17 Julho 2023
"Estamos atravessando uma crise civilizacional e o campo democrático poderia ser derrotado". Ao longo de uma vida centenária, Edgar Morin abraçou diversos saberes, com os volumes do Méthode, a obra enciclopédica escrita entre 1967 e 2006 pela qual ganhou o apelido "Diderot do século XX". Pensador universal, entre os maiores intelectuais franceses, teve uma existência fora do comum: o nascimento em 08-07-1921 na comunidade judaica sefardita do bairro de Ménilmontant, a perda da mãe aos dez anos, a coragem de passar para o Resistência durante a ocupação, o engajamento político no partido comunista antes de afastar-se e denunciar seus expurgos, os anos dedicados à pesquisa sociológica que o projetaram para o topo do mundo cultural.
A entrevista é de Anais Ginori, publicada por La Repubblica, 16-7-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Morin nos recebe com uma camisa de flores laranjas brilhantes em um apartamento acima da brasserie Lipp. O olhar curioso de sempre, ele está sentado trabalhando ao computador. “Estou escrevendo um artigo sobre a França e tenho um ou dois livros em preparação”, explica, intercalando uma linguagem toda particular, o "fritanhol", uma mistura de francês, italiano e espanhol.
Você completou 102 anos poucos dias atrás. Como os comemorou?
Em privacidade, tive um adorável jantar com minha esposa.
A festa nacional de 14 de julho foi acompanhada de temores de novos confrontos na periferia. O que está por trás dessa revolta?
Não é possível responder numa única frase porque é preciso considerar o contexto histórico. A França foi atravessada por uma série de crises sucessivas, entre as quais a mais recente foram os protestos contra a reforma da previdência e depois do assassinato do jovem Nahel. Aconteceram manifestações, violências excessivas, muitas vezes protagonizadas pelos black blocs. A novidade é que eram adolescentes, alguns deles de 13 anos. Eu diria que é um fenômeno ao mesmo tempo muito grave e pouco grave.
Por quê?
Houve um fator psicológico, aquele que podemos definir como uma "embriaguez de destruição", um fenômeno bem conhecido, especialmente em tempos de guerra. Vimos isso entre esses jovens que em certo ponto se sentem em guerra contra a sociedade francesa. Com efeitos contagiantes. Antropologicamente o homo sapiens também é homo demens. Vemos isso com a guerra na Ucrânia, vimos em muitas outras ocasiões.
O aspecto mais sério?
Tudo isso confirma uma crise de civilização. Em particular na França, onde está em curso uma oposição radical entre duas partes hostis. No momento não há solução para essas crises. A solução seria um uma nova forma de pensar a política. Infelizmente não existe. Pelo contrário, está ocorrendo uma regressão democrática que está atingindo outros países europeus, acompanhada pelo risco de uma sociedade do controle e da submissão possibilitada pela tecnologia da informação e pela inteligência artificial.
O senhor vê um paralelo com a década de 1930 e a ascensão dos extremismos?
Na década de 1930 havia o nazismo e o stalinismo que, como tais, não existem mais. Hoje existem extremismos que podemos definir como ultranacionalistas e de ultraesquerda.
Mas, em minha opinião, esse não é o cerne da questão. Desde a Revolução Francesa, com altos e baixos, o nosso país viveu um embate entre uma França tradicionalista e reacionária e uma França progressista e republicana. Hoje existe uma França que se acredita identitária em relação a todas as pessoas de origem imigrante. Uso o verbo "acreditar" porque em vez disso a França, por sua própria história, é um país multicultural como a Itália. Integrou alsacianos, bretões e depois, no século XIX, italianos, espanhóis e portugueses. Dentro de duas gerações, a maioria dos novos franceses se integrou.
Para os imigrantes do Magrebe e da África é mais difícil.
Para os argelinos em especial há o tema do colonialismo, a memória da luta pela independência, além da guetização das populações na França. O racismo existe, não é reconhecido para eles o mesmo nível de dignidade. E não é de excluir que essa França reacionária, com seu senso de suposta identidade, seu medo do estrangeiro e, em última análise, sua falta de democracia, possa prevalecer. Aconteceu após a derrota em 1940, quando assumiu o poder sob o regime de Vichy. O campo democrático poderá ser derrotado.
Como explica o ódio que Emmanuel Macron desperta numa parte dos franceses?
É normal criticar um presidente, mas considero odioso insultá-lo e difamá-lo da forma como tem sido feito no último período. A reforma da previdência foi um erro imposto pela tecnoburocracia.
Somos dominados pela lógica do lucro, mas isso já acontecia antes de Macron e vale para outros países como a Itália. Além disso, é verdade que o presidente Macron não soube criar aquela nova via política de que falava. Ele ainda tem alguns anos de presidência pela frente, então pode-se esperar que o faça.
O senhor mencionou a guerra na Ucrânia. Vê sinais de paz?
Parece que o conflito vai se arrastar. Quanto tempo? Não sabemos, o imprevisível existe.
A revolta de Prigozhin era inesperada. Fenômenos de deslocamento interno podem acontecer na Rússia. Minha experiência de conflitos começa com a Primeira Guerra Mundial. Não participei, mas conheci os combatentes e sei de todas as mentiras espalhadas sobre os alemães na época.
Depois conheci a guerra da Espanha, a Segunda Guerra Mundial, a guerra da Argélia. Cada conflito foi acompanhado por mentiras. Há crimes terríveis, mas também ilusões e mistificações. E é isso que eu quis alertar no meu livro Di guerra in guerra (De guerra em guerra, em tradução livre).
Seu mais recente ensaio, L’avventura del Metodo, acaba de ser lançado na Itália.
Queria contar o percurso que me levou a criar o Método, uma aventura intelectual de várias décadas. O pensamento complexo que defendo tem apoiadores em todo o mundo: na Itália, na Espanha, no Peru e até na China. Só no futuro veremos se conseguirá eliminar o que chamo de pensamento reducionista, unilateral, maniqueísta, puramente matemático que reina hoje.
O senhor afirmou certa vez: pensar na vida e viver o pensamento.
Viver significa acima de tudo ter relações humanas. Amar, maravilhar-se, rebelar-se. As relações amorosas sempre foram um estímulo para o meu pensamento. E eu marco uma diferença entre viver e sobreviver. Eu escapei por pouco de várias mortes que eram totalmente prováveis. Foi o acaso, o destino ou talvez a providência. Viver é sentir e experimentar a poesia da vida, em comunhão e com fervor. Para mim, o verdadeiro mistério é a vida, não a morte.
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"Agora temo pela democracia". Entrevista com Edgar Morin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU