A grande guerra contemporânea e a diplomacia vaticana. Entrevista com Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé

Mapa-Mundi da Secretaria de Estado no Vaticano | Foto: Vatican News

12 Agosto 2022

 

“O Evangelho é anúncio de paz, promessa e dom de paz. Todas as suas páginas estão cheias disso. A Igreja segue o exemplo do seu Senhor: crê na paz, trabalha pela paz, luta pela paz, testemunha a paz e tenta construí-la. Nesse sentido, ela é pacifista. O desarmamento é a única resposta adequada e resolutiva.”

 

Essa é a opinião do cardeal italiano Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, em entrevista concedida a Guglielmo Gallone e Lucio Caracciolo, e publicada por Limes, 09-08-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

O que distingue a diplomacia vaticana das outras?

 

A diplomacia da Santa Sé não está ligada a um Estado, mas a uma realidade de direito internacional – a Santa Sé, justamente – que não tem interesses políticos, econômicos, militares etc. Ela se coloca ao serviço do bispo de Roma, que é o pastor da Igreja universal. Portanto, acima de tudo, ela tem uma função eclesial, pois é um dos instrumentos de comunhão entre o papa e os bispos, e coopera para garantir a liberdade das Igrejas locais em relação às autoridades civis. Ela também se caracteriza pelo compromisso de proteger a dignidade e os direitos fundamentais de cada ser humano, de defender os mais fracos e os últimos da terra, de agir em favor da vida, em todas as suas fases, de promover a reconciliação e a paz por meio do diálogo, da prevenção e da resolução dos conflitos, de apoiar o desenvolvimento integral, de difundir a fraternidade universal. Nesse nível, ela compartilha muitas das finalidades da diplomacia civil. Ela continua acreditando na importância das organizações internacionais, principalmente a ONU, e insiste na ideia e no método do multilateralismo.

 

Cardeal Parolin (Foto: Vatican News)

 

A geopolítica faz parte da sua formação?

 

O conhecimento da realidade geopolítica é condição indispensável para exercer a profissão diplomática do modo mais eficaz possível. Isso também vale para a diplomacia da Santa Sé. É necessário mergulhar na história antiga e recente, e na cultura das realidades em que se atua, ter bem em mente as suas características, acompanhar os seus desdobramentos, aprofundar as dinâmicas das relações internacionais, tecer com paciência uma trama de relações abrangentes, nunca fechando a porta ao diálogo. Tudo isso não com a atitude de observadores frios e distantes, mas com um sentimento de interesse e de participação nos acontecimentos felizes e tristes de cada país e de toda a nossa humanidade, e eu não encontro uma expressão melhor para definir isso senão “amor”. Como dizia São Paulo VI, nós trazemos no coração o ser humano, todo o ser humano, todos os seres humanos. E, com aquele toque de humor que vem à tona na famosa frase do cardeal Domenico Tardini, secretário de Estado de João XXIII, a quem lhe perguntava se a diplomacia da Santa Sé era a “primeira do mundo”, com a sua ironia toda do Trastevere, ele respondia: “Imaginemos a segunda...”.

 

O senhor tem às suas costas uma longa atividade diplomática: o que o levou a esse compromisso?

 

Não posso responder a essa pergunta senão remetendo aos misteriosos desígnios que Deus tem para a vida de cada um de nós. De fato, depois da minha ordenação sacerdotal e de alguns anos de ministério na paróquia, o bispo me enviou para Roma para me especializar em direito canônico, com a intenção, dele e minha, de voltar a trabalhar na diocese, mas ele recebeu de Roma o pedido de me colocar à disposição da Santa Sé para o serviço diplomático. Com o seu consentimento, eu aceitei... E eis-me ainda aqui, depois de tantos anos! No entanto, a convicção de fundo permaneceu intacta: que a minha vocação é ser e agir como padre. Eu vivi o compromisso da diplomacia eclesiástica como uma efetivação particular dessa vocação; uma efetivação não procurada, mas acolhida como indicação da Providência lida à luz do discernimento da Igreja. Agradeço a Deus que, nas várias situações em que me encontrei, me concedeu a graça, apesar das fraquezas e dos limites, de poder acompanhar a missão diplomática com o testemunho sacerdotal.

 

A Igreja Católica é universal por autodefinição. Quão universal é a sua diplomacia?

 

Ela tenta ser universal e acredito que seja. Acima de tudo, pela composição do seu corpo diplomático: os representantes pontifícios provêm das Igrejas locais de todo o mundo. Essa é uma peculiaridade no que diz respeito às diplomacias dos Estados, cujos membros pertencem, todos, por nascimento ou nacionalidade, ao país que os envia. Mas obviamente a proveniência não basta para atestar a universalidade. Por isso, quem se prepara para servir ao papa na diplomacia é chamado a assumir um olhar universal, a “respirar” – eu diria – no ritmo da universalidade. A formação específica dada em Roma (na Pontifícia Academia Eclesiástica), centro da catolicidade, contribui para esse propósito.

 

 

Nos últimos tempos, parece que o papel das Igrejas católicas “nacionais” tende a pôr em discussão o caráter universal da Igreja de Roma. Alguns propõem até uma Santa Sé não mais vinculada a Roma, mas itinerante em sedes geograficamente diferentes. É possível?

 

A presença da Santa Sé em Roma está ligada à figura do apóstolo Pedro, que em Roma pregou o Evangelho e sofreu o martírio. O papa é o sucessor de São Pedro na cátedra romana e se torna papa como bispo de Roma. É verdade que, em determinados períodos históricos, e também por um longo tempo, o papa viveu em outros lugares (basta pensar no período de Avignon), e a situação poderia se repetir no caso de graves impedimentos. Mas eu excluo a hipótese de princípio de uma Santa Sé não mais vinculada a Roma e itinerante em sedes geograficamente diferentes. Também não existem Igrejas católicas “nacionais”. Nesse sentido, corretamente, não se fala da Igreja “da” França, da Espanha, do Sudão do Sul, do Vietnã, mas da Igreja “na” França, na Espanha etc. Ou seja, é a única Igreja Católica que se enraíza nas diversas realidades geográficas e assume as suas riquezas. Portanto, é correto usar a expressão Igrejas “locais”.

 

Em nível prático, é preciso se precaver contra o perigo do nacionalismo, entendido como a prevalência da identidade, do pertencimento e dos sentimentos nacionais – que por si só são valores positivos e um recurso – em detrimento da abertura católica, ou seja, universal. São Paulo, na Carta aos Gálatas, escreve: “Não há judeu nem grego; não há escravo ou livre; não há homem nem mulher, porque todos vocês são um em Cristo Jesus.” Depois, há uma fraternidade ainda mais extensa, que provém da natureza humana comum, como lembrou o Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti. Voltando ao tema das Igrejas “nacionais”, outra coisa é a descentralização, isto é, a valorização das competências das Igrejas locais e das Conferências Episcopais. A Igreja Católica, a partir sobretudo do Concílio Ecumênico Vaticano II, trouxe à tona a colegialidade episcopal. O Papa Francisco sublinhou o conceito de sinodalidadecolegialidade e sinodalidade, que sempre devem ser conectados e combinados com o primado do Romano Pontífice.

 

Qual a importância da origem nacional do papa na visão geopolítica da Santa Sé? Um exemplo: nos anos 1980, se o papa fosse argentino e se hoje fosse polonês, o que teria mudado ou mudaria?

 

Não podemos hipotetizar o que teria acontecido, porque – como sabemos – a história não se faz com “e se”. É natural, entretanto, que as origens, a formação, as experiências e a história pessoal influenciem no exercício do ministério de um papa, mas, como cabeça visível da Igreja universal, ele é o pastor de todos e para todos. Sabemos bem, no entanto, o que foi o conclave de outubro de 1978 e a chegada ao sólio de Pedro de São João Paulo II, um papa eslavo, que vinha do outro lado da Cortina de Ferro, de um país submetido ao controle soviético. Ele deu voz à “Igreja do silêncio”, foi paladino da liberdade religiosa, apoiou o sindicato do Solidarność. Ele estava convencido de que o comunismo do Leste Europeu iria implodir, razão pela qual nunca se considerou o artífice da sua queda, mas certamente desempenhou um papel fundamental ao permitir que essa passagem epocal ocorresse sem muito derramamento de sangue. O mesmo teria ocorrido se o papa fosse outro? É difícil dizer. No entanto, creio que, olhando para a história dos últimos pontificados, é possível entrever em contraluz elementos providenciais, isto é, que cada um dos sucessores de Pedro foi um dom para a Igreja e para o mundo.

 

O papa dirigiu repetidamente apelos sinceros de paz a russos e ucranianos. Sem resultado ou, melhor, sem resposta. Por quê?

 

A voz do papa, muitas vezes, é “vox clamantis in deserto” (“uma voz que clama no deserto”). É voz profética, de profecia clarividente. É como uma semente lançada, que precisa de um terreno fértil para dar frutos. Se os principais atores do conflito não levarem em consideração as suas palavras, infelizmente nada acontece, não se alcança o fim dos combates. Isso ocorreu em 1917, com a famosa “Nota de paz” de Bento XV durante o “inútil massacre” da Primeira Guerra Mundial, ignorada pelas potências beligerantes da época. Isso se repetiu com os apelos de Pio XII, que fez de tudo para evitar a imensa tragédia da Segunda Guerra Mundial. Pensemos ainda, mais perto de nós, no sincero pedido de São João Paulo II, que em 2003 suplicou para que não atacassem o Iraque.

 

Ainda hoje, no trágico caso ucraniano, não parece haver neste momento a disponibilidade para entabular verdadeiras negociações de paz e para aceitar a oferta de uma mediação super partes. Como é evidente, não é suficiente que uma das partes proponha isso ou levante essa hipótese de modo unilateral, mas é imprescindível que ambas expressem a sua vontade nesse sentido. Mais uma vez... vox clamantis in deserto. Mas as palavras do papa continuam sendo um testemunho do mais alto valor, que incide em muitas consciências, tornando as pessoas mais conscientes de que a paz e a guerra começam nos nossos corações e de que todos somos chamados a dar a nossa contribuição para promover a primeira e evitar a segunda.

 

 

O Papa Francisco logo denunciou a “guerra mundial em pedaços” em andamento. Por que essa sua profecia foi subestimada? E em que sentido a agressão russa contra a Ucrânia pode marcar um salto negativo rumo à junção das peças em um conflito mundial propriamente dito?

 

A guerra na Ucrânia nos afeta por diversos motivos, sobretudo porque é um conflito no coração da Europa, entre nações cristãs, iniciado por um país que possui bombas nucleares, com a possibilidade concreta de que a situação saia do controle. Vocês têm razão, então, quando assinalam a possibilidade de um salto negativo rumo à junção das peças em um conflito mundial propriamente dito. Acredito que nós ainda não somos capazes de prever ou calcular as consequências do que está acontecendo. Milhares de mortos, cidades destruídas, milhões de desalojados, o ambiente natural devastado, o risco de fome devido à falta de trigo em tantas partes do mundo, a crise energética...

 

Como é possível que não reconheçamos que a única resposta possível, o único caminho viável, a única perspectiva viável é a de parar as armas e promover uma paz justa e duradoura? Quanto à perspicaz observação do Papa Francisco sobre a terceira guerra mundial em pedaços e o acréscimo da junção desses pedaços, gostaria de acrescentar que o papa e a Santa Sé sempre demonstraram uma grande atenção às muitas guerras esquecidas, que, estando longe de nós, nos preocupam menos ou, no máximo, saem mais depressa dos holofotes da grande mídia internacional. Valeria a pena reler os textos das mensagens Urbi et Orbi do papa e os seus discursos ao corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé.

 

 

O Papa Francisco não é o “capelão do Ocidente”, como alguns de seus antecessores poderiam parecer. É uma escolha ligada à sua biografia ou uma virada profunda na visão de mundo da Igreja?

