23 Junho 2023
"Um balanço dos trágicos acontecimentos que envolvem a Ucrânia revela que a estratégia belicista da OTAN faz lembrar o episódio das imaginárias armas químicas de Saddam Hussein", escreve Dercio Garcia Munhoz, economista emérito pelo Corecon-DF. Foi professor titular de Economia da UnB. Ex-presidente do Conselho Federal de Economia e do Conselho Nacional da Previdência Social.
01 – O presidente Lula tem de tomar cuidados redobrados em relação ao conflito Ucrânia x Rússia, pois repetidamente se tenta envolver no imbróglio, em apoio cego à Ucrânia, países que estão mais alinhados aos pensamentos do Papa – reafirmados em entrevista recente à TV Suíça, aparentemente censurada – e às preocupações de Lula, que aos senhores da guerra. Estes, ferozes falcões, agrupados em revoadas, ávidos em incendiar a Europa, abominando tempos de paz por razões e interesses vários.
02 – Sempre se pode perguntar como age o arrastão na busca de uma abstrata e ilusória unanimidade no apoio da Ucrânia. E a resposta mais precisa seria que a estratégia belicista se sustenta em promover toda a discussão só a partir da segunda metade da história, do segundo tempo do conflito, se diria. Ocorre, porém, que só se conseguirá abrir caminho para a cessação das batalhas se a questão for analisada a partir do momento inicial, do estopim detonador. Sem isso, não haverá solução para o conflito. Pois mesmo uma hipotética retirada russa dificilmente evitaria o ressurgimento de operações sangrentas em território ucraniano.
3 – É fundamental, portanto, analisar a questão desde o seu nascedouro:
a) o então presidente da Ucrânia, Yanukovych, eleito em 2010, político tradicional, primeiro ministro por três vezes entre 2002 e 2007, nascido no leste do pais (Donetsk), foi deposto em 2013 num violento golpe de estado, com a participação de conhecidas milícias, ou regimentos, tidos como nazi-facistas. Alegou-se, para isso, que o governo pretendia firmar um acordo comercial com a Rússia. O que, afinal, era lógico, dado o intercâmbio entre os dois países.
b) o novo governo desde logo, num lance de total insanidade, decidiu pela proscrição da língua russa, que, presente em todo o país, predomina historicamente no leste e sul da Ucrânia. Afetando com isso 8,5 milhões de cidadãos de etnia russa, mais um grande contingente da população do país que usa correntemente o idioma russo – compreendendo os naturais e cidadãos de outras etnias.
c) no leste industrial, (região de Donbass), a população de Donetsk e Lugansk reagiu, declarando suas províncias como republicas independentes. E a resposta do Governo da Ucrânia foi – no estilo do Velho Oeste – enviar o exercito e as milícias, para submeter, manu militari, os separatistas. Era a guerra civil. De imediato abraçada com entusiasmo por Zelenski, presidente eleito em 2019, e um sucessor perfeito em todos os sentidos. E com isso produzindo mais de seis milhões de refugiados e presumíveis centenas de milhares de mortos. O que teria levado a Rússia a intervir no conflito, evitando o massacre da população russa.
d) inicialmente a estratégia russa foi deslocar uma coluna de 60 km. de homens e máquinas de guerra próximos à Kiev para, segundo se deduz, assim dissuadir a Ucrânia da guerra interna. Estratégia que fracassou, pois já então os falcões, amantes de guerras – no seio da OTAN e arredores – avançavam no projeto de atrair países do leste, com ingresso na União Europeia, para envolver o território russo. O conflito concentrou-se no leste do país, o que levaria, posteriormente, à retirada de milhares de crianças de famílias russas, da zona de guerra, à salvo dos campos de batalha. O que o Governo da Ucrânia, no seu melhor estilo criativo, aponta agora como sequestro de crianças ucranianas.
e) tentativas foram feitas, ainda em 2015, para evitar o pior, com o Acordo de Minsk (com participação da França, Alemanha, Rússia e Ucrânia, mais a Organização para Segurança e Cooperação na Europa – OSCE), e endosso do Conselho de Segurança da ONU). Objetivos principais: o cessar fogo; a libertação de prisioneiros, a reversão da proibição do uso da língua russa; a reintegração à Ucrânia das províncias separatistas, com um estatuto que lhes reservava algum grau de autonomia (modelo da Catalunha?),
f) foi uma oportunidade única. Desperdiçada, porém, diante do não interesse da Ucrânia na sua implementação. Segundo Ângela Melk, que participara das conversações, a Ucrânia assinara o acordo apenas para ganhar tempo, enquanto reforçava o seu poder bélico. A omissão da ONU, que nas ultimas décadas tantas guerras e invasões tem apoiado, foi fatal. Pois poderia ter agido para que o protocolo fosse cumprido; e inclusive decidido pelo envio imediato de uma forças de paz, como o fizera em muitos outros momentos;
04 – Pode-se dizer que um fato primordial sustenta hoje o clima de guerra. Considerando a máquina de propaganda que invade jornais e TVs no nosso dia a dia, é fácil se perceber que todo o arsenal de noticias procura explorar a segunda metade da historia, e só esta. Ou seja, apenas o tempo, depois que a Rússia interveio na guerra civil que vitimava milhões de cidadãos de etnia russa.
05 – O que interessa agora, todavia, é encontrar uma saída na busca de um acordo de paz – que é a mensagem do Papa, que é a fala de Lula – ambas repudiadas pelos senhores da guerra. Mesmo porque a direção imposta pelos lideres ocidentais e pelos belicistas da OTAN, não leva ao encontro de uma solução. Ao contrário, empurraria a Ucrânia para eternizar uma guerra fratricida, ainda que a Rússia decidisse por um improvável abandono das províncias do leste e de seus cidadãos.
06 – Deve-se ter em conta que o futuro oferece apenas três alternativas para as republicas do leste que em plebiscito decidiram pela incorporação à Rússia (fazer parte definitiva da Rússia, constituir um estado independente, reintegração à Ucrânia), Esta ultima seria a saída menos provável, pelos inevitáveis e graves possíveis desdobramentos;
07 – Caso as antigas províncias do leste venham a retornar ao status quo anterior, reintegrando-se à Ucrânia, a população local passaria a viver numa região militarmente ocupada, e exatamente por aqueles que desde 2014 a mantém sob fogo. Com provável ressurgimento da guerra civil. Ou, então, tendendo a uma descomunal e sofrida diáspora. Em ambos os casos seria pouco provável a possibilidade de recuperação do grande polo industrial do leste do país.
08 – Um balanço dos trágicos acontecimentos que envolvem a Ucrânia revela que a estratégia belicista da OTAN faz lembrar o episódio das imaginárias armas químicas de Saddam Hussein. Cercar o território Russo após o fim da União Soviética, sob as asas da recém criada União Europeia, revela um ímpeto em substituir a diplomacia pelos canhões. E o que vem sendo observado deriva especialmente da fraqueza das lideranças europeias, o que inibe o continente de ter uma personalidade própria, com assento e também voz nas organizações internacionais. Daí a supremacia da volúpia guerreira de uma OTAN desprovida de comandos com um mínimo de equilíbrio, sensatez e serenidade.
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Ucrânia. A estratégia ocidental tende a levar à guerra civil ou à diáspora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU