12 Abril 2023
"A práxis da paz levou João a elaborar uma Teologia da paz, ou seja, com seu próprio modo de repensar o conceito de Deus não a partir da "maioria" de uma Igreja poderosa, mas da 'minoria' de uma comunidade frágil como ele havia experimentado na Bulgária e na Turquia. João havia feito da perda da onipotência (de acordo com o pensamento do misticismo judaico) uma maneira diferente de narrar Deus e o mundo. Esses são alguns indícios, talvez, para interpretar o 'Mistério' do Papa João", escreve Marco Campedelli, agente teatral com currículo de estudos teológicos acadêmicos, em artigo publicado por Rocca, 11-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por anos circulei pelas cidades com um espetáculo itinerante: “O Papa, a carícia e a lua”. Era dedicado a João XXIII, ao Concílio e à paz. Era a época de Woytila e Ratzinger, e aquele sonho itinerante tinha o sabor de nostalgia e utopia. Num tempo em que a Igreja parecia fechada em um longo inverno, aquele espetáculo levava um pouco de primavera às ruas. Um exercício de "resiliência" para ajudar a "organizar a esperança". Era sobretudo uma mensagem de paz.
Mas que relação existe entre a Paz como bem universal e as nossas biografias, as nossas vidas? Em João o horizonte de paz brotou de sua experiência; passava pela sua linguagem, pelas relações, pela sua forma de habitar o tempo e o espaço.
Erradicar a linguagem, desarmar as palavras era uma primeira forma de buscar a paz. Assim, João preferia, disse isso ao abrir o Concílio, "a medicina da Misericórdia" à "severidade da condenação". Para conseguir a paz não era preciso um comandante, um estrategista militar: João atuava pela paz todas as manhãs, como todas as manhãs o padeiro fazia o pão. Ele decidiu ser um tecelão, talvez um humilde alfaiate, como aquele narrado em Os Noivos de Manzoni. Tecer, costurar, remendar.
Não só "tecelão", mas também "inventor". Inventar novas estradas, caminhos inéditos trabalhar com imaginação. Nisto, João foi um poeta.
Ele soube imaginar a manobra surpreendente e inesperada, não haurindo ela de uma inspiração pessoal apenas, mas da sabedoria da terra e da surpresa escondida no Evangelho. Então abrir um Concílio como escrever uma carta pela Paz para o mundo inteiro, que pareciam atos excepcionais (e realmente o eram), para ele eram sua maneira "natural" de pensar e viver. Muitos acham estranho tudo isso. Os poetas e os simples, ao contrário, o entendem, o veem como se vê o nascer do sol. Assim o haviam entendido Ermanno Olmi que em 1965 com seu filme sobre João "E venne um uomo" faz uma obra de pura poesia ou Pierpaolo Pasolini que lhe dedica sua obra-prima "O Evangelho segundo Mateus" (1964) com essa introdução: "À cara, feliz e familiar sombra de João XXIII”. Não era apenas uma dedicação. De fato, no filme de Pasolini sobre o Evangelho há um retorno às fontes, onde a força bruta da palavra evangélica se torna a verdadeira revolução.
E essa foi também a revolução de João: voltar ao Evangelho. A própria Igreja não era mais identificada com o "trono e o altar", mas com a "fonte pública" da aldeia onde todos podiam matar a sede.
Pasolini havia imaginado um papa com três P's: Petrus, Pastor, Poeta. Era João? Assim, ao vasculhar as Agendas do Papa João (editadas pelo Instituto de Ciências Religiosas de Bolonha) descobre-se que para ele a Paz era a substância de todas as coisas. Para evocar o Credo, era feito "da mesma substância" da Paz. Já aos vinte anos distingue o erro do errante.
Na Primeira Guerra Mundial, atende como capelão de hospital os jovens que morrem destroçados pela guerra. Vê a guerra num garoto que morre em seus braços e não no boletim dos generais. E quando colabora no salvamento de milhares de crianças destinadas aos campos de extermínio na Segunda Guerra Mundial, como diplomata na Turquia, já escreve de fato um capítulo da Pacem in terris. Roncalli sabia, como Paulo lembra aos Coríntios, que Deus escreve sua carta ao mundo não na pedra, mas gravando-a nos olhos e nos corações dos seres humanos.
A práxis da paz levou João a elaborar uma Teologia da paz, ou seja, com seu próprio modo de repensar o conceito de Deus não a partir da "maioria" de uma Igreja poderosa, mas da "minoria" de uma comunidade frágil como ele havia experimentado na Bulgária e na Turquia.
João havia feito da perda da onipotência (de acordo com o pensamento do misticismo judaico) uma maneira diferente de narrar Deus e o mundo. Esses são alguns indícios, talvez, para interpretar o "Mistério" do Papa João.
Um dos títulos mais sugestivos e acertados para entender o Papa João é aquele colocado pela filósofa judia H. Arendt ao seu famoso artigo para o jornal N.Y. Times: "Um cristão no trono de Pedro." É a própria filósofa judia que revela a sua gênese: “quem me propôs o título de forma simples e direta foi uma camareira romana que um dia me disse: 'Senhora, este papa era um verdadeiro cristão. Como foi possível? E como aconteceu de um verdadeiro cristão se sentar no trono de São Pedro? Não tinha talvez de ser nomeado bispo, arcebispo e cardeal, antes de finalmente ser eleito papa? Ninguém percebeu quem ele realmente era?’ Bem, a resposta para a última das suas três perguntas parece ser justamente 'não'".
O fato de ser uma camareira que deu inspiração a uma grande pensadora como Arendt é a prova de que os pequenos e simples haviam se tornado como "hermeneutas descalços" capaz de ler os "Sinais dos tempos".
A hermenêutica para entender João tinha que ser haurida não da lógica do poder, mas da escola da Sabedoria. E eram também aqueles chamados de "distantes" que eram tocados e emocionados pela lição de João. Meu conterrâneo veneziano Luigi Meneghello, em sua laicidade honesta e profunda, vê em João uma página antiga e inédita do Evangelho “elogiando a sua espontaneidade, a sua naturalidade camponesa, e a incrível novidade e modernidade do sentir”.
Com seu fino e afiado humor não renuncia de nos contar como em seu vilarejo natal, Malo, fosse chamado o papa: "João Loteria: dois empates e três vitórias em casa". Eu também lembro que quando criança havias discos que, como "contadores de histórias giratórios", contavam a história de João, o Bom. A vovó cantava aquelas músicas com sua linda voz, de modo que a história parecia se projetar de noite na parede, como em um cinema de periferia. Olmi em seu filme mostra uma criança nos ombros de seu pai, enquanto assiste maravilhados a passagem de uma procissão em sua pequena aldeia. Este é um dos segredos: deixar-se carregar nos ombros como uma criança. Nunca pensar que algum dia será um comandante militar ou um rei.
Loris Capovilla dizia: quando João morreu "vi morrer um menino de oitenta anos". "Uma história não está completa até que seja contada e cantada", escreveu Maria Zambrano. E essa história pode realmente ser considerada realizada? Ou depois de sessenta anos não deveríamos continuar a cantá-la? Turoldo o havia dito: “Pelo menos voltasse/para nos dar esperança! (...) o nosso coração era a sua casa”.
O que significa hoje cantar essa história em meio a uma guerra? Cantá-la diante de uma religião que se inspira no mesmo evangelho, mas que se quebra como um brinquedo e chega a vestir um uniforme ou outro, como soldado? Sua história não diz que não existe uma guerra justa? Que uma “guerra santa" é o contrário absoluto de Deus? Que a guerra é sempre o fracasso mais trágico da história?
Ernesto Balducci tinha razão: “quando Deus envia homens como o Papa João, é impossível para nós viver e pensar como Ele nunca tivesse vindo entre nós".
De volta ao meu espetáculo itinerante. Vejo os olhos maravilhados de quem via passar uma grande marionete do Papa João enquanto dançava com a Lua. Entre eles estava um emocionado Arturo Paoli que me escreveu sobre sua saudade e esperança ao ouvir essa história. Mas em momentos diferentes estavam também Capovilla, Giovanni Franzoni e Luigi Bettazzi, e até uma das 23 mulheres presentes ao Concílio, Maria de la Luz.
Eles realmente viveram aquela história e tinham os olhos de criança, olhos de poetas. Em João, como na Bíblia, beleza e bondade se beijam e se tornam um só. Luigi Santucci escreveu: “para mim, o Papa João foi bonito, e pareceu-me ficar ainda mais bonito a cada dia”. Passando por certas aldeias de montanha com o espetáculo itinerante, quando o Papa João dançava com a lua e um acordeão começava a tocar, as pessoas simples do lugar começavam a dançar.
Muitas vezes acontecia que fosse um casal de idosos quem se levantava primeiro.
A beleza do Papa João e seu sonho de paz continuam em mais uma volta de valsa.
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João da Paz. Artigo de Marco Campedelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU