29 Abril 2023
“A guerra mundial contra a Mãe Natureza não tem acordos de paz possíveis e parece que será uma guerra definitiva e total. Tínhamos a ilusão de que a pandemia de coronavírus, que fez balançar o castelo de areia da civilização ocidental e produziu mudanças em tudo, também mudaria a consciência da espécie humana. Contudo, não foi assim”, escreve Róger Rumrrill, ensaísta, escritor, poeta e jornalista especializado na questão indígena da Amazônia peruana, em artigo publicado por Otra Mirada, 24-04-2023. A tradução é do Cepat.
No sábado, 22 de abril, celebrou-se o Dia Internacional da Mãe Terra. Mais do que uma celebração, deveria ser um dia de conscientização, de luto e mais do que isso, um dia em que todas as pessoas que amam a vida devem levantar a voz e organizar a resistência contra a guerra mundial que a própria espécie humana desencadeou contra a Mãe Natureza, Gaia, a Terra.
Esta guerra global contra a Terra ameaça a sobrevivência da espécie humana.
É verdade que as guerras fratricidas provocaram milhões de mortes. Só as guerras mundiais do século XX, a Primeira e a Segunda, custaram a vida de 100 milhões de pessoas e a guerra Rússia-Ucrânia-Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o Cavalo de Troia dos Estados Unidos, já soma um quarto de milhão de mortos, segundo estatísticas divulgadas por Washington.
Contudo, a guerra mundial contra a Mãe Natureza não tem acordos de paz possíveis e parece que será uma guerra definitiva e total. Tínhamos a ilusão de que a pandemia de coronavírus, que fez balançar o castelo de areia da civilização ocidental e produziu mudanças em tudo, também mudaria a consciência da espécie humana. Contudo, não foi assim. Pelo contrário, a morte se tornou um negócio tanático das multinacionais farmacêuticas e laboratórios que produzem as vacinas.
Neste momento, a guerra na Ucrânia é uma oferta orgiástica e desvairada de compras e vendas. A Lockheed Martin, uma das maiores fabricantes de armas dos Estados Unidos, acaba de assinar um suculento contrato com o Pentágono no valor de 950 milhões de dólares para a fabricação de mísseis para a Ucrânia. A mesma coisa fez outra produtora de armas de guerra, a Raytheon Technologies, que produzirá armas para a Ucrânia por 2 bilhões de dólares.
Diariamente, são investidos 4 bilhões de dólares em armas. Na realidade, como diz o analista Diego Herranz, todo o orçamento militar global disparou estratosfericamente, sobretudo nos Estados Unidos e seus aliados da Ásia e da União Europeia. O Japão colocou para si o epitáfio de país pacifista: seu orçamento militar crescerá 60%. A Alemanha aumentou seus fundos em armas em 100 bilhões. A ganância e a idolatria pelo dinheiro não têm limites. E tudo à custa da vida humana.
A guerra mundial contra a Mãe Natureza está provocando “uma orgia de destruição” no planeta Terra, afirmou, sem rodeios, o próprio secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres.
Os sinais, provas, testemunhos e resultados desta “orgia de destruição” são visíveis para todos e milhões de seres humanos que sofrem e padecem suas consequências e efeitos: ondas de calor infernais, chuvas e inundações diluviais, tempestades, ciclones, aquecimento e poluição das águas oceânicas e outros impactos na vida de todos os seres vivos que povoam a Terra.
Os números deste apocalipse são intermináveis, mas citemos apenas alguns que são os registros do Antropoceno ou, melhor, do Capitaloceno: as geleiras que alimentam o lençol freático, rios e lagos e que fornecem água doce para o consumo humano, a agricultura e a indústria já descongelaram em até 50% e, atualmente, 40% da população mundial sofre com a escassez de água. Em nível global, estima-se que 69% das populações silvestres já foram perdidas, entre os anos 1970-2018. Na América Latina, onde o extrativismo decretou uma sexta extinção em massa, nesse mesmo período, 94% dessas populações silvestres foram perdidas.
De acordo com a organização World Wildlife Fund (WWF), só entre 2004 e 2017, 43 milhões de hectares de florestas foram derrubadas no mundo, a maior na América Latina, África Subsaariana, sudeste da Ásia e Oceania. Florestas cujos serviços ambientais são vitais para todas as espécies vivas: o ser humano, insetos, aves e animais silvestres. Só em agosto de 2019, foram causados 72.000 incêndios, destruindo 600.000 hectares de florestas. No ano de 2022, ocorreram 983 incêndios que transformaram em cinzas 1 milhão de hectares de florestas na Amazônia: 72% no Brasil e 12% no Peru.
