"A proposta mais criativa e orgânica da diplomacia pontifícia em prol da paz na Europa é a de uma nova conferência de Helsinque", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 08-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sobre o tema da paz, do desarmamento nuclear, da redução do comércio de armas, da possível e perigosa conexão de dezenas de guerras ativas ou adormecidas, da urgência de bloquear o confronto Rússia-Ucrânia e da crescente tensão entre China e EUA, o Papa Francisco parece numa grande solidão.
Como comentou Marco Politi: “É uma situação jamais experimentada pela diplomacia vaticana. Nas chancelarias europeias, a (sua) voz é respeitada, mas marginalizada, silenciada”. Nem Putin, nem Biden, nem Xi Jinping, nem Zelensky pediram sua intervenção. Ao contrário do que aconteceu na crise de Cuba (1962), no tratado de Beagle (entre Argentina e Peru em 1979), na reabertura das missões diplomáticas entre os EUA e Cuba (2015) ou em outras situações como a clara oposição de João Paulo II à a guerra do Golfo em 2003.
O Ocidente político não o perdoa por ter mencionado o "latido" da OTAN nas fronteiras da Rússia e a constatação de que não pode ser "o capelão do Ocidente".
Mas tudo isso não significa uma menor conformidade com ele de amplas áreas das sociedades civis e do mundo católico, nem que qualquer vitória só seja tal se for inclusiva. Como escreveu Gaïdz Minassian: “O único sentido da vitória possível é aquele que a associa à paz, segundo o filósofo Brian Orend, que analisa dois modelos pós-bélicos. Por um lado, o modelo da retribuição, quando a vitória é obtida quando uma das duas partes consegue pela força o objetivo pré-estabelecido e a destruição do inimigo. A vitória é total porque o outro não existe mais, uma negação da alteridade que desemboca numa paz punitiva, como a de Versalhes em 1919. O segundo modelo é o da reabilitação, ou seja, que a vitória é obtida pelo vencedor que, além do sucesso militar, pensa em abrir caminho para negociações respeitosas com o vencido com o objetivo a subscrever uma paz duradoura e justa. A vitória é inclusiva e o outro é respeitado, como aconteceu em 1945” (Le Monde, 1° de março de 2023).
A proposta mais criativa e orgânica da diplomacia pontifícia em prol da paz na Europa é a de uma nova Conferência de Helsinque.
O Card. Pietro Parolin, secretário de Estado, formulou-a no encontro “A Europa e a guerra. Do espírito de Helsinque às perspectivas de paz” (Roma, 13 de dezembro de 2022).
Mais de quarenta anos após a assinatura do Ato de Helsinque (1975), que garantiu a distensão no continente e a mudança de regime em muitos países do Leste sem uma (inevitável) guerra civil, a hipótese diplomática retorna, segundo J. Allen, por três motivos. Em primeiro lugar, a possibilidade de chegar a um acordo com o "inimigo" (na época o sistema comunista); em segundo lugar, pela sintonia com a diplomacia italiana como sua aliada "mais natural" e, em terceiro lugar, por um modelo de diálogo que antecipa e remove possíveis confrontos futuros.
Assim se expressou o card. Parolin: “Mesmo que a experiência de Helsinki hoje pareça impossível de repetir em suas características e peculiaridades, tentemos recuperar o ‘espírito de Helsinki’, voltemos a reler a declaração sobre os princípios que norteiam as relações entre os estados participantes que foi inserida do Ato final, um decálogo que previa: igualdade soberana, respeito pelos direitos inerentes à soberania; não recurso à ameaça ou ao uso da força; inviolabilidade de fronteiras; integridade territorial dos Estados; resolução pacífica das controvérsias; não intervenção nos assuntos internos; respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, incluindo a liberdade de pensamento, consciência e religião ou crença; igualdade de direitos e autodeterminação dos povos; cooperação entre os Estados; cumprimento em boa-fé das obrigações de direito internacional”.
Uma plataforma sugestiva para a atual emergência bélica na Europa, mas também pelo esfacelamento dos dois blocos (Ocidente e Oriente) que na época caracterizavam todo o espectro da geopolítica mundial.
“A guerra na Ucrânia – escreveu M. Duclos no La Croix de 27 de fevereiro – tem um efeito performativo e agrava as fraturas entre a Europa Ocidental e a Europa de Leste e entre o Ocidente e o Sul global. A maioria dos países do Sul condenou a agressão russa contra a Ucrânia, mas um número significativo deles se absteve e nenhum seguiu os ocidentais em sua política de sanções contra a Rússia.
Potências médias como Índia, Turquia, Arábia Saudita e Irã ajudam indiretamente Putin. E é bastante generalizada a orientação de não se pronunciar sobre o que se avizinha como o embate do futuro: entre EUA e China. Não é por acaso que, na resolução da ONU pela retirada imediata, completa e incondicional da Rússia da Ucrânia, a maioria (141 votos) tenha deixado de fora uma grande parte da população mundial.
A guerra russa, repassada dos fracassados projetos dos serviços secretos aos generais do exército, ameaça tornar-se longa. O convite de Francisco para fazer todo o possível para acabar com as hostilidades caiu em ouvidos surdos. Assim como a oferta do Vaticano como possível ponto de encontro entre os contendores, rejeitada pelo Kremlin pela frase do pontífice, diplomaticamente infeliz, sobre os soldados chechenos e buriates enviados à linha de frente para serem massacrados.
Mas Parolin insiste: “Precisamos imaginar e construir um novo conceito de paz e de solidariedade internacional, lembrando-nos que muitos países e muitos povos pedem para serem ouvidos e representados. Precisamos implementar novas regras para as relações internacionais que hoje nos parecem - permitam-me a expressão - muito mais ‘líquidas’ e, portanto, inconsistentes do que no passado. Precisamos de coragem, de apostar na paz e não na inelutabilidade da guerra; no diálogo e na cooperação, e não nas ameaças e nas divisões. Precisamos de uma ‘desescalada’ militar e verbal, para reencontrar o rosto do outro, porque toda guerra - dizia o venerável Mons. Tonino Bello – encontra as suas raízes ‘no desaparecimento dos rostos’”.
Não parar a guerra significa enfraquecer os laços residuais do mundo globalizado, enfatizar as pretensões das potências de estado médias, ignorar a demanda por representatividade de muitos estados e alimentar o confronto EUA-China pela hegemonia.
Uma abordagem ao mesmo tempo "visionária", política e realista que se choca com a fragilidade da divisão no mundo cristão. Se a grande maioria das Igrejas está próxima de Francisco, não assim é na Ortodoxia Russa e Eslava. No eixo da avaliação da guerra, as duas polaridades podem ser identificadas no magistério de Francisco e de Kirill de Moscou.
Sobre a posição atual do papado, basta reler o n. 258 de Fratelli tutti que assim conclui: “Assim, já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Perante esta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível ‘guerra justa’”.
Afirmação que não invalida, mas sujeita à verificação - ainda não à desmentida - o conteúdo da doutrina tradicional estabelecida no Catecismo da Igreja Católica que recorda não só o direito à legítima defesa dos povos, mas também o dever dos poderes públicos em relação às obrigações necessárias à defesa nacional (CCC 2307-2317).
A dificuldade reiterada de esclarecer a posição do papa em relação à guerra para muitos ucranianos e numerosos observadores ocidentais não surge tanto da distância dos direitos quanto da "evidência" moral e evangélica de um declínio da legitimidade da guerra que também contrasta com os dados factuais. Uma espécie de antecipação do que "deverá" ser no futuro.
Pelo contrário, as repetidas palavras de Kirill em apoio à guerra na Ucrânia vão na direção oposta. Ele não apenas se recusa a honrar o magistério conciliar por ele assinado (Os fundamentos da concepção social, cap. 3, n. 8) sobre a rejeição da guerra de agressão, mas transforma a agressão em um conflito metafísico, místico e messiânico que confiaria ao povo russo a última defesa do cristianismo.
Criticado por todo o Concílio Ecumênico das Igrejas, por mais de 400 teólogos ortodoxos e por uma parte (embora menor) de seu clero, foi mais recentemente estigmatizado por Sergei Chapnin e pelo bispo Jean de Doubna. O primeiro foi um seu colaborador próximo e dirigia a revista do patriarcado. O segundo é o metropolita da Igreja Ortodoxa de tradição russa que, há alguns anos, transferiu sua Igreja do patriarcado de Constantinopla para o de Moscou.
Chapnin dirige-se aos bispos russos em carta aberta (5 de fevereiro): “'Dirijo-me a vós, porque me sinto exausto pela longa e atormentada espera de uma vossa sincera palavra pastoral, exausto pelo vosso infinito silêncio sobre as coisas mais importantes', sobre a guerra. A fidelidade incondicional pedida por Kirill e o clima sufocante da Igreja Ortodoxa Russa não deveriam impedir uma palavra explícita contra a guerra, defendida pelo patriarca com 'argumentos que contradizem flagrantemente o Evangelho e o ensinamento da Igreja'. 'O silêncio vergonhoso e catastrófico da maioria de vós durante a guerra da Rússia contra a Ucrânia representa uma mancha indelével em toda a Igreja Ortodoxa Russa'".
Em entrevista à Rádio Liberdade suíça (fevereiro de 2023) Mons. Jean de Doubna não tem medo de equiparar os crimes cometidos pelos russos com aqueles nazistas ocorridos na Segunda Guerra Mundial. “Penso que o Patriarca Kirill tenha cometido um grande erro estratégico, político e eclesial, tanto que no final acabou por se encontrar à margem das Igrejas cristãs”.
“'Nós nos curvamos diante dos sacrifícios (durante as perseguições comunistas); (diante da) santidade da Igreja surgida no período soviético; hoje essa santidade é destruída pelo conluio com o poder, tão próximo do soviético que matou milhões de pessoas'. Seu silêncio inicial foi intolerável e ainda mais suas justificativas posteriores. 'O contexto de servilismo incondicional é generalizado na Igreja Ortodoxa Russa. É amargo para mim constatar que uma parte significativa do clero internalizou essa tendência desastrosa e aqueles que se manifestaram contra a guerra foram imediatamente censurados'”.
De vez em quando as mídias confiam a mediadores improváveis os esforços de Francisco em prol da paz, como Leonid Sevastianov, presidente da União Mundial dos Velhos Crentes.
Mais consistente é a referência a um político polêmico como V. Orbán, defensor das razões de Putin na Europa e primeiro-ministro da Hungria, onde o papa irá em breve em visita.
As raízes robustas das escolhas de Roma estão no magistério sobre o tema da paz e da guerra e na escolha clara de uma diplomacia multilateral em um mundo que não pode ser obrigado a duas pertenças opostas.
A possibilidade de uma guerra nuclear iniciou a teologia expressa na Pacem in terris (1963) e na constituição conciliar Gaudium et spes (1965). Um magistério desenvolvido continuamente nas intervenções dos papas na ONU, nas mensagens para o dia da paz, nas numerosas cartas pastorais das últimas décadas, especialmente na década de 1980.
O apoio às instituições internacionais, encabeçadas pela ONU, e a escolha por uma diplomacia multilateral são frequentemente testemunhadas, especialmente no anual discurso ao corpo diplomático. Naquele de 2022, a orientação foi particularmente enfatizada. "A diplomacia multilateral atravessa há tempo uma crise de confiança, devida a uma reduzida credibilidade dos sistemas sociais, governamentais e intergovernamentais".
Uma queda de interesse que, ao contrário, precisa ser revertida. “A diplomacia multilateral é chamada… a ser verdadeiramente inclusiva, não apagando, mas valorizando as diversidades e as sensibilidades históricas que distinguem os vários povos. Desta forma, recuperará credibilidade e eficácia para enfrentar os próximos desafios, que exigem que a humanidade se una como uma grande família que, partindo de diferentes pontos de vista, deve saber encontrar soluções comuns para o bem de todos”.