04 Agosto 2023
Em nome da “guerra às gangues”, presidente acossa instituições e viola direitos humanos. Sua cruzada reduziu a criminalidade, mas 1% da população está encarcerada. O “ditador mais cool do mundo”, como se define, tem 90% de aprovação.
A reportagem é de Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes, Felipe Teixeira da Silva e Henrique Mario de Souza, publicada por Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB), 03-08-2023.
Sob a justificativa de combater as facções que ameaçam a segurança da população de El Salvador, o governo inaugurou, em janeiro de 2023, o chamado Centro de Confinamento de Terrorismo, na cidade de Tecoluca, a 74km da capital San Salvador. O empreendimento fez dobrar a quantidade de vagas prisionais no país e deu origem ao maior presídio de toda América. A construção faz parte de um conjunto de medidas propostas pelo presidente em exercício, Nayib Bukele que, no último ano de seu mandato, acumula 90% de aprovação.
A mega penitenciária tem capacidade para abrigar 40 mil detentos e é destinada àqueles criminosos que ocupam “altas posições” na hierarquia das facções que operam no país. No edifício não existem pátios, áreas externas para recreação ou banho de sol e nem espaços conjugais ou familiares, situação que transgride as Regras Mínimas para o Tratamento de Detentos definidas pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 2005. Além disso, foram construídas celas escuras e sem janelas.
No último final de semana de março de 2022, um massacre acometeu o país, levando 76 pessoas à morte no intervalo de 48 horas. A organização criminosa Mara Salvatrucha (MS-13) foi apontada como a principal responsável. Ato contínuo, no domingo do mesmo final de semana, o presidente decreta estado de exceção e inicia uma caça às gangues e a quaisquer pessoas acusadas de vinculação a elas. O motivo da carnificina, no entanto, ainda não é claro, mas pode ser resultado da ruptura de um acordo não publicizado entre a administração Bukele e as facções criminosas. O propósito da repressão que se sucedeu acabaria por aumentar a popularidade do governo e de seus aliados.
Passado mais de um ano desde a instalação do estado de exceção, El Salvador se tornou um dos países com a maior taxa de encarceramento do mundo: mais de 70 mil detidos/as. O que corresponde a cerca de 1% dos habitantes. A maioria das pessoas capturadas não tiveram direito ao devido processo legal e muitas delas relataram abusos e violências físicas praticadas pelas forças armadas e pela polícia. Segundo a principal organização de defesa dos direitos humanos do país, Cristosal, desde março de 2022 pelo menos 153 pessoas morreram enquanto estavam sob custódia do Estado, quase metade destas com violência. A organização também afirma em relatório que é comum a presença de ferimentos, hematomas e outros sinais de violência física entre os detentos.
Em fevereiro de 2021 foram realizadas as eleições legislativas que podem ter tido seus resultados impactados pelas supostas negociações entre o governo e as facções criminosas do país. A vitória foi, principalmente, do partido Nuevas Ideias e de outras agremiações alinhadas ao oficialismo. O resultado gerou ampla base de apoio no Legislativo unicameral (não há Senado). Das 84 cadeiras, 60 são preenchidas por apoiadores da situação. Com isso, o presidente teve a quantidade de votos necessária para destituir cinco magistrados da Suprema Corte e, em substituição, nomear juízes que, em setembro do mesmo ano, votariam a favor de sua reeleição. A iniciativa contraria normas constitucionais do país. Segundo a Carta Magna de El Salvador, quem ocupa o cargo de presidente em período imediatamente anterior e permanece por seis meses ou mais não pode se candidatar na sequência.
Além de inúmeras medidas arbitrárias ou autoritárias, em junho deste ano Bukele ratificou a Lei Especial de Reestruturação Municipal que diminuiu em 83% a quantidade de municípios no país, passando de 262 para 44. Entre as justificativas apresentadas estão: o combate à corrupção – que, segundo o presidente e seus partidários, está enraizada nas administrações municipais -, e a redução de custos (a medida poupará, aproximadamente, US$ 250 milhões por ano). Entretanto, essa manobra poderia possibilitar ainda mais concentração de poder, visto que, a partir da nova distribuição municipal, cidades em que o partido Nuevas Ideias é menos popular serão fundidas com localidades em que o partido tem mais apoio.
O panorama antidemocrático é preocupante, especialmente quando se remete à história da região, marcada por feridas abertas pelas ditaduras do século XX. Esses fatores ainda moldam a esfera política e social atual, despertando preocupações sobre a estabilidade democrática e o respeito aos direitos humanos.
No início deste ano, comemorou-se o aniversário de 31 anos da assinatura dos Acordos de Paz que puseram fim à verdadeira guerra civil que assombrou El Salvador no século passado. Durante esse período, o país sofreu com ditaduras civis-militares e intervenções norte-americanas, violência às populações originárias e a camponeses e trabalhadores. Muitas organizações populares viveram na ilegalidade por décadas. Superada essa fase, o país manteve o partido ARENA (Aliança Republicana Nacionalista) na presidência por vinte anos (entre 1989-2009) e, em seguida, o FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) por outros dez (entre 2009-19) – do qual o atual presidente fez parte. Nayib Bukele, diferentemente dos dirigentes anteriores, classificou as negociações de 1992 como “farsa” e foi o primeiro presidente eleito após o fim dos conflitos que se recusou a comemorar o aniversário da assinatura dos Acordos de Paz.
A guerra civil que se instalou entre 1980 e 1992 levou as organizações político-militares a formarem a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional. A denominação remete a Agustín Farabundo Marti (1893-1932), dirigente comunista e iniciador da reação armada em favor dos camponeses. Criminalizadas durante décadas, as organizações se opunham à militarização e ao uso da violência pelo Estado e reivindicavam a conquista de direitos civis em El Salvador, onde o imperialismo e a concentração de terras e de renda geraram efeitos nefastos. Após um longo e violento processo de negociação, marcado por massacres e milhares de mortes, a Frente conquistou o direito de existir e de participar das disputas eleitorais.
Em diferentes períodos, El Salvador encontrou nos acordos de paz a solução para a redução da violência. Durante o governo da FMLN não foi diferente. Em 2012, o então presidente Maurício Funes, conseguiu aplicar a “Trégua entre pandillas” que tinha como proposta intermediar um “cessar-fogo” entre facções rivais. Isso fez reduzir a mortalidade da população civil e diminuiu a violência nos Centros Penais, tanto que 2013 havia se tornado o ano com o menor número de homicídios no país até então. Entretanto essa conformação foi interrompida, e 2015 se tornou o ano mais violento deste século para os salvadorenhos. Assim como outros acordos entre as facções criminosas e o Estado, este foi permeado por acusações de favorecimento do crime organizado e envolvimento em casos de corrupção. Integrantes da própria Frente, alguns ocupando cargos públicos pelo mesmo partido, usaram a crise da FMLN após 2015 para impulsionar-se eleitoralmente. Um deles era Nayib Bukele, então prefeito da capital San Salvador. Sua pregação central voltava-se contra a disseminação do crime organizado, problema que os governos da FMLN tiveram dificuldades de resolver.
Antes de obter a maioria necessária para aprovar suas políticas, Bukele adotou atitudes que já revelavam seu caráter autoritário: em fevereiro de 2020, o presidente invadiu o Congresso, acompanhado de policiais e soldados, após a casa votar contra um empréstimo de US$ 109 milhões, estratégico para implementar a política de segurança desenhada pelo governo. Após a invasão, Bukele se sentou na cadeira do presidente do Congresso e ordenou o início da sessão, utilizando como justificativa seu “direito divino”.
Nesse cenário denso e carregado de desafios, as preocupações são palpáveis. A estabilidade democrática e a garantia dos direitos humanos caminham numa corda bamba, exigindo reflexões profundas e ações incisivas para assegurar um futuro digno e próspero para todos os habitantes da região. É, então, num contexto delicado que se faz necessária uma análise criteriosa dos desafios enfrentados por El Salvador.
Os Acordos que levaram a um recuo das organizações político-militares e à desmilitarização do Estado não criaram mudanças na estrutura político-econômica institucional. A desigualdade entre os trabalhadores e os membros das oligarquias permaneceu e somou-se à intensificação do tráfico de drogas e armas na região central das Américas. Diante dessas condições, as gangues e facções criminosas se tornam uma das maiores ameaças à segurança pública, com forte impacto sobre a população.
As duas principais organizações criminosas em El Salvador são a Mara Salvatrucha (MS-13) e o Barrio 18, que também afligem Honduras e Guatemala. Originadas nos Estados Unidos na década de 1980, essas gangues se espalharam por países da América Central, encontrando terreno fértil para crescer em alguns desses países devido, entre outros fatores, à pobreza e à desigualdade social características.
A partir de fontes oficiais, estima-se que, em 2022, houve uma redução de 57% do número de assassinatos em comparação com o ano anterior. Segundo publicado no jornal La Prensa Gráfica, foram registradas 562 mortes no ano passado – acompanhando uma tendência regressiva gradual que dura sete anos, como ilustrado no infográfico a seguir. No entanto, o Observatório Universitário de Direitos Humanos (OUDH) da Universidade Centro-Americana (UCA) afirma que esse número indica subnotificação e que haveria quase cem mortes a mais. Ainda assim, os mais de três anos de governo Bukele apresentaram uma forte redução na taxa de homicídios do país.
De acordo com a Human Rights Watch (2023) as gangues de El Salvador continuam recrutando forçadamente crianças, além de abusar sexualmente, matar, sequestrar e deslocar pessoas. A entidade ainda afirma que a resposta das autoridades tem oscilado entre negociações obscuras com as gangues e políticas de segurança rígidas que levaram a violações de direitos humanos.
Sob a liderança presidencial são desatadas ações que desafiam as instituições democráticas e que se tornaram cada vez mais frequentes. O aumento da vigilância e da espionagem por parte do governo, criando um ambiente de medo e repressão que inibe a livre expressão e a liberdade de imprensa que, ao mesmo tempo, alavanca a popularidade de Bukele. A suspensão das garantias constitucionais permitiu detenções em massa, levando milhares de pessoas a serem presas sob suspeita de associação às gangues. Os relatos de abusos e violações dos direitos humanos emergiram logo em seguida, colocando em dúvida a eficácia e a legalidade das ações governamentais. O combate ao crime organizado requer uma abordagem holística, que enfrente as questões estruturais que alimentam a violência, ao mesmo tempo que respeita os princípios democráticos e os direitos fundamentais da população.
No ano seguinte à eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, outro representante da extrema direita latino-americana obteve uma importante vitória eleitoral: Nayib Bukele. O pleito de El Salvador também evidenciou o papel crucial das redes sociais nas campanhas eleitorais, algo que já havia sido observado durante a campanha de Bolsonaro. O brasileiro era um dos candidatos com menor tempo de propaganda na televisão e, ao mesmo tempo, maior engajamento nas redes.
Filho de um empresário de origem palestina, o presidente salvadorenho também foi proprietário de empresas e trabalhou em agências de relações públicas e publicidade antes de ingressar na política, em 2011, pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional. Foi prefeito em uma pequena cidade, Nuevo Cuscatian, antes de vencer as eleições municipais na capital do país, em 2015. Dois anos depois, Bukele foi expulso da Frente, por divergências, e fundou o movimento Nuevas Ideias, seu atual partido.
Bukele tem adotado como uma de suas estratégias “governar pelas mídias sociais”, e essa estratégia de comunicação tem contribuído para a sua aprovação entre os salvadorenhos e para sua popularidade nas redes: os perfis do Twitter e Instagram do presidente possuem mais de 5 milhões de seguidores, número que se torna ainda mais expressivo quando consideramos que a população estimada de El Salvador é de aproximadamente 6,3 milhões de habitantes. Além disso, um levantamento realizado pela Digitips mostra que Bukele é o líder mundial com maior número de seguidores no TikTok, à frente de figuras como Lula e Macron.
Além de promover sua agenda de segurança, o presidente salvadorenho busca legitimar suas ações autoritárias através de um posicionamento irônico em seus perfis, tendo se autodeclarado nas redes como “o ditador mais cool do mundo”. A partir dessa postura, Bukele tenta impulsionar a pauta de segurança, as mudanças na estrutura do Estado, bem como sua agenda econômica – outro ponto polêmico de sua gestão.
Em setembro de 2021, El Salvador se tornou o primeiro país do mundo a adotar uma criptomoeda como moeda oficial. O governo adquiriu 2.546 Bitcoins a um custo de aproximadamente US$108 milhões, e criou uma carteira digital – denominada “Chivo” – que já continha inicialmente US$30 em criptomoedas, de modo a incentivar o uso pela população. Entretanto, a medida não adquiriu popularidade e seu uso tem sido reduzido. Além disso, a queda nos preços do bitcoin fizeram com que os investimentos salvadorenhos, que ultrapassaram os US$108 milhões, se reduzissem para aproximadamente US$77 milhões, após o primeiro quadrimestre de 2023. Contudo, a “Lei Bitcoin” ainda é considerada como um ponto forte da gestão de Nayib Bukele, tendo em vista que a economia do país ainda é considerada estável e a postura de incentivo às criptomoedas auxilia na construção de sua imagem como um líder da “nova geração” internacionalmente.
Enquanto o posicionamento de Bukele se aproxima do de líderes como Jair Bolsonaro e Donald Trump em diversos temas, como a própria questão da criminalidade, há uma diferença clara de postura em relação a pandemia de covid-19: o presidente de El Salvador mobilizou as medidas de isolamento social em prol de sua política de segurança pública, tendo fechado as fronteiras do país e decretado quarentena nacional antes mesmo da confirmação do primeiro caso da doença no país, além de instaurar centros de contenção para deter indivíduos que violaram a quarentena ou contraíram o vírus durante viagens ao exterior. Novamente, a política de Bukele produziu resultados ambíguos: ao mesmo tempo em que El Salvador registrou números positivos em relação ao controle da pandemia, as violações de direitos humanos e detenções arbitrárias foram recorrentes nos centros de contenção.
Mas, se Bukele busca, por um lado, transmitir uma imagem “moderna e popular” através de suas pautas econômicas e atuação nas redes sociais, por outro, o conservadorismo característico da nova extrema direita se faz presente em seu governo. As mulheres salvadorenhas continuam sofrendo com o feminícidio (ocupando a terceira posição no ranking da América Latina, atrás apenas de Honduras e República Dominicana) e com uma das leis mais rígidas em relação ao aborto (inclusive em casos de abortos espontâneos ou emergências obstétricas). Pessoas LGBTQIAP+ seguem sendo vítimas de violência – com destaque para as agressões por parte da polícia e gangues. Além disso, Bukele tem implementado um autoritarismo digital, concentrando as informações em sua rede e minando a atuação da imprensa, como pode ser observado pela transferência de sede do principal jornal do país para a Costa Rica, por conta da perseguição promovida pelo governo. Em suma, há um processo de retrocesso democrático em curso no país, no qual as principais instituições estão sendo desmanteladas.
Após inúmeras manobras inconstitucionais, parece não haver desafios à reeleição do presidente em 2024, nem mesmo dentro de seu partido. Em uma eleição virtual do Nuevas Ideias realizada no início de julho, Nayib Bukele e seu vice, Félix Ulloa, não dispunham de adversários competitivos. A quantidade de votos atribuídos a eles não foi divulgada, mas foi suficiente para que os dois fossem escolhidos para compor a chapa que disputará a presidência no próximo ano. Ademais, 9 em cada 10 salvadorenhos aprovam o governo Bukele apesar de todas as suas contradições.
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El Salvador: a truculência popular de Nayib Bukele - Instituto Humanitas Unisinos - IHU