23 Março 2023
“Francisco não tem tanques, mas, sim, “armas do espírito”. É assim que as denomina e propõe. São a diplomacia ativa, a geração de confiança mútua, o diálogo entre inimigos, a renúncia a qualquer forma de imperialismo, a capacidade de construir um mundo policêntrico, a visão da realidade a partir das populações e não das elites dos Estados, a prioridade dos problemas sociais e ecológicos frente aos político-militares. Certamente, é um profeta desarmado, mas as “armas do espírito” são mais eficazes do que as da guerra”, escreve Rafael Díaz-Salazar, em artigo publicado por Público, 22-03-2023. A tradução é do Cepat.
Em 1935, Stalin perguntou a Pierre Laval, ministro das Relações Exteriores da França, quantas divisões militares o Papa possuía. Talvez, hoje, muitos liberais e social-democratas anti-stalinistas, que tentam moldar com um pensamento único a opinião pública sobre a guerra na Ucrânia, ironicamente, façam a mesma pergunta diante das propostas pacifistas de Francisco.
Ele defende uma saída para este conflito que é diferente das defendidas por Putin, a OTAN, a União Europeia os Estados Unidos. Este Papa é um líder global e merece ser ouvido. Seu pensamento está exposto nos livros Contra a guerra e em Uma encíclica sobre a paz na Ucrânia, recentemente publicada em nosso país.
Francisco sempre condenou a invasão russa da Ucrânia. Os adjetivos textuais são claros: agressão violenta e repugnante, massacre insensato, guerra sacrílega. Utiliza constantemente o termo “martirizado povo ucraniano”. Defendeu a legítima defesa da Ucrânia contra a invasão da Rússia, mas há muito tempo propõe que “calem as armas” e se intensifique a ação diplomática pela paz.
A guerra na Ucrânia se situa no contexto das inúmeras guerras regionais que assolam o mundo. O belicismo predominante é fruto de uma geopolítica baseada na estratégia dos Estados mais poderosos em defender seus interesses. É uma velha lógica do poder entendido como dominação e avassalamento.
Essa geopolítica determina e transpassa o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Ao se colocar em uma macroestratégia pela hegemonia global, Francisco pensa que já estamos em uma guerra mundial. Em meados de setembro de 2022, disse com muita clareza: “É um erro pensar que esta é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia e ponto. Não: esta é uma guerra mundial”.
A escalada da guerra como solução para o conflito que a engendra é rejeitada. Não se sai de uma guerra com o seu prolongamento. Afirma claramente que “a verdadeira resposta não são mais armas, mais sanções. Fico envergonhado quando leio que um grupo de Estados está empenhado em destinar 2% do PIB para aquisição de armamentos como resposta ao que está acontecendo. Uma loucura!”.
O cessar-fogo e o início de um diálogo multilateral pela paz são impossíveis se a arte da diplomacia não for mais intensa que a arte da guerra. Francisco fala e age a partir do sofrimento do povo ucraniano e do povo russo, que deve estar acima dos interesses dos Estados que querem prolongar a guerra, sem priorizar o fim dessa dor popular. É interessante sua crítica ao belicismo, a partir do feminismo: “se o mundo fosse governado por mulheres, não existiriam tantas guerras”.
Esta abordagem pacifista racional o torna eficaz através de um discurso público para gerar uma cultura de paz e intensa ação diplomática. Está em contato com os dois chefes de governo e com os seus embaixadores no Vaticano, continua tentando visitar os dois países. A Secretaria de Estado propôs, no último mês de dezembro, uma Conferência Europeia de Paz, em uma tentativa de reativar o espírito de Helsinki, e a Pontifícia Academia de Ciências Sociais está trabalhando com um grupo de especialistas internacionais em propostas concretas para uma solução pacífica do conflito.
Além disso, há visitas e encontros com as partes opostas para gerar condições de confiança mútua. Não se improvisa o cessar-fogo. É difícil apoiar a Ucrânia e manter canais de diálogo com a Rússia, mas o Papa considera que este grande país precisa encontrar seu lugar em um mundo pacificado.
É muito interessante constatar que Francisco vê a guerra na Ucrânia a partir de sua ancoragem nos problemas da África, Ásia e América Latina. Sua rejeição absoluta ao prolongamento militar desta guerra também nasce do fato de que ela está empobrecendo dramaticamente os povos do Sul global e impede que se priorize os problemas da fome, das desigualdades internacionais e da destruição ambiental.
