A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 15º Domingo do Tempo Comum, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 13,1-23.
“O semeador saiu para semear” (Mt 13,3)
O ser humano é surpreendente, inesperado, imprevisível... é pulsação original, é interpelação inquietante; é existência peregrina, é identidade dinâmica...; é uma mina de significados e riquezas.
Com inesgotável potencialidade, ele re-cria a natureza e tem a possibilidade de inventar a sua própria vida. Onde há ser humano há espírito inteligente, impulso de liberdade e manifestação de tenacidade.
Tratar com o ser humano é tratar com o imponderável, o misterioso... Ele é seduzido pela liberdade que lhe apresenta horizontes novos e lhe abre mares desafiantes. Ele é “espaço à vida aberta”, “vida que se expande”. Com seu pensamento e seu sonho, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços.
Essa capacidade é o que nós chamamos transcendência, isto é, “transcende, rompe, vai para além daquilo que é dado”. Numa palavra, o ser humano é um projeto infinito; tem sentido de transcendência, projeta-se em muitas direções.
O ser humano é mais do que parece ser. Há nele algo maior que o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais criativo, mais arrojado, mais responsável... “Desejando e elegendo aquilo que mais nos conduz...” (S. Inácio).
Jesus expressa toda essa originalidade e riqueza do ser humano através da parábola do camponês que, com suas mãos abertas, espalha as “sementes” em diferentes terrenos.
A parábola começa afirmando: “Saiu o semeador a semear”. Ele faz isso com uma confiança surpreendente. Semeia de maneira abundante. A semente cai em todas as partes, inclusive ali onde parece difícil que ela possa germinar.
De fato, na semente encontra-se presente uma grande força de crescimento... A força da vida, contida no interior da semente, envelhecerá e se extinguirá se não houver quem confie nela, e arrisque a sua terra, seu tempo e seu trabalho.
Quando a semente é enterrada na terra, ela já conhece o seu caminho; ela avança passo a passo, seja durante as horas em que as circunstâncias lhe são mais favoráveis, porque é de dia e existe luz e calor em abundância, seja porque é de noite, e o ambiente para seu crescimento já não é tão propício.
Escondida ali, debaixo da terra, envolvida pelo absoluto silêncio, a semente germina e vai crescendo. O talo, a espiga e os frutos conduzem toda a vitalidade da minúscula semente até a maturidade da planta. E cada árvore vive intensamente o tempo que lhe cabe viver, o tempo suficiente para produzir frutos em abundância.
Ao terminar o relato da parábola do semeador, Jesus faz este apelo: “Quem tem ouvidos, ouça!”. Ele nos pede que prestemos muita atenção à parábola. Mas, em que deve estar focada nossa atenção: no semeador? na semente? nos diferentes terrenos?
Tradicionalmente, nós cristãos nos fixamos quase exclusivamente nos “terremos” onde cai a semente, para revisar qual é nossa atitude ao escutar o Evangelho. No entanto, é importante dirigir nossa atenção ao semeador e a seu modo de semear.
Para nós que crescemos em um contexto religioso desde a infância, a leitura literal desta parábola condicionou nossa visão da realidade em dois aspectos determinantes: o dualismo e o moralismo.
Em tal leitura aparecia a imagem do Deus semeador como um alguém separado e, portanto, distante.
Essa crença de separação, não só alimentava um dualismo religioso – Deus frente ao mundo – de nefastas consequências, mas que era a fonte de outras ideias igualmente perigosas em suas consequências: o pecado, a culpa, a alienação, o infantilismo religioso...
Com frequência, o dualismo religioso era acompanhado de moralismo. Se a semente não dava fruto numa pessoa devia-se simplesmente à sua própria maldade, já que não havia preparado adequadamente seu “terreno”. Assim se fazia presente a culpa em quem acreditava ser um terreno improdutivo ou caía-se no farisaísmo, passando a vida limitando-se somente a cumprir normas e leis.
A verdadeira “semente” é o que há de Deus em nós.
“O semeador saiu”. Para semear nos campos, na terra, é preciso sair de casa. Deus é, ao mesmo tempo, “semeador e semente”. Ele “desce”, faz um Êxodo, um deslocamento em direção à humanidade, onde encontra diferentes terrenos.
Em nossa terra interior já está semeada a presença de Deus; é como a semente enterrada que permanece fértil debaixo da terra desértica pela seca prolongada, e o olhar de Deus é como a chuva que ao cair desper-ta a vida presente na semente. Também gerará novidades em nós, convertendo-nos em vidas germinais.
Deus se derrama em todos e por todos da mesma maneira, não como produto elaborado, mas como semente, que cada deve acolher e deixar-se fecundar por ela, para poder frutificar. O decisivo é tomar consciência do divino que nos habita e viver em harmonia com essa realidade. O fruto seria uma nova maneira de nos relacionar com Deus, conosco mesmo, com os outros e com as criaturas.
A semente é o mesmo Deus-Vida germinando em cada um de nós; sua presença é sempre fecunda.
Deus habita em suas criaturas e se manifesta em todas elas como algo tão íntimo que se constitui como semente de tudo o que é. Não devemos dar a entender que nós os cristãos somos os privilegiados que temos recebido a semente (Escritura). Deus se derrama em todos e por todos da mesma maneira (a mão-aberta).
Somente aquele que se deixa semear experimenta o sabor da seiva da vida de Deus entrando por suas raízes, percorrendo seu ser inteiro, fazendo-o crescer e dando os frutos de que nosso povo precisa. Aquele que não se deixa semear vive de ilusões e fantasias que envenenam sua existência.
Entrar no fluxo da ação do Semeador divino é preciso sair de nossos espaços seguros, de nossas ideias e convicções atrofiadas, de nossos próprios esquemas fechados e abrir-nos aos diferentes terrenos.
Semear é uma tarefa nobre na vida: semear trigo, trabalho, cultura, educação, semear ética, valores, esperança, respeito, dignidade, sentido da vida...
Ao mesmo tempo que nobre, semear é uma tarefa de grande responsabilidade. Pais, mestres, escolas, universidades, meios de comunicação, igrejas, etc., todos temos a nobre e bela tarefa de semear.
Ao nos convidar a ter raízes profundas, o Evangelho de hoje está afirmando algo muito importante: nesta terra, nesta realidade social, cultural, eclesial e política, já está semeado o Reino, já está viva e ativa a presença do Deus fiel que cria futuro. Nós nos alimentamos desta Presença na medida em que nos deixamos semear nela.
Durante nossa vida somos convidados a nos deixar cultivar, a sermos arados e regados pela presença de Deus que é capaz de transformar e extrair o melhor fruto de cada um de nós. Por isso a vocação cristã é tão simples: deixar-nos fecundar por esta presença, deixar-nos fazer por ela e permitir que ela frutifique em nós.
- Sinta-se como a própria Terra que, na sua evolução, chegou ao estágio de sentimento, de compreensão, de vontade, de responsabilidade, de veneração, carregando em seu ventre a presença d’Aquele que é, ao mesmo tempo, Semeador e semente.