14 Março 2023
"Se o Papa Francisco está confiante de que o processo sinodal em curso em todo o mundo possa mudar as mentalidades, também reconhece que são processos muito longos. Com muitas contradições e inversões de curso, como demonstraram esses dez anos." escreve Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, em artigo publicado por Domani em 13-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pastor amado pelo mundo, reformador frustrado da igreja, centralizador dos poderes de governo. Nesta década, as ambições revolucionárias de Bergoglio se chocaram duramente com a realidade. Sobre os abusos e a reforma financeira, a distância entre promessas e resultados é enorme, enquanto sobre meio ambiente a agenda social alcançou resultados apreciáveis. Os dez anos do Papa Francisco devem ser lidos em claro-escuro. Obviamente pela dificuldade de avaliar um pontificado que, embora certamente não foi concluído, é, no entanto, altamente controverso. Mas os tons de cinza que o caracterizam dependem também, se não principalmente, da distância que se percebe entre o programa de governo - não explicitamente declarado, mas bastante claro - e suas realizações: o primeiro muito ambicioso, as segundas até agora parciais e contraditórias. Deve-se acrescentar que o pontificado de Jorge Mario Bergoglio é geralmente exaltado ou difamado. A figura de Francisco - um papa muito midiático, que coleciona consensos principalmente entre os não católicos - raramente é analisada nos noticiários e nas publicações, que se multiplicaram nos últimos anos com pouco senso crítico.
A década da eleição ampliou essa tendência, como ressaltou Il Sismografo, o conceituado site especializado em informação religiosa dirigido por Luis Badilla. E como confirma a enxurrada de entrevistas organizadas também nos últimos dias pelo papa, que paradoxalmente chegou a repetir, no jornal argentino La Nación, que não gosta delas.
Para situar melhor esta década, para além do perfil complexo de Jorge Mario Bergoglio, vale lembrar que sua eleição não nasce de improviso. De fato, o arcebispo jesuíta de Buenos Aires começou a ser apontado como elegível ao papado já em 2002, apenas um ano após sua nomeação como cardeal, e já fora votado no conclave de 2005, que elegeu muito rapidamente Joseph Ratzinger.
Oito anos depois, na situação de evidente crise do governo central da Igreja, os cardeais – bastante surpresos e perplexos com a renúncia de Bento XVI – escolhem Bergoglio quase com a mesma rapidez.
Deve-se também ter em mente que em 2013 a sé vacante foi anormalmente longa. Aquela formal teve uma duração, como já acontece há mais de dois séculos, de algumas semanas, mas esse período - que é ocupado por debates, confrontos e reflexões sobre a sucessão papal - é de fato duplicado, estendendo-se por um mês inteiro, durante o qual se pensou muito concretamente na preparação da eleição.
Em 11 de fevereiro, a declaração de Bento XVI, que deixaria o pontificado às 20h do dia 20 de fevereiro, prorrogou canonicamente a sé vacante como tal porque acrescenta mais duas semanas.
Nas reuniões que antecederam o conclave, o arcebispo de Buenos Aires tomou a palavra no dia 9 de março. "A Igreja - diz - é chamada a sair de si mesma e ir em direção às periferias, não só aquelas geográficas, mas também aquelas existenciais: aquelas do mistério do pecado, da dor, da injustiça, aquelas da ignorância e da ausência de fé, aquelas do pensamento, aquelas de toda forma de miséria".
Afirmação programática, destinada a ser muito citada, que é reafirmada na conclusão, onde Bergoglio também traça o perfil do papa a ser eleito, ou seja, "um homem que, através da contemplação de Jesus Cristo e da adoração de Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si mesma para as periferias existenciais”.
Na noite de 13 de março, após pouco mais de um dia de votação, o resultado é uma surpresa para muitos. Sobretudo na Conferência Episcopal Italiana, cuja assessoria de imprensa tropeça num lamentável e embaraçoso infortúnio: os jornalistas credenciados recebem por e-mail - e obviamente espalham por toda parte - uma mensagem de congratulações ao novo papa, Jorge Mario Bergoglio que, no entanto, no texto que acompanha é identificado com o cardeal Angelo Scola, arcebispo de Milão, revelando assim expectativas generalizadas no aparato eclesiástico da península.
No entanto, o impacto do breve discurso de Francisco, que se apresenta como “buscado quase do fim do mundo”, é enorme. No entanto, as breves palavras podem ser lidas em paralelo com aquelas de João Paulo II, que em 1978 explicou ter vindo de um "país distante".
Comum a ambos é também a autodefinição, inclusive óbvia, de "Bispo de Roma", mas também o pensamento dirigido a Nossa Senhora. E os primeiros gestos do novo Papa tiveram também um imediato sucesso mediático: entre estes sobretudo a decisão, que ainda hoje é notícia, de não morar no "apartamento" do Palácio Apostólico, mas num andar da residência - periférica no minúsculo estado do Vaticano - de Santa Marta, que nos últimos anos se tornou quase sinônimo do papa argentino.
O Papa Francisco inaugura o seu pontificado a 19 de março, festa de São José, figura que lhe é muito querida e cujo símbolo, uma flor de nardo, se destaca no seu brasão episcopal sob o nome de Jesus e ao lado da estrela que indica Maria.
E a homilia - centrada no esposo da Virgem, que mal aparece nos Evangelhos e que o pontífice tradicionalmente apresenta como "cuidador" - é, de fato, um programa breve e sugestivo para o Papa de Roma e toda a Igreja.
“Cuidar de Jesus e de Maria, cuidar de toda a criação, cuidar de cada pessoa, especialmente as mais pobres, cuidar de nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma é chamado a realizar, mas ao qual todos somos chamados para fazer resplendecer a estrela da esperança” conclui Bergoglio.
Exausto e recolhido à sua querida residência de Castel Gandolfo, o seu predecessor Bento XVI não está presente na missa de abertura do pontificado, e só regressaria ao Vaticano algumas semanas depois, quando o "mosteiro" no coração dos jardins estaria pronto. Mas certamente a coabitação dos "dois papas" - como nos habituamos indevidamente (ou polemicamente) a dizer - marca os primeiros dez anos de Francisco, terminando apenas em 31 de dezembro último com a morte do "papa emérito", com quase noventa anos seis anos, uma morte obviamente não inesperada, mas certamente repentina.
A coexistência verdadeiramente sem precedentes, a pouco menos de um quilômetro um do outro, de duas figuras papais muito diferentes entre si – por origem, caráter, formação e visão de mundo – poderia revelar-se um problema para o pontificado de Bergoglio, inclusive pela imponente envergadura intelectual de Ratzinger, aliás um homem manso e verdadeiramente desapegado do poder.
No geral, porém, a convivência no Vaticano foi bastante tranquila, graças à lealdade e ao respeito básico que caracterizaram a relação entre o papa e seu antecessor e permitiram superar os percalços do caminho.
Esses foram quase sempre provocados, para além da objetiva diversidade de pontos de vista, pelos seus respetivos seguidores, mais papistas que os dois papas, por vezes com uma incurável tendência para o protagonismo e a bajulação.
Fortalecido pelas indicações que surgiram durante as reuniões anteriores ao conclave a que sempre se reporta, Francisco é, em todo caso, totalmente estranho ao pequeno mundo vaticano e assumiu vigorosamente a tarefa de modificá-lo. Desde a Idade Média, alvo de críticas mais do que fundamentadas, a Cúria Romana é marcada por uma inveterada autorreferencialidade e por estruturas que permanecem antiquadas, apesar das várias reformas.
E os ventos da mudança - que depois do Concílio Vaticano II sopraram com força, especialmente durante o pontificado verdadeiramente inovador de Montini, um profundo conhecedor da cúria e muito sensível ao mundo contemporâneo – em seguida se enfraqueceram.
De fato, tiveram pouco impacto nas estruturas curiais as personalidades muito diferentes entre si de Wojtyła, protagonista na cena mundial por mais de um quarto de século, e de Ratzinger, um intelectual de primeira ordem, apesar das transformações ligadas ao longo papado não mais italiano.
Os dois últimos predecessores de Francisco provaram ser de pouco interesse no governo e, sobre esse plano, até mesmo os resultados da década bergogliana mais que serem decisivos levantam questionamentos.
Principalmente parecem problemáticos o enfraquecimento da secretaria de Estado e a consequente centralização direta do poder nas mãos do papa.
Sintomático a esse respeito é o fato de que o pontífice - como era antes da reforma radical de Paulo VI - voltou a presidir diretamente a um organismo curial, o novo Dicastério para a Evangelização, que incorporou a antiga congregação da Propaganda fide, outrora tão poderosa (e rica) que o cardeal prefeito era conhecido como o "papa vermelho", agora um pouco desbotado com o título de "pró-prefeito".
As questões enfrentadas pelo papa sul-americano nesta década são muitas, mas permanecem em grande parte não resolvidas, em um cenário internacional que quase imediatamente Francisco define com eficácia como uma terceira guerra mundial "em pedaços".
Não consegue influir muito nisso, apesar do empenho habitual da diplomacia da Santa Sé e do ritmo das viagens internacionais, idêntico ao dos seus antecessores não italianos, ou seja, em média quatro por ano (quase a metade do total nas "periferias" europeias).
E críticas - pelas complicações políticas e religiosas que daí derivam - suscitaram reiteradamente as afirmações do Papa, no contexto aliás muito coloquial de entrevistas jornalísticas, sobretudo como aquelas sobre a guerra desencadeada pela invasão russa da Ucrânia, e como agora a contundente e inesperada condenação da ditadura na Nicarágua depois de muitos meses de silêncio.
Em vez disso, graças à clarividente visão mundial da encíclica Laudato si', publicada em 2015, foi plenamente alcançado o objetivo do pontífice de sensibilizar, muito além das fronteiras católicas, a opinião pública internacional sobre a questão do meio ambiente e das mudanças climáticas.
Trata-se, de fato, de uma encíclica social de alcance global: segundo o texto, são de fato os pobres os mais penalizados pelas transformações do clima e do meio ambiente muitas vezes induzidas pelo homem.
O documento não se limita à ecologia, olha para o homem e insere-se numa visão do mundo antiga, não por acaso partilhada pela sensibilidade de Bartolomeu, patriarca de Constantinopla, explicitamente citado no início do texto.
Já nos primeiros meses de seu pontificado, Francisco dedicou à frente interna a exortação apostólica Evangelii gaudium, um documento programático muito amplo. Mas alguns nós provaram ser mais prementes.
A intrincada realidade econômica e financeira do Vaticano, o trágico escândalo global dos abusos contra menores e religiosas, o papel dos leigos e em particular das mulheres dentro da Igreja, a relação entre Roma e as Igrejas locais - com questões abertas especialmente no Estados Unidos e na Alemanha – são, de fato, os quatro principais âmbitos onde o esforço do papa se concentrou.
Pode ser útil para se orientar na década bergogliana o importante livro recém-lançado na Argentina com o título El Pastor, de Francesca Ambrogetti e Sergio Rubín, autores em 2010 do igualmente importante El Jesuita (Papa Francisco, em português), traduzido para o italiano logo após a eleição.
Mas se o primeiro volume era um clássico livro de entrevistas que antecipava muitos temas do pontificado, esse segundo - elaborado longamente através de encontros "regulares" com Francisco, mas onde as verdadeiras novidades não são muitas - tece habilmente uma autorizada e bem conduzida história, às respostas do papa, que também escreveu um pequeno prólogo. Já em 2001, enquanto se acentuava o declínio físico de João Paulo II, aos 81 anos, o arcebispo de Buenos Aires havia descrito aos correspondentes estrangeiros o perfil do novo papa como o de um "pastor".
Bergoglio escreve que tentou sê-lo nos dez anos de seu pontificado, com o propósito "de ser fiel a Deus e à Igreja e útil aos católicos e a todos os homens de boa vontade". E isso confirmou na entrevista que acaba de ser publicada no La Nación ao responder à pergunta sobre como imagina a Igreja daqui a vinte anos: mais pastoral.
O livro é interessante por vários detalhes sobre a história pessoal e autorrepresentação de Bergoglio, a ponto de incluir até um questionário em que o papa responde, sem hesitação e com alegre ironia, à pergunta sobre seu nome preferido: “Jorge Mario.. . E eu seria egocêntrico?"
Para além de outros detalhes, El Pastor reconstrói, do ponto de vista do pontífice, sua luta para reordenar as intrincadas realidades econômicas e financeiras do Vaticano, sobre as quais pesa há décadas o peso da corrupção.
Muito criticado pela mídia internacional mais do que na Itália, o processo em andamento envolvendo o cardeal Becciu, até 2018 um dos colaboradores mais próximos do papa, é lido significativamente no contexto do enxugamento da secretaria de Estado e do processo de avaliação da Moneyval.
Ainda mais dramática é a tragédia dos abusos sexuais e de poder cometidos pelo clero contra menores e contra mulheres religiosas. Fundamentais, como o Papa Francisco repetidamente reconheceu, foram as medidas tomadas por Ratzinger - primeiro como cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e depois durante os oito anos de seu pontificado - e abertamente declarada é a disposição de Bergoglio de enfrentar esse escândalo.
Mas as revelações de crimes novos ou passados se sucedem quase diariamente e as afirmações do papa são contraditórias em casos como os dos bispos Gustavo Zanchetta, na Argentina, e Franco Mulakkal, na Índia, ou do jesuíta Marko Rupnik, artista internacionalmente conhecido.
No mundo, assim como no Vaticano e na Itália, o exemplo corajoso dos bispos franceses não foi apreciado unanimemente, para usar um eufemismo.
Um especialista do Dicastério para a Doutrina da Fé, Jordi Bertomeu, acaba de intervir sobre esse fenômeno e sobre a “luta de Francisco contra os abusos” com um longo estudo histórico e legislativo, publicado pela revista espanhola Vida Nueva. O sacerdote espanhol destaca, entre outras coisas, como a viagem do pontífice ao Chile em janeiro de 2018 foi um divisor de águas para aquela que a revista define como “a conversão pessoal de um papa”. Em seguida, o representante do ex-Santo Ofício – que investigou os abusos no Chile por conta de Bergoglio junto com o arcebispo maltês Scicluna – conclui admitindo que “a crise dos abusos na Igreja, longe de ser resolvida, é um desafio para nossa experiência de fé e a nossa proposta evangelizadora".
Por fim, permanecem abertas as frentes constituídas pela marginalização e minimização dos leigos, e em particular das mulheres, dentro da Igreja. Claro que há exceções, como a última na Eslovênia, onde os bispos nomearam uma freira salesiana, Marija Šimenc, como secretária geral da conferência episcopal. Mas são apenas exceções. E se o Papa Francisco está confiante de que o processo sinodal em curso em todo o mundo possa mudar as mentalidades, também reconhece que são processos muito longos. Com muitas contradições e inversões de curso, como demonstraram esses dez anos.
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Balanço provisório do pontificado. Os dez problemas não resolvidos do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU