Simplicidade, proximidade e ternura: marcas dos 10 anos de pontificado. Entrevista especial com Ceci Baptista Mariani

Para a teóloga, “Francisco não tem se esquivado, mas vai enfrentando cuidadosamente esses questionamentos que representam, muitas vezes, importantes provocações de difícil solução”

Foto: Vatican Media

Por: João Vitor Santos | 23 Março 2023

A professora Ceci Baptista Mariani usa três palavras para definir os dez anos de Jorge Mario Bergoglio à frente da Igreja que podem parecer sinônimas de estabilidade: simplicidade, proximidade e ternura. Mas, pelo contrário, tais posturas vêm desafiando Francisco que, como ela observa, tem perseverado no exercício de levar adiante o espírito do Concílio Vaticano II, apesar de toda resistência. “Francisco não tem se esquivado, mas vai enfrentando cuidadosamente esses questionamentos que representam, muitas vezes, importantes provocações de difícil solução”, observa, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Assim, pensando tanto nessa postura que o papa adota quanto nas imagens mais significativas do pontificado para ela, Ceci elabora: “simplicidade, proximidade e ternura, creio, representam os avanços. Para mim, estes gestos de Francisco significam esforços importantes de reação num mundo adoecido pelo individualismo cada vez mais intensificado pelo império do consumismo que ele está sempre a denunciar”.

No entanto, a Igreja é uma instituição complexa, e mesmo entre aqueles que não se aliam como oposição ao pontífice há quem lamente não haver mais avanços. “A Igreja é uma instituição milenar. Na aceleração em que vivemos, temos muitas vezes a expectativa de que as mudanças aconteçam em ritmo mais acelerado. Faltam-nos a paciência e o despojamento para acolher a atuação surpreendente de Deus no mundo. Francisco sabe que o discernimento é necessário ao posicionamento a ser tomado diante dos vários desafios”, contrapõe a teóloga. E, vendo o espaço para a mulher na Igreja de hoje, ela afirma que “são milênios de dominação patriarcal não só na Igreja, mas na história da humanidade. É certo, no entanto, que esse é um limite importante e é urgente que seja enfrentado e superado”.

Ceci Mariani (Foto: Reprodução)

Ceci Maria Costa Baptista Mariani é professora do PPG em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas e da Faculdade de Teologia. É bacharel e licenciada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora de Medianeira. Possui graduação e mestrado em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora de Assunção. É doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Com Breno Campos e Claudio de Oliveira Ribeiro, organizou o livro Rubem Alves e as contas de vidro: variações sobre teologia, mística, literatura e ciências (Loyola, 2020).

Confira a entrevista.

IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais os maiores limites?

Ceci M. C. Baptista Mariani – Falar dos dez anos de pontificado do Papa Francisco não é tarefa fácil. Muitas análises sobre o pontificado de Francisco foram publicadas, uma boa análise exigiria visitar um bom número de referências. A partir de minha experiência, posso dizer algumas coisas. Em primeiro lugar, digo que tenho notado muito interesse dos estudantes de Teologia pela atuação e pelo magistério de Francisco. Vários têm buscado fazer de seu pontificado tema de Trabalho de Conclusão de Curso ou de dissertação de mestrado.

Penso que Francisco é um papa admirável pelo que fala e como fala. Alguns de seus gestos adquirem grande força simbólica: muitos se lembram do estranhamento causado pelo sapato preto do papa, aparentemente bem “surrado”, que ele continuou a usar, mesmo depois de eleito, preferindo esse sapato ao sapato vermelho que tradicionalmente compõe a vestimenta papal.

É, também, memorável o abraço forte e o beijo de Francisco em Vinicio Riva, um homem desfigurado por tumores causados por neurofibromatose, durante uma audiência na Praça São Pedro. Foi notícia na mídia o fato de Francisco circular entre a multidão e distribuir beijos, abraços e apertos de mão. Sua atitude causou espanto até mesmo em Riva, que relatou como ficou emocionado com o encontro em uma entrevista.

O jeito simples de Francisco inspira ternura. Seus gestos testemunham “o prazer de ser povo”, experiência que faz parte, segundo a Evangelii gaudium, da evangelização aberta à ação do Espírito. Fiel a uma sensibilidade latino-americana que tem, desde Medellín, afirmado a opção pelos pobres, ele ensina: “Jesus [...] quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais e comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo” (EG, 270).

Simplicidade, proximidade e ternura, creio, representam os avanços. Para mim, estes gestos de Francisco significam esforços importantes de reação num mundo adoecido pelo individualismo cada vez mais intensificado pelo império do consumismo que ele está sempre a denunciar.

Limites e questionamentos

Difícil dizer quais os maiores limites de Francisco... Para Francisco, uma das exigências para o amadurecimento espiritual é o reconhecimento dos próprios limites (GE, 50). A contemporaneidade tem uma extensa pauta de costumes que estão constantemente questionando aquilo que, na tradição, foi se consolidando. Confiando no poder do discernimento contra a rigidez de posicionamentos apoiados em receitas que buscam repetir o passado, Francisco não tem se esquivado, mas vai enfrentando cuidadosamente esses questionamentos que representam, muitas vezes, importantes provocações de difícil solução. Isso pode ser considerado um limite para o exercício pastoral, a difícil relação com um mundo de relações complexas.

No âmbito das relações internas à Igreja, podemos destacar como limite, entre outros, o problema da participação feminina. Existem avaliações que entendem que os avanços da Igreja sob Francisco ainda são pequenos no apoio ao protagonismo feminino dentro da Igreja. Na verdade, isso é muito compreensível. São milênios de dominação patriarcal não só na Igreja, mas na história da humanidade. É certo, no entanto, que esse é um limite importante e é urgente que seja enfrentado e superado.

IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?

Ceci M. C. Baptista Mariani – Francisco, sendo o líder de uma comunidade de fé, é, sem dúvida, reconhecido como uma grande liderança mundial. O Papa Bento XVI começa um discurso redigido para ser proferido na Universidade de RomaLa Sapienza” (uma universidade fundada e administrada pela autoridade eclesiástica, mas que se tornou uma instituição laica) em 2018, indagando sobre o que pode e deve dizer um papa no encontro com a universidade da sua cidade. Esta indagação o leva a uma interessante reflexão sobre a natureza e a missão do papado.

O Papa, Bispo de Roma, ele argumenta, em virtude da sucessão apostólica, tem uma responsabilidade episcopal por toda a Igreja Católica. É, portanto, o Pastor, no sentido bíblico, “alguém que olha o conjunto de um ponto de observação mais elevado, cuidando do reto caminho e da coesão da totalidade”. Tem, neste sentido, uma missão voltada para o interior da comunidade.

No entanto, continua ele, como essa comunidade vive no mundo, suas condições, seu caminho, seu exemplo e sua palavra têm influência na comunidade humana como um todo. É notável, ele observa, “como as condições das religiões e como a situação da Igreja as suas crises e as suas renovações influem no conjunto da humanidade”. Concluindo o raciocínio, afirma: “Assim o Papa, precisamente como Pastor da sua comunidade, foi-se tornando cada vez mais também uma voz da razão ética da humanidade”.

Francisco é esse pastor que, responsável pelo cuidado com a Igreja Católica, tem sido essa voz da razão ética da humanidade. Tendo se tornado uma das grandes lideranças mundiais, podemos afirmar que sua voz tem sido ouvida e acolhida em nível global.

Leveza e alegria

Francisco, no entanto, à diferença de Bento XVI, assume esta missão com leveza de alegria. Lembro uma imagem de grande impacto na mídia que representa bem este seu jeito. Em janeiro de 2014, dia da Epifania, ele visitou um presépio vivo na paroquia romana de Santo Afonso de Ligório. Nesse dia, uma mulher que fazia parte dos outros 200 figurantes do elenco, representando uma pastora, colocou sobre os ombros do papa um cordeirinho. Aquele homem, que fora recentemente elevado à condição de Sumo Pontífice, deixou-se fotografar e recebeu aquele gesto com um grande sorriso.

Em minha avaliação, a alegria e o bom-humor fazem parte de seu estilo de exercer a pastoral, uma vez que estas são, para ele, características importantes da santidade no mundo atual. O santo, ele afirma na exortação apostólica Gaudete et exsultate, “sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança”. E, neste mesmo documento, retomando a Evangelii gaudium, ressalta que os momentos difíceis, os tempos de cruz, não destroem a alegria sobrenatural dos que são infinitamente amados.

Vejo que é com alegria e bom humor que ele enfrenta os grandes problemas globais. Não se coloca como juiz a julgar o mundo. Sem deixar de denunciar a alegria consumista e individualista cultivada pela sociedade de consumo, ele aposta na alegria da comunhão, que se partilha e se comunica, crendo que o amor fraterno “multiplica a nossa capacidade de alegria” (GE, 128). Procura parceiros, abre-se ao diálogo, escuta as vítimas...

IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?

Ceci M. C. Baptista Mariani – A Igreja é uma instituição milenar. Na aceleração em que vivemos, temos muitas vezes a expectativa de que as mudanças aconteçam em ritmo mais acelerado. Faltam-nos a paciência e o despojamento para acolher a atuação surpreendente de Deus no mundo. Francisco sabe que o discernimento é necessário ao posicionamento a ser tomado diante dos vários desafios que a vida em sociedade nos coloca, o que exige “educar-se na paciência de Deus e os seus tempos, que nunca são os nossos” (GE, 174). É difícil analisar as transformações da Igreja circunscritas aos 10 anos do pontificado de Francisco. Creio que a Igreja vem se transformando lentamente sob a referência do Concílio Vaticano II e que Francisco se situa neste espírito.

Vejo que o papa continua a trabalhar pelas transformações propostas pelo Concílio Vaticano II: uma maior consciência que a Revelação de Deus se dá na história, apoiada na acolhida crítica e, ao mesmo tempo, contemplativa da Escritura, e na Tradição viva da Igreja (a constituição dogmática Dei Verbum, sobre a Revelação Divina, reconhece que o avanço dos estudos bíblicos favorece uma melhor interpretação da Palavra de Deus); e uma eclesiologia de comunhão e participação que corresponda à sua vocação sinodal. Colaborando com este mesmo espírito, Francisco tem incentivado a Igreja a sair de si, a assumir uma atitude samaritana (FT, 53-86), a sujar-se na lama da estrada (EG, 45), a tomar consciência da necessidade de uma conversão ecológica (LS, 216), a fazer o exercício sinodal.

Apesar da tentação do fundamentalismo, do tradicionalismo, do relativismo, da sedução da sociedade do espetáculo, podemos ver que a Igreja, sob o pontificado de Francisco, não retrocedeu a um modelo piramidal apoiado na imagem de “sociedade perfeita”. O espírito do Concílio continua sendo a referência que orienta sua lenta transformação, agora mais atenta à crise ecológica e ao diálogo religioso.

 

Leia mais