Este esquecimento das massas empobrecidas pelas elites políticas, econômicas e militares que querem prolongar a guerra está gerando uma escalada bélica que pode levar a uma catástrofe nuclear. Os tambores da guerra soam até o fim, quando Biden declara que “a Ucrânia nunca será uma vitória para a Rússia” e quando Putin afirma que nada interromperá sua vitória final e suspende os acordos de controle nuclear.
Tal situação radicaliza seu discurso pacifista racional. Por isso, no livro Uma encíclica sobre a paz na Ucrânia, recupera e aplica as teses de relevantes cientistas expostas no Manifesto Russell-Einstein: “Temos que aprender a nos perguntar não sobre quais medidas devem ser tomadas para que o grupo que preferimos obtenha a vitória militar, mas, ao contrário, a respeito de quais medidas devem ser tomadas para prevenir ou deter a conflagração militar”.
Considero que, além da resistência à intolerável invasão pela Rússia e sua guerra cruel, no território ucraniano, está sendo travada outra guerra pela hegemonia mundial dos Estados Unidos, que tem como pano de fundo sua disputa com a China. Isto também é intolerável.
A estratégia de prolongar a guerra para alcançar um ponto de equilíbrio de forças e, então, estabelecer acordos de paz implica, inevitavelmente, construir uma gigantesca pirâmide de sacrifícios e mortes da população ucraniana. É um vergonhoso sadismo bélico vinculado a um cálculo político-militar incerto.
É preciso ir preparando um cessar-fogo, a curto prazo, para uma resolução pacífica do conflito que deve levar em conta os 10 pontos estabelecidos por Zelenski, com o consentimento da União Europeia e dos Estados Unidos, e os que sejam levantados por Putin. Já sabemos que, de entrada, são inconciliáveis. Por isso, precisamos urgentemente de negociações e não de uma escalada militar.
Para que cheguem a um bom resultado, é imprescindível a mediação de um grupo de Estados e instituições internacionais formado por China, Turquia, Brasil, Índia, África do Sul, entre outros. A União Europeia e outras associações interestatais devem intervir.
Do meu ponto de vista, a perspectiva final é criar uma nova arquitetura de governança mundial que, mudando o marco atual da ONU, se baseie no policentrismo cooperativo, renuncie a hegemonismos imperialistas e acabe com o comércio de armamentos que alimenta as guerras existentes. O central e mais importante é colocar todas as energias em um programa mundial centrado nos problemas globais que mais geram sofrimento para os povos.
Não podemos tolerar que a gravíssima situação social e ecológica que o nosso mundo atravessa seja substituída pelo confronto armado. A grande maioria do mundo que vive no Sul global exige outra lógica internacional e, por isso, não apoia a continuidade do belicismo imperante e o imenso gasto militar que isto acarreta.
O problema desta guerra pode se tornar uma oportunidade para uma nova geopolítica colaborativa. É imprescindível uma nova relação entre Estados Unidos e China. A voz dos cidadãos tem que ser ouvida, mas para isso é preciso se mobilizar pela paz como se está fazendo na Alemanha, na Itália e muito pouco na Espanha.
Francisco não tem tanques, mas, sim, “armas do espírito”. É assim que as denomina e propõe. São a diplomacia ativa, a geração de confiança mútua, o diálogo entre inimigos, a renúncia a qualquer forma de imperialismo, a capacidade de construir um mundo policêntrico, a visão da realidade a partir das populações e não das elites dos Estados, a prioridade dos problemas sociais e ecológicos frente aos político-militares. Certamente, é um profeta desarmado, mas as “armas do espírito” são mais eficazes do que as da guerra.
Penso que as estratégias de Putin e da OTAN são parecidas com as imagens do filme Irmãos Marx no Oeste, quando vão destruindo a madeira dos vagões para alimentar a máquina de um trem que chegará à estação totalmente destruído. É nesse rumo que caminhamos. Hoje, são fornecidos tanques à Ucrânia, amanhã, aviões de combate e, inevitavelmente, será solicitado e concedida a entrada de tropas da OTAN em território ucraniano.
O envio de aviões de guerra a esse país, pela Polônia e Eslováquia - membros desta organização militar -, dão fundamento ao que acabo de afirmar. De fato, é plausível que a Ucrânia possa vencer a Rússia sem a intervenção dos exércitos ocidentais em combate direto? Estamos escalando para o precipício da Terceira Guerra Mundial. Francisco aponta um caminho diferente que merece ser conhecido e percorrido.
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Quantos tanques o Papa possui para a paz na Ucrânia? Artigo de Rafael Díaz-Salazar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU