31 Julho 2023
59ª Sessão de Formação Ecumênica (Domus Pacis, Assis, 23-29 de julho de 2023). Por uma linguagem não sexista: Como falamos sobre Deus?
"Juntamente edificados, para se tornarem morada de Deus" (Efésios 2,22)
A reportagem é de Laura Caffagnini, publicada por Mosaico di Pace, 28-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por uma linguagem não sexista: Como falamos sobre Deus? É a pergunta central da mesa redonda de terça-feira na sessão da SAE em Assis, na qual cristãos e cristãs de diferentes denominações se questionam sobre como construir igrejas mais acolhedoras, capazes de acolher as diversidades e, em primeiro lugar, a diversidade de gênero.
“A pergunta sobre como falar de Deus diz respeito à nossa identidade de crentes e não só os teólogos e as teólogos" - disse na abertura a pastora batista Lidia Maggi, engajada no diálogo ecumênico e inter-religioso e integrante do grupo teológico do Secretariado de atividades ecumênicas - Sae -. Perguntamo-nos porque temos prestado atenção às vozes que surgem no contexto em que somos chamados e chamadas a viver a nossa fé. Vozes criativas que nos mostraram que outra linguagem é possível para falar de Deus, que fazemos teologia numa situação em que entre as várias crises que enfrentamos - a crise da palavra, de uma linguagem de fé que parece não mais comunicar - existe uma parte da igreja que se sente excluída por uma certa forma de falar de Deus".
A reflexão sobre a linguagem, aponta Maggi, diz respeito a todo o simbólico que a gramática e a língua colocam em cena. E diz respeito a como fazer liturgia, como testemunhar, como ser Igreja. Esse repensamento é desenvolvido em um contexto ecumênico em cuja raiz está a responsabilidade para que a igreja seja cada vez mais uma realidade inclusiva onde as diferenças sejam acolhidas e reconhecidas. A específica vocação ecumênica, acrescenta a biblista, "é justamente aquela de se questionar sobre as feridas entre e nas igrejas, e tentar facilitar processos de justiça restauradora".
Outra razão para falar de Deus em uma linguagem não sexista “é o excedente que exige uma pesquisa existencial para falar da incrível experiência que Deus foi para nós. Se estamos aqui é porque falamos que a nossa esperança é o Deus da vida, que queremos expressar com outra língua para aprender uma gramática diferente daquela do faraó. Estamos aqui porque Deus tem um presente e um futuro, uma história que busca novas linguagens para novas estações. Que mostra a capacidade de falar de Deus com todos os nossos diferentes registros. Se formos capazes, será possível aprender a praticar um idioma diferente que nos arrebatará dos vários exílios, inclusive aquele do patriarcado".
Para o presbítero ortodoxo russo, Vladimir Zelinsky, há várias décadas na Itália, também membro do grupo teológico da Sae, o problema da linguagem para falar de Deus simplesmente não existe na Ortodoxia. “Na sociedade ocidental, assim como na cristandade, muitas vezes surgiu a vontade de julgar, às vezes processar o próprio passado, inclusive a nossa linguagem religiosa. Se no passado se podem encontrar muitos pecados e até crimes, e o quanto a nossa língua tem representado o desprezo pelas mulheres e sua humilhação, antes de condenar devemos perguntar quem é o juiz que pode perdoar ou absolver. Eu acredito que o juiz poderia ser a consciência moderna que sempre se renova, que sempre se descobre de novo. O homem modifica a sua fé com base nas renovadas evidências e eventos que o mundo nos apresenta com sua transformação permanente".
Para Zelinsky é bastante difícil imaginar situações semelhantes àquela de falar de Deus em uma linguagem não-sexista em uma confissão baseada principalmente na Tradição patrística dos primeiros séculos depois de Cristo. Explica seu pensamento citando uma experiência dentro do grupo teologia da SAE no que diz respeito à discussão sobre o sacerdócio feminino. “Juntos mais ou menos chegamos à conclusão de que não há argumentos das escrituras e teológicos válidos que deveriam impedir as ordenações das mulheres. Não existem, não deveriam existir. Para os irmãos e as irmãs protestantes não existe mais o problema. Para os católicos, ao contrário, sim, muitas vezes estão na defensiva porque devem justificar sua resistência a tais ordenações. Os ortodoxos não costumam participar de tal batalha, mas assistem à distância. Se o problema não aparece, por que iriam defender o que ainda não é sentido nem mesmo como provocação? Atualmente, as mulheres ortodoxas em sua maioria não aceitariam o sacerdócio feminino. Se não há argumentos contra, também não há nenhum a favor. O único motivo fundamental é que o pensamento teológico se abriu aos direitos humanos trazidos pela sociedade moderna. Esse conceito não existe na espiritualidade ortodoxa, o homem não tem direitos diante de Deus. A resposta correta para este e outros desafios semelhantes seria o silêncio, solene, cheio de conversão”.
Para a teóloga católica Marinella Perroni, fundadora da Coordenação das Teólogas Italianas, a Sae representa “um ícone de como eu gostaria que se expressasse a única igreja cristã capaz de dialogar com as outras religiões porque finalmente aceitou a dinâmica da pluralidade de vozes cristãs dentro dela". Antes de seu discurso, apresentou algumas afirmações de Elena Loewenthal com as quais sente-se em sintonia e que definiu como “um belo cartão de ingresso para esta sessão”.
Loewenthal escreve: “Hoje tudo é mais fluido também neste mundo, o espaço da fé é cada vez mais variegado e inclinado a reconhecer, respeitar e acolher as diferenças. Uma sociedade multiforme é também multiconfessional. Mas não há diálogo inter-religioso que segure se não for estabelecido primeiro uma agenda comum sobre o feminino. Sobre como mudar um status quo atávico sem subverter tudo o resto, porque como diz o Talmude ‘não há tradição sem novidade’. Para dar voz e palavra as mulheres do universo religioso será preciso inventar algo novo, apenas indo às origens, àquelas fontes sobre as quais, e apesar das quais, a marginalização foi construída".
Segundo Perroni, a questão da linguagem sobre Deus é extremamente complexa. “O falar de ou sobre Deus sempre usou as linguagens humanas e é sempre expressão e fruto do multilinguismo. Babel está inscrita na Revelação muito mais do que os moralismos fáceis nos permitem admitir. Se nos questionarmos sobre o sexismo do nosso falar de Deus, cedemos à tendência de momento histórico em que vivemos, cedemos à linguagem civil, mas temos não só o direito como também o dever de o fazer. Quem nos pede isso é a história, os homens e as mulheres e sobretudo as gerações futuras. Porque hoje o sujeito pensante e hermenêutico da Revelação bíblica adquiriu a consciência de ser interseccional, a consciência de suas diferentes determinações entre as quais aquela da sexuação. Trata-se de uma consciência individual, mas também coletiva, com forte significado político.
Um livro de 1995 - Le donne dicono Dio. Quale Dio dicono le donne? E Dio dice le donne? - ofereceu sugestões à teóloga para desenvolver seu discurso. “Creio – ressalta Perroni – que se pode dizer que Deus tem o rosto de quem o conta. O Deus bíblico é o Deus narrado, que se entrega às linguagens, às narrativas e à história. O Deus das mulheres é um Deus diferente. A Revelação diz que Deus não existe fora do seu dar-se a conhecer, mas o seu dar-se a conhecer está dentro das linguagens dos homens e das mulheres que passaram por essa experiência. Deus é de quem fala dele ou de quem dá-lhe as palavras para dar-se a conhecer. A Bíblia é uma coleção de palavras, silêncios, pensamentos e ações de homens e mulheres que permitiram que Deus se dê a conhecer”.
Comentando a terceira parte do título – Deus fala das mulheres – a teóloga afirma que a Revelação fala de mulheres, se entrega a mulheres. No Evangelho de João, estruturado em torno de figuras femininas e das teologias que expressam, Jesus se dirige com a palavra “mulher” também à mulher surpreendida em flagrante adultério, anônima mas representativa da condição prevista para a mulher dentro de um sistema sócio-religioso específico. Ao mesmo tempo que as palavras de Jesus alcançam o coração de uma mulher vítima de uma ideologia religiosa tão feroz quanto injusta, também fecham com soberana autoridade uma disputa para a qual seus adversários queriam arrastá-lo. É difícil supor que apenas a mulher tivesse sido flagrada em flagrante adultério, observa Perroni. Assim, é evidente que no centro do interesse dos acusadores estava a pretensão de afirmar o direito de propriedade sobre as mulheres, pretensão questionada por Jesus. Não se trata de negar a gravidade de um adultério muitas vezes enraizado em precisas culpas, mas nem sempre atribuível apenas àquele que o realiza. Trata-se de pronunciar uma poderosa e eficaz palavra de misericórdia.
Particularmente nos países latinos, o mito das filhas de Eva persiste, observa a teóloga, e é causa de violência e dor, feminicídios e processos de estupro. As mulheres são imputadas permanentes e reconhecidas sempre como causa primária. Pouco importa se atraem ou repelem porque a diversidade sexual é vivida como lugar antropológico de toda provocação".
Ela conclui: “O Cristo joanino que fala ‘mulher’ ainda tem muito a ensinar às nossas igrejas e às sociedades que elas ajudaram a forjar. Sinto premente, no que diz respeito ao nosso falar de Deus com palavras, gestos e escolhas, a advertência de Jesus: “Vocês respeitam mais às tradições dos pais do que ao mandamento de Deus”. E espero que daqui a cem anos se possa advertir para não sermos mais obedientes à tradição das mães do que ao mandamento de Deus”.
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Igrejas inclusivas para novas mulheres e novos homens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU