18 Julho 2023
“Não existe um modelo físico do clima capaz de reconstruir a história do clima desde meados do século XX até o presente sem levar em conta o efeito, conhecido como forçamento radiativo, dos gases de efeito estufa emitidos em grandes quantidades pela queima de combustíveis fósseis”. A reflexão é de Juan Bordera, Fernando Valladares e Antonio Turiel, em artigo publicado por Ctxt, 16-07-2023. A tradução é do Cepat.
As colheitas estão perdidas em metade da Espanha e em muitos outros lugares entre secas infindáveis e inundações catastróficas que pipocam mundo afora. Os fenômenos extremos ocorrem com virulência crescente, fazendo com que acontecimentos, como incêndios de sexta geração, chuvas de granizo de nível quatro ou medicanes (ciclones tropicais mediterrâneos), se tornem normais em locais onde não eram comuns. Os oceanos ardem com temperaturas fora de qualquer lógica, deixando a comunidade científica atônita.
O que Índia, Turquia, Reino Unido ou Espanha têm em comum? Que estão localizados nesse espaço que existe entre um mar fervendo de calor acumulado e um céu sobrecarregado de progresso. E a energia retida durante décadas nos oceanos não se perde, está se transformando. Enquanto isso, uma camarilha de sabichões e estudiosos segue tentando negar o inegável, negociar com o inegociável, transformando-se em kafkianos com pequenas patas vieses de confirmação.
Até este julho histórico, o dia mais quente já registrado ocorreu em 2016, com temperatura média de 16,92ºC em todo o planeta. Na segunda-feira, 3 de julho, esse número foi superado (17,01ºC), mas foi o recorde mais breve possível, pois durou exatamente um dia. Na terça-feira, 4 de julho, e na quarta-feira, 5 de julho, o recorde foi pulverizado por um novo recorde que se repetiu – 17,18ºC –, e na quinta-feira, 6 de julho, outro, 17,23ºC. Nos dias seguintes, até 13 de julho, a temperatura manteve-se acima do recorde anterior. Onze dias seguidos. E novos recordes ainda podem ser batidos, já que os picos de temperatura costumam ser atingidos na segunda quinzena de julho.
Os acontecimentos são tão graves, óbvios e recorrentes que ninguém mais pode negar a mudança climática. Porém, muitas pessoas ainda não compreendem a urgência ou a gravidade do assunto, devido ao pouco trabalho educativo feito pelos grandes meios de comunicação, que não dão a devida importância ao assunto.
Diante da onda de fenômenos abruptos (e nos próximos meses veremos mais alguns), as tentativas de desviar o debate climático são cada vez mais sutis e elaboradas. Agora trata-se de insinuar que “não temos certeza das causas”, que “são ciclos naturais”, e outras bobagens do gênero. Infelizmente, podemos encontrar exemplos tanto na suposta esquerda, como no caso do fundador da Rede Voltaire, Thierry Meyssan, como também, claro, na direita dos vasos de flores nas sacadas, e principalmente entre a extrema direita, onde os negacionistas são ainda mais comuns.
Em uma entrevista recente, a antiabortista do Vox, María de los Llanos Massó Linares, a nova presidente das Corts Valencianes graças ao pacto com o PP, disse: “Uma coisa é a mudança climática, outra é que seja antropogênica, ou seja, que o homem é o culpado pelas mudanças climáticas. A mudança climática existe desde que a Terra existe, desde que o clima existe. É que agora, como não se estuda, bem, não se sabe. Mas as glaciações sempre existiram. Essas fases sempre existiram”. Outros membros desse partido fizeram declarações semelhantes.
Curiosamente, tanto Meyssan como Massó – com posições ideológicas aparentemente antagônicas – se dão as mãos para tentar contradizer algo que não admite discussão científica. Quem não busca reafirmar seu viés de confirmação, e analisa os dados, pode constatar que a atual mudança climática, numa velocidade sem precedentes, é sem dúvida de origem antropogênica.
Existem três argumentos que geralmente são apresentados para afirmar que o aquecimento global tem causas naturais. Os ciclos orbitais ou de Milanković (aos quais Meyssan também se refere), os ciclos solares e os vulcões.
Bem, vamos destrinchar os três para fornecer argumentos para aqueles que precisam enfrentar essas posições cada vez mais escanteadas e residuais, mas que parecem não querer ceder. Todos nós conhecemos (e talvez amamos) alguém que se recusa a entender o enorme perigo que esse tipo de declaração representa, especialmente quando vem de “políticos”.
A história do gênio Milutin Milanković mereceria muito mais reconhecimento. Sem computador ou calculadora, ele foi capaz de calcular e demonstrar que as mudanças cíclicas do clima se devem principalmente a três fatores, três grandes ciclos orbitais que operam em uma escala de tempo geológica: precessão (26.000 anos), obliquidade do eixo da Terra (41.000 anos) e excentricidade da órbita (dois ciclos sobrepostos, um com duração de 100.000 anos e outro de 413.000).
Esses três ciclos são diretamente responsáveis pelas mudanças climáticas naturais, pois aumentam ou diminuem o balanço radiativo da Terra. Outros fatores endógenos, como erupções vulcânicas, e fatores exógenos, como cometas, também podem ter influência circunstancial.
Com as mudanças climáticas acontece o mesmo que com os incêndios: existem alguns naturais e outros provocados. As variações orbitais são responsáveis por uma maior ou menor quantidade de radiação solar que atinge a superfície terrestre, sendo diretamente responsáveis pelos ciclos glaciais e interglaciais, e sua evidente periodicidade.
Ver isso graficamente ajuda a compreender a inegável relação que existe, nestes últimos 800.000 anos, principalmente com o ciclo de excentricidade da órbita do nosso planeta – pois não é só o Sol que puxa gravitacionalmente a Terra, mas também Júpiter ou Saturno, a órbita e a quantidade de radiação variam –, tornando-se a principal causa da alternância entre glaciações e períodos interglaciais mais quentes neste último milhão de anos.
Ao longo de milhões de anos, foi a radiação solar que aumentou a temperatura e isso causou o aumento da concentração de CO2 na atmosfera, ao passo que hoje se dá exatamente o contrário. À medida que a concentração de CO2 aumenta, é isso que faz com que a temperatura suba. É química básica. É inegável. É ridículo que ainda existam pessoas que fingem negar esse dado.
A outra questão que chama a atenção no gráfico talvez seja mais interessante, principalmente para Massó, que dissertava sobre as glaciações: os períodos quentes – os picos no gráfico – costumam ocorrer a cada 100.000 anos. Cem mil anos. Onde já vimos esse número antes? De fato, no ciclo da excentricidade da órbita.
Os períodos quentes, como a época atual conhecida como Holoceno, que viu florescer todas as civilizações conhecidas, geralmente são de curta duração, e já estaríamos nos aproximando de um período frio agora, não fosse o grande experimento que estamos fazendo com a atmosfera. Estamos nos dirigindo aceleradamente em direção a um lugar que seria o fim do caminho para a civilização como a conhecemos.
No estudo, talvez um dos mais importantes dos últimos anos, os autores apontam claramente que os ciclos de realimentação nos farão pular esses ciclos naturais e direcionar a Terra para um estado que esta equipe, composta por muitos dos melhores cientistas do planeta, chamaram de Terra Forno ou Terra Estufa. É claro que nada de bom acontecerá se chegarmos a esse ponto de não retorno, do qual estamos próximos. Os autores, em 2018, estimaram este ponto de não retorno em cerca de 2ºC. Vendo a velocidade em que o processo está indo, é mais provável que o ponto de não retorno esteja abaixo do que acima.
Fonte: PNAS
Durante os últimos milhares de anos, a atividade solar tem oscilado, alterando assim a radiação que incide sobre a Terra e, logicamente, a temperatura. As flutuações na quantidade de energia emitida pelo sol afetam a luminosidade e o vento solar ou o campo magnético, e ambas estão inter-relacionadas com efeitos visíveis, como manchas solares. Apesar dessas flutuações, o valor médio da radiação solar, 1366 W/m², quase não se altera: as flutuações produzidas pelo ciclo das manchas solares não ultrapassam 1 W/m².
A variação solar mais importante é a dos ciclos das manchas solares e dura 11 anos até voltar ao mesmo valor de manchas e radiação. Existem outros ciclos de maior duração, principalmente o ciclo de Gleissberg, com período de 72 a 83 anos, ocasionando o famoso Mínimo de Maunder que originou a Pequena Idade do Gelo. Mas quando se sobrepõe a evolução das temperaturas e da atividade solar, fica claro que não guardam nenhuma relação com o que aconteceu no século passado.
Temperatura vs. atividade solar. Fonte: Nasa
O efeito dos vulcões no clima é muito variável. Ao emitirem gases de efeito de estufa (vapor de água, óxidos de carbono e enxofre, etc.) os vulcões contribuem para o aquecimento da atmosfera, como foi o caso do vulcão submarino de Tonga em 2022. Ao emitirem partículas, cinzas e aerossóis, aumentam a fração de radiação solar que se reflete no espaço sideral, como foi o caso do vulcão Tambora que provocou um ano inteiro sem verão com grandes quebras de safras por falta de calor suficiente. A predominância de um ou outro efeito depende de cada vulcão, mas a alteração das erupções é temporária e, passados alguns anos (excepcionalmente quatro ou cinco), seu impacto na temperatura local ou global desaparece.
Como no caso dos ciclos orbitais, que ocorrem na escala de milhares de anos, ou dos ciclos solares, que ocorrem na escala de décadas, os vulcões são uma fonte de variação climática natural que não guarda relação com o que aconteceu no século passado. Não existe um modelo físico do clima capaz de reconstruir a história do clima desde meados do século XX até o presente sem levar em conta o efeito, conhecido como forçamento radiativo, dos gases de efeito estufa emitidos em grandes quantidades pela queima de combustíveis fósseis. Não há ninguém que, com a ciência em uma das mãos, possa negar isso, mesmo que tenha uma bíblia na outra.
Apesar das evidências científicas, é mais cômodo acreditar nas opiniões de Massó ou de Meyssan e em suas ideias tão convenientes à imobilidade das grandes potências econômicas que passaram décadas financiando think tanks e comprando “cientistas” para poderem continuar com suas indústrias. Só nos Estados Unidos, centenas de milhões de dólares são investidos para financiar o negacionismo.
Pelo menos Meyssan reconhece que não tem conhecimento sobre o estudo do clima. Mas enquanto alguns dão opiniões infundadas, milhões de pessoas ao redor do mundo precisam abandonar suas casas por causa de colheitas que fracassaram ou diretamente por causa de temperaturas incompatíveis com a fisiologia humana. A mudança climática afeta a vida de muitas pessoas, e temos que ouvir os políticos falarem de forma muito descuidada sobre uma questão de vida ou morte.
Enquanto as evidências e os desastres se acumulam, nessa Espanha que se descolora para o preto e o branco, damos lugar a teorias bizarras e truques baratos, como os do El Niño meteorólogo das “cabañuelas”, que participará de um ato da Universidade CEU San Pablo junto com o Presidente de Andaluzia Juan Moreno Bonilla.
O filósofo alemão Karl Jaspers definiu a Era Axial – o tempo-eixo – como o momento em que “os fundamentos espirituais da humanidade foram estabelecidos simultânea e independentemente na China, Índia, Pérsia, Judeia e Grécia”. De 800 a.C. a 200 a.C., em apenas 600 anos, foram construídas muitas das estruturas de pensamento que ainda sobrevivem. Estamos numa espécie de ‘década axial’ da qual já percorremos quase um terço. Ou usamos o tempo restante para vencer a batalha contra a pseudociência e os interesses econômicos, ou vamos pagar caro por isso nos próximos séculos.
Nesta ‘década axial’, as decisões devem ser tomadas da forma mais científica possível, com a participação dos cidadãos e deixando as potências econômicas de lado devido aos seus óbvios conflitos de interesses. Só assim evitaremos cair no mesmo erro de sempre e no buraco infernal de uma Terra Forno que já deixa sentir o seu calor crescente.
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Manual contra o negacionismo climático na década axial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU