25 Agosto 2023
Na sexta-feira, 18 de agosto, foi realizada em Camaldoli, na Itália, uma noite de reflexão sobre o tema “A crise do cristianismo no Ocidente”, da qual participou o teólogo italiano Andrea Grillo, junto com Lucia Vantini, e que pode ser vista no vídeo abaixo.
Em seu blog Come Se Non, 21-08-2023, Grillo publicou o esquema sobre o qual construiu sua fala. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Manifestou-se de outra forma (en ethèra morphé)” (Mc 16,12)
Nesta “Sala del Landino”, que eu frequento há algumas décadas já, é bom falar debaixo um teto de madeira muito sólido e poderoso e sob o olhar da “cabeça dourada” de João XXIII, que quase se assoma à janela, logo abaixo da placa que recorda que, nesta mesma sala, “diebus canicularibus” ocorriam há muitos séculos discussões acadêmicas com os melhores gênios do Humanismo e do Renascimento toscano. Em Camaldoli, respira-se uma tradição de liberdade que continua.
A reflexão desta noite parte de dois livros: um grande “canto do cisne” e uma bela “primeira obra”. “Un cattolicesimo diverso" [Um catolicismo diferente], de Ghislain Lafont, e “Dio rimane” [Deus permanece], de Debora Rienzi. Biograficamente, estão no fim de uma vida e no início de uma carreira. São dois livros surpreendentes. Porque abrem perspectivas importantes de releitura da nossa tradição cristã e católica. E respondem magistralmente à crise da qual lhes falarei. Eles fascinam como as primeiras obras e as obras últimas. Como os primeiros minuetos de Mozart ou os últimos quartetos de Beethoven, como as danças do jovem Bach ou a arte da fuga deixada inacabada.
Um terceiro livro (“Era irriconoscibile” [Era irreconhecível], de Enrico Mazza) oferece-nos uma espécie de “baixo contínuo”, como meditação sobre a identidade do Ressuscitado “de outra forma”.
1. Cristianismo em crise: não é uma novidade. Gostaria de falar, de modo particular, da crise do catolicismo, da grande oportunidade do primeiro papa “não europeu”, que nos permite entender melhor a diferença entre “crise institucional” e “crise substancial”. Porque, precisamente, Francisco, não sendo europeu, tem um “olhar de fora” que ajuda a relativizar os nossos caprichos, os nossos tiques, os nossos absolutos, que não são católicos, mas simplesmente europeus, de uma cultura que mudou e com a qual não devemos mais confundir o evangelho. Se o evangelho “permanece”, a cultura pode e deve mudar!
2. Por onde começamos? Poderíamos começar a considerar a crise a partir de muitos pontos históricos de virada: da tradução imperial romana da fé, depois da tradução carolíngia, depois de Gregório VII, da versão escolástica, da descoberta da América, obviamente também de Lutero, mas eu escolho a partir do “fim da tradição” que ocorre com as revoluções políticas e industriais entre o fim do século XVIII e o início do século XIX. Algo enorme acontece ali (na Europa e diferentemente na América do Norte), que põe à prova o pequeno mundo antigo europeu e depois mundial: muda o modo de pensar o sujeito trabalhador e o sujeito cidadão. Muda a ideia de liberdade e de autoridade. Ainda somos todos vítimas e produtos (atores e resultados) desse grande evento de tecnologia econômica e de tecnologia política. A partir dessas revoluções, nasce a reinterpretação dos sujeitos e dos objetos, tanto dos jovens quanto das mulheres.
3. Muda o “coração” da sociedade, que passa de “sociedade da honra” para “sociedade da dignidade”. Foi o filósofo católico canadense Charles Taylor quem me sugeriu uma das chaves de leitura para mim mais eficazes hoje para interpretar essa crise que vivemos há 200 anos. E é justamente a passagem da sociedade da honra à sociedade da dignidade. Trata-se de uma passagem de época, que inaugura as formas de vida às quais estamos ligados hoje em boa parte do mundo dito “avançado”, ou, melhor dizendo, na chamada “sociedade aberta” (na qual a identidade não é pré-estabelecida de modo absoluto). Poderíamos dizer assim: passa-se do princípio de “diferença” (do qual vive a honra) ao princípio de “igualdade” (do qual vive a dignidade).
4. A crise das fés e da forma católica depende em grande parte dessa nova forma de sociedade. A sociedade aberta não predetermina os destinos, as identidades, as funções, os ofícios, as vocações. Ela os confia à liberdade (sempre em busca de autoridade e no drama de um reconhecimento não mais assegurado a priori). A tentação, para todas as Igrejas e para a Igreja Católica de modo particular, é ratificar uma aliança defensiva com a sociedade da honra, para poder dizer a si mesma segundo a “tradição” (elaborada ao longo de séculos de sociedade da honra). As diferenças fundamentais, que se articulam entre si, são três: a diferença entre Deus e o ser humano, entre homem e mulher, entre clérigos e leigos. Defender essas diferenças infelizmente se identifica com a defesa do evangelho. Aqui está o erro mais grave e mais difícil de superar. Estamos convencidos, há 200 anos, de que a custódia do divino consiste em conservar a sociedade injusta.
5. Excursus: sobre o “clericalismo” e seus significados esquecidos. A identidade eclesial diante do mundo laico. O clericalismo era “a” forma de abertura ao mundo. A Igreja era “clerical” para poder instituir uma relação de “saída”. Só a partir do fim do século XVIII é que a lógica clerical se tornou progressivamente fechamento e desconfiança em relação ao mundo.
6. Uma lenta elaboração da crise. Os sinais dos tempos de 60 anos atrás: trabalhadores, mulheres, povos em uma nova leitura. A posição católica reagiu frontalmente à “sociedade aberta”. Até 1870, durante um século, compilando listas intermináveis de erros modernos. Entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, isso se transformou na “luta contra o modernismo”, cujas raízes estão no Sílabo de Pio IX e chegam até 1950. Foi preciso esperar João XXIII para encontrar, inesperadamente, uma abordagem verdadeiramente nova, até à descoberta de “sinais dos tempos”, ou seja, de elementos da história comum, marcados pela novidade da sociedade aberta, que a Igreja começa a avaliar positivamente. Nos “sinais” que a história oferece, a Igreja torna-se “discente”.
7. Três novos sinais dos tempos: gerar, cuidar, comunicar. Sessenta anos depois, poderíamos identificar outros “sinais dos tempos”, que se somam aos ainda desatendidos de 60 anos atrás. A forma moderna de “gerar”, a forma moderna de “cuidar” e a forma moderna de “comunicar” nos ensinam algo. Fazem isso saindo de uma vez por todas das tentações nostálgicas das modalidades tradicionais de gerar, cuidar e comunicar, que afetam fortemente o modo de ouvir a Palavra e de anunciar sua mensagem de fé e de liberdade. Como geramos hoje para a vida, para a fé, para a caridade? Como cuidamos do ser humano, da criação e de Deus mesmo? Como comunicamos a Palavra e sua força de amor? Esses pontos-chave solicitam aquela “reformulação do depositum fidei” que o Concílio Vaticano II chamou de “índole pastoral”.
8. Superar o antimodernismo como “destino católico”. As vestes do século XIX, que guardamos zelosamente até aos anos 1950 e que voltaram à moda fortemente a partir dos anos 1980, com o surgimento de um verdadeiro “dispositivo de bloqueio” posto em ação pelo magistério católico contra toda novidade, percebida como uma ameaça. Dois exemplos: a nostalgia da liturgia reformada pelo Concílio Vaticano II e a tentativa de “dogmatização” da reserva masculina sobre o ministério ordenado: dois fenômenos muito recentes (dos últimos 30 anos) que mostram muito bem a tentação de pensar o evangelho na “sociedade da diferença”, mesmo que já não saibamos dar argumentos críveis e plausíveis.
9. O catolicismo como “promotor de cultura” (não de museus). Reconhecer o Ressuscitado significa tornar-se corpo de Cristo, entrar na lógica da morte e da ressurreição, e assim descobrir o Senhor que é “irreconhecível” e que se apresenta “de outra forma”. O Senhor ressuscitado é senhor da história, mas não é imediatamente reconhecível, objetivável, exigível! Apresenta-se sempre “de outra forma”. Por isso, ele precisa de “outras categorias” para dizer o mesmo evento de morte e ressurreição.
Especificar o conceito de “doutrina” (a partir da “natureza da doutrina” de George Lindbeck) é uma das tarefas sistemáticas mais urgentes: dois casos, ambos ligados à dimensão sexual. A teologia do matrimônio e a teologia da ordem, que devem ser reconstruídas com base em uma nova compreensão da relação entre sexo, identidade e gênero (as conotações biológicas, pessoais e sociais estão hoje em um nível diferente de antes). A paridade matrimonial, assumida também ritualmente há menos de 50 anos, custa a ser alcançada pela paridade ministerial, que continua sendo pensada de uma forma arcaica, dilacerada e dilacerante. E daí surge uma espécie de “dependência” (tóxica) do catolicismo em relação à “sociedade da honra”. A identificação do catolicismo com o ancien régime quase ocorre na distração comum.
10. Conclusões literárias e cinematográficas e os três “Is” necessários para reagir. Gostaria de concluir com duas obras de arte muito úteis para meditar sobre a crise do cristianismo hoje. Trata-se de duas “representações” do que ocorria na Europa em 1850 e 1950, há cerca de 170 anos e há 70 anos. O romance “Hard Times”, de Charles Dickens, e o filme “Philomena”, de Stephen Frears, apresentam-nos um mundo “de outra forma”. Ou seja, na forma de uma sociedade da honra que está se transformando em uma sociedade da dignidade. Isso envolve a crise dos modelos familiares, educativos, religiosos, assistenciais, ministeriais. O que tinha sido fundado na “diferença” e na “honra” precisava ser novamente compreendido com base na “igualdade” e na “dignidade”.
Estar “fora de si” (que é também o título de um belo livro de Marcello Neri) é uma forma de dizer a “perda da identidade estática”. Quando dizemos “estava fora de si” normalmente nos expressamos de um modo que nos serve principalmente para qualificar negativamente o comportamento de uma pessoa. Para o Senhor Jesus e para a Igreja que dele deriva, ao nascer da água e do sangue que brotam de seu lado, estar “fora de si” é a figura surpreendente de uma identidade não completa, mas confiada e surpreendente. Uma Igreja “em saída” pode verdadeiramente ser ela mesma na consciência de que o Senhor está sempre “em saída”.
Por isso, a inquietação, a incompletude e a imaginação, das quais a Igreja deve se dotar para ser fiel, são o alimento essencial de toda boa teologia. A teologia deve dar conta de uma Igreja chamada pelo seu Senhor a estar “fora de si”. O Senhor se deixa ver somente “na fé” e, por isso, está sempre “de outra forma”. Esse “fundamento” implica uma transcendência a si mesma e uma transgressão de si mesma que a Igreja vê como “condição de fidelidade”.
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Uma Igreja fora de si: crises e desafios. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU