12 Setembro 2022
Em Como ser um bom ancestral. A arte de pensar o futuro num mundo imediatista (Zahar, 2021), o filósofo explora os meandros do pensamento de longo prazo e os desafios de viver no presente sem comprometer a sobrevivência das gerações futuras.
A entrevista é de Juan F. Samaniego, publicada por La Marea/Climática, 07-09-2022. A tradução é do Cepat.
Somos os herdeiros das decisões tomadas no passado. Algumas boas, outras nem tanto. Vivemos os resultados do Iluminismo e da Revolução Industrial. O nível de desenvolvimento e bem-estar alcançado em parte do planeta é inquestionável. Mas também as consequências ecológicas e climáticas. Se olharmos para trás, com suficiente perspectiva, poderemos entender quais decisões teria sido melhor não tomar. Mas, como olharão para nós as gerações futuras?
Livro Como ser um bom ancestral. A arte de pensar o futuro num mundo imediatista (Foto: Divulgação)
O filósofo Roman Krznaric explora em Como ser um bom ancestral os meandros do pensamento de longo prazo e os desafios de viver no presente sem comprometer a sobrevivência das gerações futuras. Pesquisador da Long Now Foundation e membro do Clube de Roma, Krznaric é casado com a economista britânica Kate Raworth, conhecida pela teoria da economia donut, um sistema econômico que equilibra as necessidades humanas e os limites planetários. Uma teoria que também permeia Como ser um bom ancestral.
“Para mim, o caminho até entender e sentir a urgência da crise climática tem sido lento. Levei quase duas décadas para percorrê-lo”, explica Krznaric. “E viver com Kate me ajudou a consegui-lo. Ela me apresentou muitas de suas grandes ideias enquanto estávamos sentados à mesa do café da manhã. A economia ecológica é muito diferente da economia liberal. Coloca os limites da biosfera em torno de qualquer coisa. Esse é o tipo de coisa que aprendi com ela. Espero que também tenha aprendido algo em troca [risos].”
Vivemos tempos complexos. Parece que estamos cercados por muitos problemas. Mas em seu livro argumenta que há um problema muito mais importante do que os demais: nós colonizamos o futuro.
O imediatismo que prevalece em todo o sistema é um problema muito sério. Podemos definir todas as metas de desenvolvimento sustentável que quisermos, mas se o sistema político continuar a se mover em ciclos de tempo tão curtos, não iremos muito longe. Precisamos repensar e redesenhar nosso sistema.
Um bom exemplo do que podemos fazer são as assembleias de cidadãos e as assembleias do clima. São uma forma de democracia participativa que começa a ter peso em alguns países. Se envolvermos as pessoas na tomada de decisões, independentemente dos ciclos eleitorais que marcam a política ou independentemente das tendências do Twitter, abriremos as portas para uma visão de mais longo prazo.
E este é apenas um exemplo da mudança que está em curso. Também temos cada vez mais julgamentos e ações judiciais por não respeitar os direitos das gerações futuras. Precisamos de uma verdadeira justiça intergeracional e precisamos parar de colonizar o futuro.
O conceito de justiça intergeracional pode parecer novo, mas em muitos aspectos é antigo, certo?
Ao nível dos estudos filosóficos, é algo que tem sido muito debatido no último meio século. No plano político, porém, não acho que seja uma questão que estivesse realmente presente até bem pouco tempo atrás. Mas se olhamos para outras culturas indígenas, é verdade que a justiça intergeracional existe há muito tempo.
Temos, por exemplo, o conceito de tomada de decisões para a sétima geração dos iroqueses [nativos norte-americanos]. Os resultados das decisões que eles tomam devem ser sustentáveis para os netos de seus netos e assim até sete gerações. Há evidências escritas de que era uma prática estabelecida no início do século XIX, mas certamente é muito anterior.
São múltiplos os exemplos de bons ancestrais, de culturas cujo objetivo vital é proteger o entorno e o modo de vida para as gerações seguintes. A grande questão é como conseguimos extrair e aplicar esse conhecimento nos sistemas ocidentais. É uma pergunta muito difícil de responder.
Podemos tentar. Como incluir os interesses das gerações futuras nas estratégias dos governos ou das corporações?
Essa é a grande questão, mas há muitas maneiras de abordar a resposta. Muitas pessoas se concentram em transformar a economia ou a política. Mas acredito que a transformação cultural é igualmente importante. Acredito na importância de mudar os romances que lemos, os filmes e as séries que assistimos... As coisas não vão ser consertadas apenas com títulos de emissão de carbono. Precisamos de uma mudança profunda. O que você acha?
Podemos ter subestimado o poder das mudanças culturais nas últimas décadas.
Precisamos de soluções e as procuramos no âmbito do racional. Buscamos a política correta que alcance os resultados necessários. E isso é importante. Mas se pensarmos no longo prazo, os movimentos que alcançaram grandes mudanças ao longo do tempo sempre tiveram um importante componente cultural. Pensemos no movimento dos direitos civis nos Estados Unidos ou no sufrágio feminino. Foram lutas longas que se basearam fortemente na batalha cultural, nos livros, na arte e no jornalismo.
Voltando ao conflito entre pensamento de curto e longo prazo, me surgiu uma pergunta. Se tomamos decisões de curto prazo e algo dá errado, geralmente temos margem para corrigi-lo. Mas o que acontece se planejarmos a longo prazo e depois de anos percebermos que estávamos completamente errados desde o início?
Se planejarmos algo pensando no longo prazo, sempre há o risco de meter a sociedade em um beco sem saída. E se o mundo mudar de forma imprevisível? De certa forma, desconhecemos completamente o que o futuro nos reserva. Mas quando falamos sobre a crise ecológica e climática, hoje sabemos mais do que em qualquer outro momento da história. Milhares de cientistas nos alertam há décadas que, se não mudarmos as coisas, as consequências do aumento da temperatura global no final do século serão catastróficas.
Em 2100, minha filha e meu filho ainda podem estar vivos. Eles terão mais de 90 anos. Quais serão suas necessidades então? Em um nível ecológico, as mesmas que as nossas hoje. Ar para respirar, água para beber e alimentos para comer. Eles precisam ser capazes de continuar vivendo dentro dos limites do planeta e do ecossistema em que estão. Não estou preocupado em impor uma decisão errada para as gerações futuras no campo ecológico. Errado é não fazer nada.
Precisamos de pensamento de longo prazo para resolver a crise ecológica, mas precisamos desse pensamento de forma urgente. Não é um pouco paradoxal?
Parece um paradoxo, é claro. Mas não acho que seja. No nosso dia a dia, tomamos decisões que têm grandes consequências no futuro. Decidimos ter filhos, por exemplo. A nível político, penso que é assim que devemos abordar as decisões sobre o clima. Precisamos de ações urgentes e, sejam quais forem, terão consequências no futuro. Decidir queimar mais gás, construir mais usinas nucleares ou apostar em mais energias renováveis sempre terá consequências a longo prazo. Mas não fazer nada também terá consequências muito sérias no futuro. Daí a urgência.
Há cinquenta anos, foi proposta a ideia dos limites do crescimento que refuta as teorias do crescimento perpétuo. Cada vez mais pesquisadores estão apontando que talvez já tenhamos atingido esses limites. Já os atingimos?
Sim.
Uma resposta curta.
Sou membro do Clube de Roma [que encomendou o primeiro relatório sobre os limites do crescimento em 1972] e contribuí um pouco para a redação do seu próximo relatório, que revisará o conceito após 50 anos. É claro que estamos atingindo os limites. Acho que, neste caso, só vou responder a mesma coisa que minha esposa diria: devemos avançar para um sistema de pós-crescimento.
Penso que nunca ficaremos totalmente sem petróleo ou carvão, mas será cada vez mais difícil e caro sua extração. O mesmo acontecerá com os minerais. É por isso que precisamos começar a agir como se tivéssemos chegado a esse esgotamento, pelo menos nos países desenvolvidos. Aceitar os limites e caminhar para uma economia que não necessita do crescimento perpétuo.
Houve muitas tentativas de dissociar o crescimento das emissões de CO 2, da poluição ou do esgotamento de recursos. Mas nenhuma foi bem sucedida até agora. Não funciona. O crescimento sustentável não faz sentido. Não podemos continuar a crescer indefinidamente e fingir que somos sustentáveis dentro dos limites do planeta.
A produção de petróleo parou de crescer há pouco mais de 10 anos. Desde então, os países desenvolvidos tiveram muitos problemas para continuar a crescer. Por que quase não há líderes políticos que estejam falando disso?
Sabemos como foi a história dos recursos naturais. Os países do Norte desenvolvido se apropriaram dos recursos dos países do Sul global. Os países em desenvolvimento mal tiveram controle independente de suas matérias-primas. A pergunta que esses países se fazem agora é: devemos seguir o mesmo caminho de crescimento perpétuo e desenvolvimento industrial ou pular essa fase? Os países desenvolvidos geraram a maioria dos problemas ambientais e essa é uma verdade difícil de enfrentar.
Para continuar com sua metáfora, os países desenvolvidos colonizaram primeiro outros territórios e depois colonizaram o futuro do planeta.
Exato. Acredito que o Sul global tem mais direito do que o Norte global de queimar combustíveis fósseis e consumir seu orçamento de carbono. Mas é necessário? E suponho que o mesmo debate possa ser aberto em sociedades desenvolvidas. Todos são igualmente responsáveis pelos problemas ambientais? Não tenho as respostas, mas penso que o movimento decrescimentista vem desenvolvendo um pensamento robusto nos últimos anos em torno dessas questões.
Vamos mudar um pouco de assunto. É costume julgar o mundo do passado com os olhos do presente. Como as gerações futuras nos julgarão?
As gerações futuras nos julgarão e dirão que fomos criminosos. Meus filhos já fazem isso, e têm apenas 13 anos. Eles não conseguem entender que nos anos 90 eu viajei o tempo todo de avião do Reino Unido para a Guatemala. Se meus filhos já me julgam, como nos julgarão os nascidos no ano 2100?
O escritor de ficção científica Kim Stanley Robinson descreve a década de 2020, em alguns de seus romances, como a década dos vacilos: a década na qual não tomamos decisões e tudo o que fizemos foi falar. Seremos julgados, sobretudo, as classes políticas e os tomadores de decisões. Mas acho que esses anos também serão vistos como um período de transformação.
Isso se a transformação acabar sendo bem-sucedida.
Sim, pode ser. Mas o movimento climático global é único na história, é o maior movimento social que já existiu. Ou pelo menos é o que repito para mim mesmo para ter algo em que me agarrar. A rebelião climática é uma das esperanças legítimas que temos como humanidade. Mas, é claro, também pode fracassar.
Somos uma espécie que cozinha pouco a pouco em seu próprio líquido e precisaremos de um bom tranco se quisermos escapar da panela. Essa é uma das frases com as quais termina o livro. Pandemia, mudança climática, crise energética… De mais quantos trancos precisamos?
Essa é a pergunta definitiva. O que é preciso para pularmos da panela de uma vez por todas? De quantas crises precisamos? Eu gosto de buscar respostas no passado. As grandes transformações históricas sempre têm alguma crise, mas também uma parte importante de rebelião social. Tomemos como exemplo a abolição da escravatura.
Às vezes se vende, pelo menos no Reino Unido, como um processo gradual em que os brancos no poder entenderam que era preciso acabar com a escravidão. Mas isso não é verdade. Houve revoltas e rebeliões de escravos e algumas tiveram um impacto muito importante nas classes dominantes. As revoltas forçaram a mudança.
Penso que a história nos ensinou que para escapar da panela precisamos de movimentos radicais e disruptivos, como o Extinction Rebellion, situações de crise que nos despertem e novas ideias onde nos agarrar. São os movimentos sociais que nos fazem sentir realmente a crise.
E o que acontece se, quando decidirmos dar o passo e escapar da panela, for tarde demais?
Diante da crise climática, cada tonelada de combustíveis fósseis que conseguirmos deixar no subsolo, cada décimo de grau importa. Isso é positivo, porque pode nos ajudar a manter a motivação. É claro que podemos atingir pontos de inflexão na mudança climática. Nesses casos, quando quisermos agir, pode ser tarde demais.
Para mim, aí, a questão é: tarde demais para quem? Sabemos que os impactos climáticos são muito mais severos naquelas pessoas que vivem à margem da sociedade e nos países mais vulneráveis. Historicamente, as elites foram bastante eficazes na hora de se protegerem. É por isso que devemos reorganizar nossas sociedades e repensar nossas democracias.
Também não devemos subestimar a capacidade de ação dos seres humanos em tempos de crise. Somos muito ruins em planejar o futuro, mas muito bons em reagir. Em situações extremas, coisas extraordinárias foram alcançadas. Pensemos na aliança entre a União Soviética e os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.
Falamos sobre muitos problemas sobre os quais a comunidade científica e outros pesquisadores nos alertam há décadas, mas não lhes demos muito crédito. Quando você escreve um livro como ‘Como ser um bom ancestral’, você tem medo de que ninguém o escute?
Claro, claro, o tempo todo [risos]. Já escrevi outros livros antes e estou ciente de que a maioria das pessoas não lê livros. Assistem a séries, ouvem podcasts, jogam videogame… Como escritor, só chego a uma parte da população, então tenho que tentar passar a mensagem que quero transmitir da melhor forma possível. Procuro conectar todos aqueles que querem contar uma história como a de Como ser um bom ancestral, pessoas que chamo de rebeldes do tempo.
Acredito que para que a mudança seja realmente efetiva ela deve ser coletiva. Mas ser escritor é uma coisa muito individual. Então, escrevo sobre ação coletiva e tento impulsionar a ação coletiva. Eu tento contribuir para que as ideias estejam circulem. Talvez alguém as ouça e mude sua maneira de ver o mundo.
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“As gerações futuras nos julgarão e dirão que fomos criminosos.” Entrevista com Roman Krznaric - Instituto Humanitas Unisinos - IHU