A Usina de Energia Solar Noor Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, é a maior usina de energia solar do mundo. Projetos como o Desertec ligam o Norte de África e a Península Arábica à Europa numa enorme rede energética
“A crise climática e a necessidade de uma transição ecológica oferecem uma oportunidade para reformular as nossas políticas. Teremos que romper com os projetos coloniais e neoliberais já implementados. A transição justa deve ser radicalmente democrática, envolvendo as populações mais afetadas e procurando satisfazer as necessidades de todos. Trata-se de construir um futuro em que todos tenham energia suficiente e um ambiente limpo e seguro, um futuro que responda às reivindicações revolucionárias das revoltas africanas e árabes: soberania popular, pão, liberdade e justiça social”.
A reflexão é de Hamsa Hamouchene, em artigo publicado por Tribune Reporterre, 13-12-2023. A tradução é do Cepat.
Hamza Hamouchene é coautor de Face au colonialisme vert. Transition énergétique et justice climatique en Afrique du Nord (Frente ao colonialismo verde. Transição energética e justiça climática no Norte da África), publicado em outubro de 2023.
Com a COP28 que está acontecendo neste momento em Dubai, esta é a quinta vez que o mundo árabe acolhe negociações climáticas desde a sua criação em 1995.
Em 2022, a COP27 em Sharm el-Sheikh resultou num acordo sobre o pagamento das perdas e danos, que responsabilizou os países ricos pelos danos climáticos causados nos países do Sul. Mas a sua falta de clareza em relação aos mecanismos de financiamento vinculantes corre o risco de sofrer o mesmo destino que a promessa frustrada (formulada pela primeira vez em 2009, durante a COP15 em Copenhagen) de conceder “100 bilhões de dólares de financiamento para o clima até 2020”.
Na verdade, é exatamente este o cenário que se materializou no primeiro dia da COP28, com apenas 400 milhões de dólares em promessas de financiamento para o fundo de “perdas e danos” gerido provisoriamente pelo Banco Mundial, em comparação com a visão inicial dos países em desenvolvimento.
Para além destas promessas que, muito provavelmente, demorarão para se traduzir em ações, o que alarma os ecologistas árabes é a perpetuação das práticas de desapropriação econômica que prevaleceram desde o período colonial. Elas só podem causar o fracasso da transição energética nos países árabes, privados de debate democrático pela prossecução do colonialismo verde apoiado pelos poderes autoritários existentes.
Quer se trate do presidente populista Kaïs Saïed na Tunísia, da ditadura militar na Argélia ou de um Makhzen predatório e autoritário no Marrocos, estas elites governantes participam em graus variados da pilhagem legalizada e organizada dos seus países e populações que afirmam representar.
Na verdade, as estruturas de poder autoritárias que contribuíram ativamente para as mudanças climáticas são as mesmas que hoje moldam a resposta a esta crise. Se as instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, enfatizam hoje a necessidade de uma transição climática, a sua abordagem é a de uma transição capitalista liderada pelas multinacionais, e não pelos e para os trabalhadores e trabalhadoras.
A nomeação, pelos Emirados Árabes Unidos, do sultão al-Jaber, CEO da Abu Dhabi National Oil Company, para presidir as negociações da COP28, é também um símbolo de apoio à continuação da extração de petróleo.
O futuro defendido por estes atores é aquele em que as economias estão sujeitas ao lucro através do aumento da privatização da água, da terra, dos recursos, da energia e até do ar. Na Tunísia, por exemplo, as parcerias público-privadas (PPP) são apresentadas como a solução milagrosa para salvar a economia em dificuldades.
Está em curso uma dinâmica poderosa para privatizar o setor das energias renováveis e orientá-lo para a exportação. A lei tunisina permite inclusive a requisição de terras agrícolas para projetos ligados às energias renováveis, embora o país sofra de uma grave dependência alimentar.
Inspirados numa narrativa ambiental colonial e orientalista, os desertos árabes são descritos por vários atores neoliberais internacionais como uma terra árida e vazia, o que faz dela um Eldorado que pode fornecer energia barata à Europa. As práticas extrativistas encontram um novo impulso nas transições para as energias renováveis na forma de um “colonialismo verde” ou de um “neocolonialismo verde”.
Estas dinâmicas são evidentes em projetos renováveis em territórios ocupados como a Palestina, as Colinas de Golã e o Saara Ocidental, onde o desenvolvimento ocorre à custa dos povos colonizados privados do seu direito à autodeterminação.
O complexo solar Noor Ouarzazate, no Marrocos. ESA/Copernicus Sentinel-2A/ C BY-SA 3.0 IGO Deed/Wikimedia Commons
Os três parques eólicos desenvolvidos pelo Marrocos no Saara Ocidental são da Nareva, a empresa de energia eólica que faz parte da holding da família real marroquina. Na Palestina ocupada a história não é tão diferente, embora seja mais brutal e violenta. A narrativa sionista descreve a Palestina antes de 1948 como um deserto que se tornou um oásis florido após a criação do Estado de Israel.
Tel Aviv esconde os seus crimes de guerra contra o povo palestino, fingindo ser um país verde e avançado em comparação com os seus vizinhos. Esta posição de dominação colonial da Palestina foi reforçada pela assinatura dos Acordos de Abraão com os Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão em 2020, que apresentam diversas parcerias nas áreas das energias renováveis e da água.
A guerra na Ucrânia e as tentativas da União Europeia (UE) para reduzir a sua dependência do gás russo mostram como a segurança energética da União Europeia vem em primeiro lugar. Com o acordo argelino-italiano para aumentar o fluxo de gás argelino em 9 bilhões de metros cúbicos de gás entre 2023-2024, a menção a qualquer transição ecológica na Argélia não faz sentido, dado o crescente entusiasmo pelo gás e pelo extrativismo, juntamente com um retrocesso na transição energética.
Os esforços para garantir a segurança energética da UE estendem-se também às energias renováveis em projetos como o Xlinks (no Marrocos), o TuNur (na Tunísia), o Desertec (que visa aproveitar a energia solar do Saara) e projetos de hidrogênio verde planejados para serem implementados em vários países do Norte de África.
O plano traçado pelo projeto Desertec mostra claramente a interconexão entre os interesses europeus e os potenciais recursos do Médio Oriente e do Norte da África. DESERTEC Foundation/CC BY-SA 2.5/Wikimedia Commons
Em 2017, a TuNur apresentou um pedido para a construção de uma central de energia solar de 4,5 GW no deserto da Tunísia para fornecer, através de cabos submarinos, eletricidade suficiente para abastecer 5 milhões de domicílios europeus e mais de 7 milhões de veículos elétricos. Este projeto, ainda inacabado, foi descrito abertamente como um projeto essencialmente de exportação de energia solar que liga o Saara à Europa. Sabendo que a Tunísia depende da Argélia para parte das suas necessidades energéticas (gás), é escandaloso que tais projetos se voltem para a exportação e não para a produção de energia para uso doméstico.
O mesmo vale para o Xlinks, proposto em 2021 por um ex-CEO da Tesco, em parceria com a empresa saudita ACWA Power. O projeto visa ligar o sul do Marrocos ao Reino Unido com cabos submarinos para o transporte da eletricidade. Mais uma vez, as mesmas relações iniciadas pelo extrativismo e as mesmas práticas de apropriação de terras estão sendo estabelecidas e perpetuadas, embora as populações da região não tenham autossuficiência energética e a Europa continue a fechar as suas fronteiras.
Uma transição ecológica e justa deve, ao contrário, contribuir para a transformação radical do sistema econômico global. Deve acabar com as relações coloniais que continuam escravizando e espoliando os povos do Sul Global. Sem se colocar questões tais como: quem é o dono do quê? Quem faz o quê? Quem ganha o quê? Quem ganha e quem perde? E quais são os interesses servidos?, iremos diretamente para o colonialismo verde.
A crise climática e a necessidade de uma transição ecológica oferecem uma oportunidade para reformular as nossas políticas. Teremos que romper com os projetos coloniais e neoliberais já implementados. A transição justa deve ser radicalmente democrática, envolvendo as populações mais afetadas e procurando satisfazer as necessidades de todos. Trata-se de construir um futuro em que todos tenham energia suficiente e um ambiente limpo e seguro, um futuro que responda às reivindicações revolucionárias das revoltas africanas e árabes: soberania popular, pão, liberdade e justiça social.