 

Você disse bem: “como poderiam parecer”, porque não me parece que isso realmente tenha ocorrido. Lembro-me, por exemplo, da posição expressada por Pio XII sobre a Guerra na Coreia, em 1950, e a sua recusa em ser de algum modo “alistado” pelo presidente dos Estados Unidos Harry Truman. Lembro-me da mão estendida ao Islã por São João Paulo II, que recusou, com todas as forças que ainda tinha, a ideia do “choque de civilizações” após os atentados do 11 de setembro de 2001. Não esqueçamos o seu gesto de reunir os líderes das religiões mundiais em Assis para promover a paz e remover qualquer justificativa ao abuso do nome de Deus para fins de violência e de terrorismo. Propus apenas dois exemplos, mas haveria muitos outros úteis para demonstrar que o clichê de “capelão do Ocidente” não se adequa ao pastor da Igreja universal, apesar das tentativas de arrastá-lo para um lado ou para o outro.

 

O Papa Francisco, que os cardeais chamaram ao sólio de Pedro há nove anos, indo buscá-lo “quase no fim do mundo”, parece ainda menos homologável com o clichê acima. Acredito que a universalidade e a atenção e a sensibilidade particulares para as populações dos países mais pobres, assim como uma Igreja menos eurocêntrica e um olhar multilateral sobre os problemas internacionais fazem parte do DNA da Igreja Católica. E se inscrevem em um processo iniciado e depois levado adiante nos pontificados anteriores. Todo papa, pelo menos desde Pio XII, deu um passo a mais nessa direção.

 

O senhor foi o protagonista da negociação com a China de um acordo que ainda é secreto. Do que depende o seu sigilo e que avaliação pode ser feita hoje sobre os seus resultados?

 

O diálogo entre a Santa Sé e a República Popular da China, iniciado pela vontade de São João Paulo II e continuado durante os pontificados de Bento XVI e de Francisco, levou em 2018 à assinatura do acordo provisório sobre a nomeação de bispos na China. Precisamente a característica da provisoriedade aconselhou as partes a não o tornar público, à espera de verificar o seu funcionamento in loco e decidir a esse respeito. O objetivo do acordo era obter que todos os bispos da China estivessem em comunhão com o sucessor de Pedro e que fosse assegurada a essencial unidade das comunidades eclesiais, tanto internamente quanto entre si, sob a orientação de prelados dignos e idôneos, plenamente chineses, mas também plenamente católicos. O acordo prevê que a sua nomeação siga procedimentos particulares, que decorrem da história recente daquela cristandade, mas que não omitam os elementos fundamentais e irrenunciáveis da doutrina católica. Se não fosse assim, não haveria mais a Igreja Católica na China, mas outra coisa!

 

A Igreja reivindica a justa liberdade na nomeação dos seus bispos, preocupada que sejam autênticos pastores segundo o Coração de Cristo e não respondam a outros critérios meramente humanos, mas também não deve escandalizar o fato de que, em determinadas situações, ela também aceite ir ao encontro de exigências particulares, como por exemplo alguns pedidos expressados pelas autoridades políticas. Quanto à avaliação dos resultados do acordo, parece-me que posso dizer que houve avanços, mas que nem todos os obstáculos e as dificuldades foram superados, e, portanto, ainda há um caminho a percorrer para a sua boa aplicação e também, por meio de um diálogo sincero, para o seu aperfeiçoamento.

 

Kiev ou Moscou: qual destino tem prioridade na agenda do Santo Padre e por quê?

 

Como o próprio Santo Padre explicou publicamente, o seu maior desejo e, portanto, a sua prioridade são que, por meio das suas viagens, seja possível alcançar um benefício concreto. Nessa perspectiva, ele disse que quer ir a Kiev para levar conforto e esperança às populações afetadas pela guerra. Do mesmo modo, ele anunciou a sua disponibilidade de viajar também para Moscou, na presença de condições que sejam verdadeiramente úteis para a paz. Acredito que, no coração do papa, estão as vítimas da guerra e de todos os conflitos esquecidos. Os mortos, acima de tudo, depois os seus familiares, aqueles que perderam tudo, aqueles que tiveram que escapar. O Papa Francisco quis demonstrar concretamente essa proximidade com as viagens dos cardeais Konrad Krajewski e Michael Czerny, e com a missão na Ucrânia do secretário para as Relações com os Estados e as Organizações Internacionais, o arcebispo Paul R. Gallagher.

 

O Papa Francisco se encontrou com Vladimir Putin três vezes, em 2013, 2015 e 2019. Qual é a relação dele com o presidente russo?

 

Desde os primeiros meses de pontificado, o Papa Francisco se dirigiu ao presidente russo a propósito do conflito na Síria. Os encontros posteriores foram cordiais e permitiram encontrar pontos de convergência. Desde fevereiro passado, os contatos têm ocorrido pelos canais diplomáticos, não mais diretamente. Mas gostaria de recordar aqui o gesto feito pelo papa no dia seguinte ao início das hostilidades, quando, embora já com dores no joelho, quis ir pessoalmente à Embaixada da Federação Russa junto à Santa Sé para suplicar que o presidente Putin interrompesse a agressão contra a Ucrânia.

 

 

Nos Estados Unidos e em outros países, frequentemente se acusa o papa de ser pró-Rússia. Às vezes, com tons duros. O que o senhor acha?

 

Confesso que essa simplificação me assusta um pouco. O papa é pró-Rússia porque invoca a paz? O papa é pró-Rússia porque condena a corrida ao rearmamento e o uso de enormes quantias de dinheiro para a aquisição de armas novas e cada vez mais poderosas, em vez de utilizar os recursos disponíveis para a luta contra a fome e a sede no mundo, a saúde, o bem-estar, a educação, a transição ecológica? O papa é pró-Rússia porque convida a refletir sobre o que levou a esses inquietantes e perigosos desdobramentos, lembrando que uma convivência baseada nas alianças militares e nos interesses econômicos é uma convivência de pés de barro? O papa é pró-Rússia porque pede para que se aplique o “esquema de paz”, em vez de perpetuar o “esquema de guerra”? Não se pode simplificar a realidade a tal ponto!

 

O Papa Francisco condenou a agressão russa à Ucrânia desde o primeiro instante, com palavras inequívocas, nunca colocou o agressor e o agredido no mesmo plano, nem foi ou pareceu equidistante. Ele foi, por assim dizer, “equipróximo”, isto é, próximo de quem sofre as consequências nefastas dessa guerra, em primeiro lugar as vítimas civis, e depois os soldados e os seus familiares, incluindo as mães de tantos soldados russos jovens e ainda mais jovens, que não tiveram mais notícias dos seus filhos mortos durante os combates. Portanto, considero pouco generosas e até um pouco grosseiras certas críticas, ligadas talvez, para voltar ao que se dizia antes, à observação de que o papa não é o “capelão do Ocidente”.

 

 

A Igreja é pacifista? Dentro de quais limites ela aceita o recurso às armas?

 

O Evangelho é anúncio de paz, promessa e dom de paz. Todas as suas páginas estão cheias disso. Os anjos a invocam no momento do nascimento de Jesus em Belém. Ele mesmo, recém-ressuscitado, a deseja aos seus. A Igreja segue o exemplo do seu Senhor: crê na paz, trabalha pela paz, luta pela paz, testemunha a paz e tenta construí-la. Nesse sentido, ela é pacifista. Quanto ao recurso às armas, o Catecismo da Igreja Católica prevê a legítima defesa. Os povos têm o direito de se defender, quando atacados. Mas essa legítima defesa armada deve ser exercida dentro de certas condições que o mesmo Catecismo enumera: que todos os outros meios para pôr fim à agressão tenham se demonstrado inviáveis ou ineficazes; que haja razões de sucesso bem fundamentadas; que o uso das armas não provoque males e desordens mais graves do que aqueles a serem eliminados. Por fim, o Catecismo afirma que, na avaliação dessa problemática, o poder dos modernos meios de destruição desempenha um papel importante. Por essas razões, o Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti, afirma que não se pode mais pensar na guerra como uma solução, pois os riscos serão provavelmente sempre superiores à hipotética utilidade que lhe é atribuída. Ele conclui com o mesmo grito de São Paulo VI nas Nações Unidas, em 4 de outubro de 1965: “Nunca mais a guerra!”.

 

É justo armar a resistência ucraniana?

 

Eu responderia a essa pergunta remetendo aos princípios recém-expostos. As decisões concretas cabem aos governantes, como o Catecismo da Igreja Católica reconhece. Não se deve esquecer, no entanto, que o desarmamento é a única resposta adequada e resolutiva a tais problemáticas, como defende o magistério da Igreja. Releia-se, por exemplo, a encíclica Pacem in terris, de São João XXIII. Trata-se de um desarmamento geral e sujeito a controles eficazes. Nesse sentido, não me parece correto pedir ao agredido que renuncie às armas e não pedir isso, antes ainda, a quem o está atacando.

 

 

As potências parecem não conseguir mais se entender, enquanto antigas regras e hábitos diplomáticos são violados, e os tons polêmicos chegam até aos insultos sanguinários entre chefes de Estado. O que o senhor pensa sobre isso?

 

Penso que, como afirmou o Papa Francisco no Regina Coeli de 1º de maio passado, a escalada militar é cada vez mais acompanhada de uma escalada verbal. Obviamente, não estou colocando no mesmo plano as palavras e as armas, os insultos e as bombas. Mas, infelizmente, uma escalada prepara a outra. A guerra começa no coração do ser humano. Cada insulto sanguinário afasta a paz e torna qualquer negociação mais difícil. Não devemos ceder à lógica da demonização do adversário, do inimigo.

 

 

Em desacordo com o Patriarca Kirill, o Concílio da Igreja Ortodoxa Ucraniana afirmou a sua plena independência e autonomia do Patriarcado de Moscou. Como o senhor avalia esse cisma de fato e que repercussões ele pode ter na relação entre Roma, Moscou e Kiev?

 

Não sei se é apropriado falar de um “cisma”. Certamente, a guerra em curso, que envolve povos irmãos na fé cristã e que, em sua maioria, celebram a mesma liturgia, representa uma ferida profunda e sangrenta para o cristianismo oriental e para todos os cristãos. Também nesse caso, ainda é cedo para compreender as consequências do que está ocorrendo, mas certamente é mais chocante e escandaloso que sejam os cristãos, no coração da Europa, os protagonistas de tais acontecimentos trágicos.

 

O diálogo entre Roma e Moscou parece estar em um de seus pontos mais baixos. Confirma?

 

Trata-se de um diálogo difícil, que avança em pequenos passos e que também passa por fases de oscilação. Ele recebeu um impulso significativo do histórico encontro em Cuba, em 2016, entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill. Como se sabe, já se estava trabalhando em um segundo encontro, previsto para junho passado em Jerusalém, mas que depois foi suspenso. Ele não teria sido entendido, e o peso da guerra em curso o teria condicionado demais. O diálogo, no entanto, não foi interrompido.

 

Quais reflexos a ruptura entre ortodoxos ucranianos e russos poderá ter sobre os greco-católicos na Ucrânia?

 

É cedo para fazer previsões. Imagino que as Igrejas que estão na Ucrânia tomarão cada vez mais conscientes tanto das suas diversidades quanto daquilo que as une. Mas será preciso esperar pelos desdobramentos, especialmente aqueles relacionados às recentes decisões tomadas pelo Concílio da Igreja Ortodoxa Ucraniana.

 

Quais são as relações entre greco-católicos e católicos latinos na Ucrânia, e como a Igreja se move entre essas duas realidades?

 

A Igreja sempre considerou uma riqueza a pluralidade de ritos e de tradições litúrgicas, expressões da história e da cultura das diferentes populações e de uma fé que vai ao encontro da vida. Todas as Igrejas, tanto a latina quanto as orientais, contribuem, portanto, com a pluriforme unidade e a harmonia da catolicidade. Na Ucrânia, as Igrejas latina e greco-católica são, ambas, muito dinâmicas e, embora se refiram a componentes culturais e a realidades sociais parcialmente diferentes, respeitam e cultivam a identidade do povo ucraniano. O que se espera é que a cooperação entre elas também cresça cada vez mais, em benefício do único povo de Deus. Imagino que a triste experiência que estão vivendo juntas contribuirá para fortalecer os vínculos de solidariedade entre elas e também com as outras Igrejas presentes no país. O fato de sofrer juntos normalmente fortalece os sentimentos de amizade.

 

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