28 Novembro 2023
Em um mundo assolado por eventos extremos e que caminha para um aquecimento acima de 2ºC, empurrar a crise climática com a barriga se tornou uma decisão suicida.
A opinião é de Bruno Toledo Hisamoto, Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), professor de política e economia internacional, em artigo publicado por ClimaInfo, 27-11-2023.
11 de novembro de 2013. Então representante das Filipinas na COP19, realizada na fria Varsóvia (Polônia), o negociador Yeb Saño causou surpresa ao anunciar uma greve de fome em plena conferência. O motivo? Forçar os demais governos a finalmente discutirem algum instrumento multilateral para lidar com as perdas e danos decorrentes da mudança do clima e da intensificação de eventos climáticos extremos.
O contexto explica a atitude radical e corajosa de Saño. Enquanto negociadores de quase 200 países andavam confortáveis pelo Estádio Nacional de Varsóvia, sede da COP19, milhares de filipinos ainda lutavam pela vida depois da passagem do tufão Haiyan. Uma das tempestades mais poderosas a se formar no noroeste do Pacífico, Haiyan atingiu em cheio as Filipinas com ventos de até 230 km/h, deixando um rastro de destruição e morte que até hoje assombra o país. Pelo menos 3,6 mil pessoas perderam suas vidas por conta do tufão, que também causou o prejuízo recorde de US$ 3,94 bilhões em valores atualizados.
“O que o meu país está sofrendo como resultado deste evento climático extremo é uma loucura. A crise climática é uma loucura. Podemos parar essa loucura bem aqui, em Varsóvia”, afirmou Saño em seu discurso na abertura da COP19. O apelo dele era simples: os países deveriam avançar com alguma resposta real em Varsóvia, especialmente no que dizia respeito ao financiamento climático e à estruturação de um mecanismo para perdas e danos.
A greve de fome foi um ato de desespero do negociador filipino, que parecia ser um dos poucos ali a entender a gravidade da situação. Mesmo com pessoas morrendo e comunidades inteiras sendo devastadas, os governos insistiam no adiamento da discussão sobre perdas e danos. A frustração foi tamanha que as organizações da sociedade civil fizeram um inédito walkout na COP19, abandonando as negociações e acusando os países de omissão em face à crise climática.
A pressão foi grande e, ao final, Saño conseguiu ao menos uma parte de seu pedido. Os governos concordaram com a criação do Mecanismo de Varsóvia para Perdas e Danos, com foco no compartilhamento de informações, experiências e ferramentas entre os países. Sem recursos financeiros, o mecanismo se limitou a servir como espaço para discussões técnicas, com margem zero para questões políticas substantivas.
Nas COPs subsequentes, o tema de perdas e danos submergiu na agenda de negociação. Em 2015, na COP21, os países em desenvolvimento e as pequenas nações insulares tentaram incluir o tópico no texto do Acordo de Paris, sem sucesso. Seis anos depois, na COP26 de Glasgow (Escócia), uma nova tentativa resultou no estabelecimento dos Diálogos de Glasgow, uma série de discussões técnicas e políticas com o objetivo de, ao final de dois anos, identificar caminhos potenciais para o financiamento da compensação a perdas e danos. Sim, uma promessa para discutir no futuro uma possível resposta – nada poderia ser mais ensaboado e inócuo.
Mas a realidade da crise climática puxou o tapete da malandragem de alguns governos. A intensificação de eventos extremos de grande porte, em especial ondas de calor e tempestades potentes, colocou a questão das perdas e danos no noticiário global. Em particular, o desastre experimentado pelo Paquistão com as chuvas históricas de agosto e setembro de 2022 mostrou como os países em desenvolvimento seguem reféns de um sistema que lhes sonega condições financeiras para se preparar a um futuro climático cada vez mais insano.
Na COP27 de Sharm el-Sheikh, no ano passado, veio a rebelião surpreendente dos países em desenvolvimento: ou os governos concordavam com a criação de um fundo específico para perdas e danos ou as negociações climáticas entrariam em colapso. Era uma aposta arriscada que poderia ter, de fato, resultado na desmoralização do processo multilateral de negociação sobre clima. Mas ela se pagou: depois de muita pressão, os países desenvolvidos concordaram com a proposta.
Uma década depois do apelo emocionante de Saño em Varsóvia, os países provavelmente aprovarão na COP28 de Dubai, que começa nesta semana, a estrutura do futuro fundo para perdas e danos. Isso mesmo: dez anos entre o “aqui e agora” na capital polonesa de 2013 e o “quem sabe” nos Emirados Árabes em 2023.
Essa digressão nos mostra como tem sido o avanço das negociações climáticas ao longo do tempo desde a primeira COP, em 1995: lento, gradual e incremental, com respostas parciais, prazos elásticos e muitos quiçás. Questões mais substanciais, como financiamento adequado para ação climática nos países mais pobres e o fim do consumo global dos combustíveis fósseis, são empurradas com a barriga até o limite da falta de limites.
O problema é que esgotamos o tempo que poderíamos ter gasto com esse tipo de incrementalismo. O próprio IPCC nos mostrou em seu mais recente relatório de síntese, divulgado em março passado, que a temperatura média da Terra já aumentou 1,1ºC em relação aos níveis pré-industriais, perigosamente perto do 1,5ºC definido pelo Acordo de Paris como limite para o aquecimento até o final do século.
Para que possamos viabilizar essa meta, precisamos reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) de forma imediata e significativa. Até 2030, o IPCC estima um corte de pelo menos 48% das emissões globais de gases de efeito estufa em relação a 2019 para que o limite de 1,5ºC siga viável. No entanto, as reduções de GEE prometidas pelos países até agora sob o Acordo de Paris permitiriam uma queda miserável de 2% das emissões ao final desta década, como mostrou análise recente da própria Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC).
Além de reduzir marginalmente as emissões, os compromissos atuais nos colocam rumo a um aquecimento que supera em duas vezes a meta de 1,5ºC. Uma análise do Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA) calculou que a implementação das reduções prometidas pelos governos até aqui limitaria o aquecimento global entre 2,5ºC e 2,9ªC em relação aos níveis pré-industriais.
As promessas insuficientes contrastam com um cenário de concentração recorde de GEE na atmosfera terrestre. Estimativas da Organização Meteorológica Mundial (OMM) indicam que, pela primeira vez, a concentração média de dióxido de carbono (CO2) atingiu cerca de 50% acima dos níveis na era pré-industrial. A Terra não experimenta um cenário como esse há 3-5 milhões de anos, quando a temperatura global era de 2ºC a 3ºC superior à atual e o nível do mar 10 a 20 metros mais alto do que hoje.
Essa situação se reflete de forma dramática no clima em que vivemos. 2023 já é virtualmente o ano mais quente já registrado pela ciência, impulsionado pelo El Niño, mas também pela mudança climática. A Terra acaba de experimentar sua sequência de 12 meses mais quentes desde a era industrial, com alta de 1,3ºC na temperatura média global, segundo a Climate Central.
Em todo o mundo, a intensificação de eventos climáticos extremos causa mortes e destruição. O Brasil foi particularmente afetado neste ano, com chuvas históricas nos Sul e Sudeste, ondas brutais de calor nos Sudeste e Centro-Oeste e uma seca impiedosa na Amazônia, que transformou rios caudalosos na bacia hidrográfica mais rica do planeta em desertos.
Na COP19, há uma década, o mundo foi confrontado com uma forte tempestade, “fora da curva”, que destruiu parte das Filipinas. Hoje, Haiyan ainda seria notícia nos jornais, mas não seria a única: o que antes era fora do comum está se tornando rotineiro, com uma procissão de desastres climáticos tirando vidas e devastando comunidades.
De lá para cá, a ciência apenas reforçou aquilo que já pregava: precisamos cortar emissões de forma urgente e significativa. O mundo se aproxima de diversos pontos de inflexão climática a partir dos quais será impossível escapar de um aquecimento perigoso e com efeitos imprevisíveis sobre o clima. Para evitar o pior, precisamos agir – e precisamos agir agora.
Perdas e danos, financiamento para ação climática nos países mais pobres e vulneráveis, compromissos mais ambiciosos de mitigação, adaptação, a adoção das fontes renováveis de energia, o fim da era da energia fóssil. Esses não são problemas do futuro, mas sim do presente. São questões que precisamos confrontar agora nesta COP28 de Dubai, da forma mais urgente e séria possível.
“Podemos parar essa loucura aqui”, disse Yeb Saño em 2013. Não paramos a loucura, a empurramos com a barriga para frente. Dez anos depois, a insanidade ainda nos governa. Mas o tempo da tergiversação ficou para trás. Não teremos mais uma década para avançar nestes pontos da agenda de negociação climática internacional: ou saímos da letargia ou nos condenamos ao futuro que passamos os últimos 30 anos tentando evitar.
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Dubai, a COP das discussões inadiáveis. Artigo de Bruno Toledo Hisamoto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU