudantes palestinos são obrigados a enfrentar devido à ocupação israelense. Por exemplo, também abrimos uma sede na cidade velha de Jerusalém para ir ao encontro dos estudantes que têm dificuldade em transitar pelos postos de controle israelenses."
De fato, a sede principal da universidade ficaria a apenas 5 minutos de carro da Cidade Velha, logo depois do Monte das Oliveiras, mas devido ao muro de separação demoramos mais de meia hora para chegar lá, passando por um posto de controle.
Estou firmemente convencido - continua Abu Kishk - de que o processo que conduzirá à paz, através da plena independência do povo palestino, será alcançado primeiramente pela formação de uma classe dirigente em todos os campos da vida civil, que resulte adequada às enormes tarefas de desenvolvimento econômico e social que nos aguardam".
A entrevista é de Roberto Cetera, publicada L'Osservatore Romano, 15-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas primeiro precisamos chegar à paz. Viemos para conversar, Presidente, sobre a grave crise atual que se iniciou em 7 de outubro. Como e quando você pensa que possa acabar?
Sim, vai acabar. Não sei quando, mas vai acabar. Mesmo que se deixe mais uma vez sem solução o principal problema, ou seja, como nós e os israelenses poderemos finalmente viver em paz juntos. Era o objetivo que Rabin buscava, ele realmente acreditava na possibilidade, ou melhor, na necessidade, de podermos viver juntos em paz. E nós acolhemos e compartilhamos aquelas intenções. Mas quando Yitzakh Rabin foi morto em 1995, o processo de paz foi definitivamente interrompido. Rabin acreditava genuinamente que israelenses e palestinos poderiam viver juntos e em paz.
Depois Ehud Olmert tentou novamente.
Sim. Deve-se dar crédito a Olmert por ter reproposto o problema palestino à agenda política israelense. Não conheço os detalhes sobre o motivo pelo qual a proposta de Olmert depois não foi adiante. Contudo, posso dizer que aquela proposta tinha surgido numa fase já diferente: a sociedade israelense desde 1996 já tinha mudado muito, indo cada vez mais progressivamente para a extrema direita. Os governos que se sucederam desde então recusaram toda forma de negociação, aliás, agiram para remover da consciência coletiva dos israelenses a existência de um problema palestino. Alguns exemplos estão aí para todos verem: o homem que ameaçou Rabin de morte apenas duas semanas antes de ser morto é hoje o Ministro da Segurança Nacional de Israel. O Ministro Bezalel Smotrich é da mesma orientação de Itamar Ben-Gvir. Ambos inestimáveis para garantir uma maioria parlamentar para Benjamin Netanyahu.
Mas, além dos perfis políticos que mencionou, por que afirma que toda a sociedade israelense mudou?
Porque cresceu, com a imigração mais recente, uma orientação religiosa de tipo messiânico e, com ela, a influência dos judeus ortodoxos e dos nacionalistas religiosos. Especialmente entre os agora cerca de 700 mil colonos que ocupam abusivamente as terras palestinas e invocam um “Israel do rio ao mar”. Não que essa orientação não existisse antes, mas ficava confinada ao campo religioso justamente, não conhecia os mecanismos da política e permanecia estranha a ela. A política dos assentamentos foi o que mudou o paradigma da sociedade israelense. O antigo establishment político Ashkenazi, de cultura europeia, em sua maioria próximo ao partido trabalhista, foi totalmente marginalizado e suplantado por uma nova leva que faz do extremismo a sua bandeira.
Mas a sociedade palestina também mudou desde 1996. Uma década mais tarde, o Hamas afirmou-se como a força política de maioria relativa na Palestina.
Sim. Até então, prevalecia na sociedade palestina uma esperança ligada à ação política de Abu Ammar (Yasser Arafat, ndr), visando a criação de dois estados. A maioria dos palestinos cultivava essa esperança para o seu futuro e o dos seus filhos. Poderíamos dizer que a sociedade palestina também mudou a partir de 2000, ou seja, quatro anos depois. Eu diria em relação a dois fatores. O primeiro é, sem dúvida, a desilusão que se seguiu ao assassinato de Rabin. O segundo é dado pela percepção do fracasso da implementação dos acordos de Oslo, que acabou acontecendo sob o olhar distraído dos EUA, da UE e da comunidade internacional ocidental. Essa percepção levou à explosão da segunda Intifada que fechou definitivamente as possibilidades de diálogo.
Você não acredita que Arafat cometeu um erro ao apoiar a segunda Intifada?
Sim. Pessoalmente acredito que foi um erro. Até porque levou à construção do muro de separação. O preço pago pelo povo palestino foi muito elevado depois disso. Os acontecimentos daqueles anos foram marcados pelo grave fracasso para ambas as partes. O fracasso da implementação de Oslo foi uma derrota para ambos, embora ainda hoje, para alguns, aquele fracasso seja algo a aplaudir.
Você acha que essa situação seja realmente irrecuperável? Afinal, depois da guerra do Yom Kippur, o Egito foi o primeiro país árabe a selar a paz com Israel; depois da primeira Intifada houve os acordos de Oslo. Você não acredita que esta terrível crise atual, superada a fase da raiva e da vingança, possa abrir as portas para uma nova consciência sobre a coexistência dos dois povos?
Alguns pensam assim. Eu sou um pouco cético. Acredito que será necessária uma nova geração de mulheres e homens israelenses e palestinos que tenham uma visão do futuro. Esta crise é certamente a mais grave, mas a cada 4 ou 5 anos temos de registar crises militares que não foram acompanhadas de nenhuma iniciativa de retomada das negociações. O que mais falta hoje é a capacidade de visão. E essa falta é o resultado de uma ausência de racionalidade, de cedência às emoções, algo que, se é compreensível quando se refere ao povo, é imperdoável para os políticos.
Desse ponto de vista, não acredita que a liderança palestina demonstrou uma acentuada fraqueza nos últimos anos?
Certamente. E por vários motivos. Principalmente, a recusa a qualquer negociação de paz por parte dos israelenses jogou a Autoridade Nacional Palestina num estado de resistência que afastou a população de uma classe política que parecia incapaz de inverter o estado de vida desesperador imposto pelos ocupantes na Palestina. A sociedade palestina sofre hoje de uma aviltante solidão, tanto no que diz respeito às suas próprias instituições como em relação à comunidade internacional.
Na gestão desta crise, parece que a Autoridade Palestina foi deixada à margem. De um modo mais geral, muitos observadores destacaram que nos últimos anos Israel tenha de fato sustentado um crescimento do Hamas em detrimento da Autoridade. Você concorda?
Netanyahu tem uma queda por posições extremas. Em ambos os campos. Na presunção de que ele possa controlá-las e usá-las. Tanto no seu campo como com o Hamas, parece-me que as coisas seguiram um rumo bastante diferentes. Veja bem, a polarização induzida pelas políticas de Netanyahu também é preocupante pela dinâmica que abriu dentro de Israel. A “reforma judiciária”, que tem o sabor de uma revanche contra a magistratura independente, prejudica de forma séria a democracia israelense. Bem como a “lei básica” de 2018 – também de nível constitucional – na qual Israel se identifica como o Estado dos judeus. Com todo o respeito por “Israel, único Estado democrático no Médio Oriente”, aquela lei configura o país como uma autocracia teocrática. Uma passagem muito delicada e perigosa para toda a região.
Presidente, mas também na oposição a Netanyahu, mesmo de posições mais moderadas, ninguém parece mais falar em “Dois povos em dois Estados”.
Isso é o que eu lhe dizia antes. A sociedade israelense mudou. Não vemos no horizonte políticos que tenham uma visão de diálogo e um horizonte de paz.
Mas a Palestina também precisa de uma nova liderança?
Certamente. Mas temos que lembrar que a Palestina está sob um regime de ocupação. É Netanyahu quem tem o controle da situação. Sem uma política israelense diferente, qualquer desejo de diálogo por parte do lado palestino encontrará inevitavelmente um muro de borracha. As iniciativas do campo palestino só podem ser de rechace à política israelense. Se ela não mudar, nada muda. Objetivamente, acredito que a liderança palestina se encontra hoje na situação mais difícil dos últimos 30 anos. A esperança de uma mudança na política reduziu-se aos mínimos históricos. Por Israel, mas também por uma menor atenção da comunidade internacional ao destino do povo palestino, e também pela ambivalência dos chamados “Acordos de Abraão”.
Quem governará Gaza depois do fim da guerra?
Não creio que os israelenses tenham qualquer interesse em retornar à situação pré-2005, penso que seria necessária uma fase inicial de interposição de uma força neutra e depois o território seria governado diretamente pelos palestinos. O requisito essencial é que no governo esteja alguém que não pense nos seus próprios interesses, mas apenas nos interesses de um povo que sofreu e está sofrendo enormemente.
Você tem um papel muito mais importante na Palestina do que de um mero Reitor de Universidade.
Olhe, eu realmente acredito que jogaremos o nosso futuro formando uma nova classe dirigente que saiba construir a paz e o desenvolvimento econômico e social do nosso país. Desse ponto de vista, a Universidade Al-Quds é um posto avançado formidável. É desses jovens, os meus jovens, que finalmente nascerá o Estado livre e independente da Palestina.
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Os jovens construirão a paz e a Palestina. Entrevista com Emad Abu Kishk - Instituto Humanitas Unisinos - IHU