As florestas são o pulmão do mundo, uma das maiores fábricas de água doce e o território ancestral dos povos indígenas que, apesar desta onda de destruição, continuam sendo os jardineiros da natureza e seus saberes, práticas, cosmologias e cosmovisões são uma das tábuas de salvação da Mãe Natureza, incluindo a espécie humana.
Só nos primeiros 100 dias de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, entre janeiro e março de 2023, apesar de todas as suas medidas para controlar o desmatamento, os agronegócios, os garimpeiros e outras atividades ilegais desmataram 860 km de floresta amazônica.
Nos incêndios que assolaram a Amazônia brasileira, em 2019, durante o governo do ultradireitista e negacionista da mudança climática, Jair Bolsonaro, os cientistas estimam que 500 milhões de abelhas morreram devido ao fogo e ao uso de agrotóxicos nos megalatifúndios de soja e outras monoculturas. Em nível global, 75% dos produtos alimentícios dependem da polinização das abelhas e outros polinizadores.
Um quinto dos ecossistemas da Terra está prestes a entrar em colapso. Um desses ecossistemas, vital para a saúde humana, a produção de alimentos e outros serviços, são as áreas úmidas. Elas cobrem 6% da superfície terrestre e esses ecossistemas são o habitat de 40% das plantas e animais. Mas as drenagens, os aterros para a agricultura, a construção urbana, a poluição, a superexploração de sua riqueza e a mudança climática já destruíram 35% das áreas úmidas do planeta.
É possível que com a nova configuração geopolítica que está sendo tecida no mundo, com um novo epicentro de poder na Eurásia e onde os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) terão um peso geoeconômico decisivo, a hegemonia dos Estados Unidos fique ainda mais fragilizada e haja a possibilidade de um acordo de paz na Ucrânia. Para os Estados Unidos, a guerra com a Ucrânia tem um objetivo geoeconômico e a paz não é o seu objetivo estratégico.
Contudo, no caso da guerra mundial contra a Terra, não há indício de paz, mas, sim, de uma derrota anunciada contra a Mãe Natureza e a própria sobrevivência humana. Os últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas e outros organismos independentes estão revelando e demonstrando que não há fundos para salvar a natureza da destruição, mas, sim, para a guerra. Os acordos das 27 COPs estão só estão no papel e, pior que isso, as ditaduras do petróleo, carvão e gás e as multinacionais extrativistas estão modificando e se esquivando dos acordos das COPs.
Sem meias palavras, os cientistas e especialistas qualificam as chamadas “soluções baseadas na natureza” como falácias e como “armadilhas letais” o “conceito de emissões zero”. A chamada “economia verde é um oxímoro usado para legitimar os interesses dos grupos de poder”, escreve o especialista equatoriano Alberto Acosta. Além disso, quase unanimemente, os especialistas qualificaram os acordos da COP 26 de Glasgow como “fraudes”.
Um exemplo, o carro-chefe da descarbonização da economia: o sistema de comércio de emissões (SCE). Contudo, o SCE se tornou um instrumento para distribuir lucros entre as multinacionais. Como demonstração, na Austrália, as centrais térmicas estão recebendo 1,2 bilhão de dólares. Ou seja, o princípio de “quem polui paga” se transformou em “quem polui recebe”.
“Sob o guarda-chuva da ação climática, esconde-se um paraíso empresarial que só leva ao aumento da injustiça social. As grandes multinacionais e as entidades conservacionistas que se dedicam a plantar árvores serão as grandes beneficiadas”, escreve o especialista Víctor Resco de Dios, em uma reportagem publicada por The Conversation e compartilhada por Servindi, no dia 12 deste mês.
A Mãe Natureza agoniza por causa do extrativismo, da obscena mercantilização dos bens da natureza (a água agora é negociada na bolsa de valores de Wall Street) e o Acordo de Paris para deter o aquecimento climático em 1,5 grau, até 2030, já é inalcançável. A visão e concepção eurocêntrica da natureza faz dela apenas uma matéria, um bem comercializável.
Enquanto toda esta catástrofe bate à nossa porta, ninguém se atreve a tocar sequer com uma pétala de rosa no modelo econômico e de consumo, uma espécie de pedra filosofal econômica e política, um sistema que é uma fábrica de pobres e uma máquina trituradora da natureza (Thomas Piketty, dixit).
Muito pelo contrário, como é o caso da ultradireita global: cerram fileiras e defendem com unhas e dentes e com todas as armas ao seu alcance o capitalismo fóssil e canibal que está levando a espécie humana à beira do cataclismo.
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A guerra mundial contra a Mãe Natureza: crônica de uma derrota anunciada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU