"Deixando de lado o voto, o fascismo só pode ser detido por um movimento de massas, que o confronta diretamente", escreve Pete Dolack, jornalista estadunidense. Dolack também é ativista, poeta, fotógrafo e escritor, tendo publicado, entre outras obras, It’s Not Over: Learning From the Socialist Experiment.
O artigo foi publicado no blog do autor e reproduzido por A Terra é Redonda, 19-07-2023. A tradução é de Eleutério F. S. Prado.
Isso pode acontecer aqui. “Aqui” é qualquer país onde o capitalismo comanda. Quando uma democracia formal burguesa se transforma em fascismo? Essa é uma pergunta que precisa ser respondida tendo por referência muitos lugares, certamente sem a exceção dos Estados Unidos, que já experimentou uma tentativa de autogolpe com inconfundíveis conotações fascistas.
Estamos nos referindo à tentativa de autogolpe de Donald Trump, para usar a expressão latino-americana, em janeiro de 2021. Muitas pessoas, mesmo na esquerda, riem dos acontecimentos daquele dia, apontando que o pretenso golpe não teve chance de ser bem-sucedido. Não teve chance de sucesso. Isso não significa que deva ser descartado com desdém; pelo contrário, deve ser levado em conta com a maior seriedade. O golpe da cervejaria de Hitler, em 1923, também não teve chance de sucesso, e seu movimento violento permaneceu à margem, como lunático, por vários anos. Mas sabemos como foi a história alemã depois.
Não haverá comparação fácil entre os Estados Unidos contemporâneo com a Alemanha de Weimar. Não estamos vivendo nos tempos de Weimar. Não há camisas marrons organizadas correndo loucamente pelas ruas. Não há um militar profundamente hostil à democracia e pronto para agir com base nessa hostilidade, nem um número significativo de industriais financiando tropas de assalto. A história não se repete, como tragédia ou farsa, de forma organizada e certamente ela não precisa disso. No entanto, podemos tirar uma lição da história antes de fazer um balanço das condições políticas contemporâneas.
Manifestação feminista e antifascista no evento #25nfeminista em Madri. (Foto: Reprodução | Wikimedia Commons)
Um mito a ser dissipado é que Hitler foi eleito. Ele não foi. Ele recebeu o poder do presidente alemão, Paul von Hindenburg, que o nomeou como chanceler. Infelizmente, isso era completamente legal sob a constituição de Weimar. Ademais, foi o suficiente para o maior partido da oposição, os social-democratas, segurar as suas armas. Como se sabe, eles se recusaram a liberar sua milícia e se limitaram a dar uma ordem legal, a qual foi simplesmente destruída. O outro grande partido da oposição, os comunistas, declararam que “depois de Hitler, será a nossa vez”, um sentimento público que contrastava bastante com o fato de que os seus membros estavam sendo forçados a se esconder ou a se exilarem. Menosprezam até o fato de que os nazistas recém-empossados começaram a cercar membros do partido e a destruir seus escritórios.
Os líderes sindicais humildemente apoiaram Hitler depois que ele assumiu o poder, concordando em participar do que agora seria uma celebração do primeiro de maio, sob a liderança nazista. Dois dias depois daquele primeiro de maio, os nazistas começaram a prender líderes sindicais e a banir os sindicatos existentes; os social-democratas logo teriam o mesmo destino. Hitler levou apenas três meses para varrer toda a oposição e assumir o poder ditatorial. Com toda a oposição política varrida, as perseguições aos judeus, ciganos e às comunidades LGBT começaram com resultados que o mundo nunca deveria esquecer ou minimizar.
Por que Paul von Hindenburg promoveu Hitler a chanceler? Na última eleição antes da nomeação, em janeiro de 1933, o voto nazista na verdade havia diminuído em relação à votação anterior; o voto combinado de comunistas e social-democratas foi 1,5 milhão de votos a mais do que o voto nazista, que totalizou 33%, embora o voto combinado de esquerda tenha ficado um milhão a menos do voto combinado de nazistas e do Partido Nacional, o instrumento político restante da direita tradicional.
A maior parte do apoio aos tradicionais partidos de direita da Alemanha na década de 1920 foi transferida para os nazistas, que deram um salto gigantesco de 2,6% em maio de 1928 para 18% (segundo entre 10 partidos) em setembro de 1930. Hitler foi nomeando chanceler (o equivalente ao atual primeiro-ministro), mas foi dado aos nazistas apenas dois dos 10 cargos no gabinete. Infelizmente, um desses cargos era o do Ministério do Interior que controlava a polícia, permitindo que os nazistas inundassem a polícia com seus capangas de camisa marrom. Esse ministro do Interior, Wilhelm Frick, participou do golpe da cervejaria, mas não recebeu mais punição do que uma pena leve, depois suspensa.
As histórias na Itália e em outros países que sucumbiram ao fascismo não são muito diferentes. Mussolini também recebeu o poder. Mussolini era socialista até começar a receber dinheiro dos fabricantes de armas e de outros interesses comerciais. Embora não estando agora muito à direita e até tendo negado ter um programa, ele cuidadosamente permitiu que a propaganda de extrema-direita fosse apresentada, permitindo, também, que o fascismo parecesse fazer o que se quisesse.
Mas, os seus benfeitores sabiam o que ele e eles queriam. Os fascistas recebiam subsídios regulares das associações de lojistas e da Confederação da Indústria. Os socialistas chegaram em primeiro lugar nas eleições de novembro de 1919, mas os conservadores começaram a comprar o apoio de esquadrões fascistas e a polícia permitiu que eles atacassem sem impedimentos e até lhes forneceu apoio.
A marcha de Mussolini sobre Roma não poderia ter acontecido sem que os líderes empresariais italianos houvessem financiando os esquadrões fascistas. Logo, o rei Vittorio Emmanuel o nomeou primeiro-ministro. Proibições da atividade sindical e das greves seguiram-se rapidamente. Na Espanha, um militar de mentalidade fascista derrubou o governo republicano; golpes militares levaram generais fascistas ao poder no Chile e na Argentina, na década de 1970, com o apoio de esquadrões fascistas que usavam táticas violentas. A repressão violenta dos trabalhadores e suas organizações e a redução dos salários e das condições de trabalho ocorreram em todos os casos.
Em nenhum dos casos históricos uma ascensão fascista aconteceu por meio de uma explosão repentina do nada. Houve muita violência da direita amplamente financiada por líderes empresariais e apoiada por militares e policiais. O ponto de inflexão veio antes das chegadas ao poder – não havia, e não há, nenhum ponto facilmente definível em que um rubicão vem a ser cruzado. Assim, a vigilância e a resistência constantes são sempre necessárias. Se parece fascismo e age como fascismo, então deve ser levado a sério como um movimento fascista.
A temporada das eleições presidenciais de 2024 já começou nos EUA. Não há ainda industriais e banqueiros bancando bandidos de rua e manobrando para derrubar a democracia formal. Esses titãs corporativos certamente apreciaram tudo o que a administração Trump, composta por alguns dos ideólogos mais virulentos da burguesia, fez por eles e faria por eles novamente se tivessem a chance, mas isso é diferente de apoiar um movimento fascista declarado. Dado o controle que os industriais e os banqueiros têm sobre o processo político dos EUA, dificilmente é necessário que eles derrubem um sistema que funciona tão bem para eles.
No entanto, os tempos e as condições podem mudar e o próprio fato de existir um movimento fascista – que Donald Trump atualmente lidera, mas o governador da Flórida, Ron DeSantis, deseja assumir a liderança – deve ser levado com a maior seriedade, especialmente porque é um movimento que não mostra nenhum sinal de dispersão.
Não existe um sistema parlamentar nos Estados Unidos, mas sim um sistema bipartidário que é aparentemente inexpugnável. Esse país possui um exército que, ao que tudo indica, apesar de todo o seu uso como aríete no exterior para saques corporativos, é, no entanto, um órgão estritamente constitucional, sem indícios de comprometimento com a agitação doméstica.
É verdade, mas devemos nos livrar de sobrelevar a forma em relação a função. A imagem clássica do fascismo é de soldados de assalto saqueando as ruas, suprimindo violentamente qualquer oposição. Mas, na América do Sul dos anos 1970, isso se mostrou diferente do que ocorrera na Europa dos anos 1920 e 1930. Havia gangues fascistas à solta no Chile e na Argentina, mas o fascismo foi imposto por meio de golpes militares indisfarçáveis.
O fascismo nos Estados Unidos, se isso vier a acontecer, virá em formas diferentes de todas essas, com os fundamentalistas cristãos formando uma parte fundamental da base direitista. Mas o que é crucial é que uma porcentagem significativa dos industriais e financistas desse país – a sua classe dominante capitalista – apoia a imposição de uma ditadura, fornecendo fundos e outros apoios necessários. Esta é a semelhança crucial que substitui as diferentes formas de ascensões fascistas.
Por que isso é tão crucial? Porque o fascismo é uma ditadura imposta em benefício dos grandes capitalistas industriais e financeiros. Em seu nível mais básico, o fascismo é uma ditadura estabelecida e mantida com terror em nome do grande capital. Tem uma base social, que lhe dá o apoio, assim como possui os esquadrões do terror, mas que está muito mal desencaminhada porque a ditadura fascista opera decisivamente contra os interesses de sua própria base social. Militarismo, nacionalismo extremo, criação de inimigos e bodes expiatórios e, talvez o componente mais crítico, uma propaganda raivosa que intencionalmente suscita pânico e ódio enquanto disfarça sua verdadeira natureza e intenções sob a capa de um falso populismo, estão entre os elementos necessários.
Apesar das diferenças nacionais que resultam em grandes diferenças nas aparências do fascismo, a sua natureza de classe é consistente e bem conhecida. O grande capital é invariavelmente defensor do fascismo, não importa o que a retórica de um movimento fascista contenha; ademais, ele é invariavelmente o beneficiário. Instituir uma ditadura fascista não é uma decisão fácil, mesmo para os maiores industriais e banqueiros que podem salivar com os lucros potenciais. Pois, mesmo que seja para beneficiá-los, esses grandes empresários estão renunciando parte de sua própria liberdade, pois não controlarão diretamente a ditadura; é uma ditadura para eles, não por eles.
É apenas sob certas condições que as elites empresariais recorrem ao fascismo – como se sabe, alguma forma de governo democrático, sob a qual os cidadãos “consentem” com a estrutura governante, é a forma preferida e muito mais fácil de manter. Se os trabalhadores começam a retirar o seu consentimento – começando a desafiar seriamente o status quo econômico – vem uma “crise” que pode trazer o fascismo. A incapacidade de manter ou expandir os lucros, como pode ocorrer durante um declínio acentuado no “ciclo de negócios” ou uma crise estrutural, vem a ser uma outra dessas “crises” que fomentam o fascismo.
Comício Stand Up To Racism de julho de 2018 em Londres. (Foto: Reprodução | Wikimedia Commons)
Nenhum movimento fascista pode ter sucesso sem que uma base considerável esteja convencida de que os de esquerda devem ser detidos a qualquer custo. E que a única maneira pela qual ocorre um místico retorno da extrema-direita ao passado que está pendurado à sua frente pode ser realizado sem que seja imposto pela força; as oposições, ademais, devem ser reprimidas com violência. Esta parte da equação, infelizmente, está muito presente nos Estados Unidos, como demonstra tristemente a trajetória inabalável de Donald Trump. O desejo de Donald Trump de ser um ditador fascista é óbvio – e isso deveria ser inconfundível para qualquer pessoa de esquerda; entretanto, nem sempre, infelizmente, é assim: frequentemente, ainda não se leva Donald Trump e sua base a sério ou, pior, alguns são mesmo seduzidos pelas canções de sereia de Trump.
Certa vez, participei de um respeitado programa de rádio ambiental em que se discutia os planos do governo Trump para revisar o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, no qual mostrei essa minha visão. Fui, então, rudemente interrompido e tratado da maneira pouco condescendente por outro convidado, o proeminente chefe de uma organização não-governamental de Washington. Ele pretendia me “corrigir”, alegando que os consultores comerciais de Donald Trump dizem que querem acabar com os tribunais secretos que as corporações usam para derrubar leis e regulamentos do governo.
Donald Trump estava no poder há mais de um ano e, a essa altura, a guerra total de seu governo contra os trabalhadores e seus esforços extenuantes, visando permitir que as corporações saqueassem e poluíssem sem o peso dos regulamentos, estava em pleno andamento. Além disso, o documento de política comercial do governo havia sido divulgado – esse era o assunto que se estava abordando – e não havia nada ambíguo sobre sua intenção de desmantelar os padrões trabalhistas, de segurança, saúde ou ambientais mantidos por outros países.
A retórica vagamente esquerdista de Donald Trump era apenas para exibição, uma manobra transparentemente óbvia para atrair eleitores que tinham muito boas razões para deplorar os chamados acordos de “livre comércio” e muitas outras políticas que prejudicaram os trabalhadores enquanto permitiam que os empregos fossem transferidos para outro continente. Os alemães na República de Weimar também tinham motivos de sobra para estar fartos, mas essas óbvias mentiras nazistas tornaram-se inconfundivelmente mentiras quando Hitler eliminou aquelas tropas de assalto que acreditavam na retórica esquerdista da “Noite das Facas Longas”. Mussolini também usou essas táticas.
Quatro anos de Donald Trump na Casa Branca – quatro anos de ataques totais aos trabalhadores e ao meio ambiente, trapaças incompetentes e mentiras sobre a pandemia de Covid-19, permissões para que todos os misantropos realizarem as suas fantasias antissociais mais detestáveis – não poderia ser mais claro. Donald Trump continua sendo uma personificação da ameaça do fascismo.
E quanto ao seu principal rival na indicação presidencial do Partido Republicano? De Santis – ou De Satan como já foi apelidado – claramente também tem aspirações de se tornar um ditador fascista. O governador não tem um apoio popular fanático como Donald Trump, mas parece bem mais provável que obtenha um forte apoio de industriais e financistas do que Trump, dando seu sucesso em reduzir o Legislativo da Flórida a uma repartição que passou a usar o seu carimbo. De Santis também pode estar governando por decreto, considerando como os legisladores entregam a ele o que ele deseja.
O registro aqui dispensa apresentações para quem está prestando atenção. Mas vamos “destacar” alguns de seus feitos. Ele está travando uma guerra de terra arrasada contra as comunidades LGBT, negando sua humanidade e proibindo na medida do possível até mesmo discutir os interesses dessas comunidades, impondo proibições draconianas do aborto (as mulheres sempre destituídas de direitos e reduzidas a máquinas de bebês sob o fascismo), removendo unilateralmente do cargo oficiais eleitos que ousam discordar dele, proibindo livros, encobrindo a história, usando imigrantes como adereços descartáveis a serviço do nacionalismo e do nativismo e oferecendo bônus a policiais para se mudarem para a Flórida, muitos dos quais foram acusados de atos criminosos, inclusive domésticos tais como roubo, sequestro e assassinato.
Tão cruel é o estado policial que DeSantis está tentando criar e tão hostil é a tentativa de apagar a escravidão e o racismo da história que a associação dos pretos americanos, NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) emitiu um aviso de viagem para que afro-americanos evitassem o estado.
Embora seja indiscutivelmente verdade que um partido fascista independente não vai tomar o poder nos Estados Unidos em um futuro previsível, não é verdadeiramente necessário que ele surja. Os dois principais candidatos a um dos dois partidos que se alternam no poder, os republicanos, têm aspirações a serem ditadores fascistas e há uma base considerável de republicanos prontos para isso.
Pouca ajuda do outro partido, os Democratas, está disponível, já que a oposição de “centro-esquerda” (na verdade, trata-se de uma oposição de “centro-direita” à extrema direita) é derrotada repetidamente, sua incapacidade de enfrentar a direita ou de montar qualquer oposição efetiva não é apenas o produto de estar em dívida com o dinheiro corporativo e a ideologia do “excepcionalismo americano”, mas o beco sem saída intelectual do liberalismo. (Estou usando a terminologia norte-americana aqui; os leitores do resto do mundo podem substituir “liberal” por “social-democrata”.)
O liberalismo norte-americano e a social-democracia europeia estão presos por um desejo fervoroso de estabilizar um sistema capitalista instável. Eles são prejudicados por sua crença no sistema capitalista, o que significa, hoje, uma crença na austeridade para os trabalhadores e nos subsídios para a pilhagem corporativa e financeira, não importa os belos discursos que façam.
Quando Bill Clinton, Barack Obama, Jean Chrétien, Justin Trudeau, Tony Blair, Gordon Brown, François Hollande, Gerhard Schröder, José Luís Rodríguez Zapatero e Romano Prodi caem de joelhos diante de industriais e financistas, quando cada um desses líderes implementa rapidamente a austeridade neoliberal apesar de liderar a suposta oposição de “centro-esquerda” aos partidos conservadores que defendem abertamente a dominação corporativa, há algo mais do que fraqueza pessoal em ação. E esse histórico lamentável – Bill Clinton, por exemplo, foi o “presidente republicano” mais eficaz que os EUA já tiveram. Ele deu uma abertura para que os demagogos de extrema direita passassem a ofertar cantos de sereia, os quais caem bem em certa esquerda e, assim, enganam os demais.
No entanto, posso entender facilmente por que tantos americanos, não apenas liberais, mas também de esquerda, votam nos democratas como um movimento tático, argumentando que um democrata no poder, particularmente na Casa Branca, oferece mais espaço de manobra. Embora eu pessoalmente não tenha estômago para votar nos democratas, certamente entendo essa votação tática como uma questão de sobrevivência, especialmente porque cada governo republicano é pior que o anterior.
Mas seria útil se os eleitores democratas pressionassem seus titulares de cargos para realmente tentar implementar algumas das coisas que desejam, em vez de lhes dar um passe livre. E uma estratégia diferente do usual encolhimento do Partido Democrata, o qual não deveria significar um primeiro encolhimento e, depois, mais encolhimento.
Deixando de lado o voto – e votar deveria ser a coisa menos importante que se faz numa democracia – o fascismo só pode ser detido por um movimento de massas, que o confronta diretamente. E isso significa levar a sério o perigo, em vez de rir da ignorância de Donald Trump, Jair Bolsonaro e de seus seguidores cegos. O fascismo nunca é motivo de riso, como a contagem dos corpos deixada por seu cortejo fúnebre na história deveria deixar tudo claro, muito claro.