12 Fevereiro 2023
A animada discussão sobre os limites que o governo ucraniano pretende definir em relação à Igreja Ortodoxa pró-russa, ou melhor, não autocéfala, chefiada pelo Metropolita Onúfrio, contrasta com a sintonia aparentemente isenta de tensões entre a Igreja Ortodoxa Russa e as forças políticas poder de Putin.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 10-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O contexto dialético de um país devastado pela agressão russa não encontra nenhum equivalente nos elevados hinos do patriarca Kirill ao novo czar russo. Denunciam-se os possíveis limites da liberdade religiosa na Ucrânia e se mantém o silêncio sobre a condição religiosa dos territórios ocupados (Crimeia e Donbass), bem como dentro da Rússia. Enquanto um novo ataque russo é anunciado e o perigo de uma expansão do conflito cresce.
O motivo da disputa são as disposições do governo sobre alguns expoentes da Igreja Ortodoxa Ucraniana de Onúfrio, as mais de 300 ações policiais contra mosteiros e dioceses daquela Igreja, a suspensão do contrato de uso das igrejas maiores de Lavra das Grutas em Kiev, a decisão de restringir as liberdades de alguns expoentes eclesiais (primeiro 14 hierarcas e 33 padres, depois, em 25 de janeiro, mais 22 eclesiásticos, russos e ucranianos).
Mas, sobretudo, estão em causa os sete projetos de lei (especialmente estão em exame quatro que alteram a lei sobe a liberdade religiosa) que serão em breve discutidos no parlamento do país.
Uma comissão de especialistas, nomeados pelo governo, entregou em 1º de fevereiro um relatório afirmando que ainda existe "a conexão eclesiástico-canônica entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e a Igreja Ortodoxa Russa".
Nos novos estatutos, aprovados em 27 de maio de 2022, não estaria claro o rompimento do vínculo com Moscou, não emergiria uma real independência dela e não haveria sinais de uma autocefalia.
Na opinião dos especialistas, não seria suficiente a condenação de Onúfrio à invasão russa, à mudança dos estatutos e à decisão de consagrar o sagrado crisma em Kiev (sem recebê-lo de Moscou) para garantir uma autonomia real à Igreja Ortodoxa não autocéfala e demonstrar a falta de fundamento das suspeitas de colaboracionismo com o invasor, verificados com as citadas operações policiais.
O sínodo da Igreja autocéfala, que se refere ao Metropolita Epifânio, apoia a posição do governo e o exorta a “continuar seu trabalho visando proteger a segurança nacional no âmbito religioso”. Considera injustificadas as acusações de perseguição por parte da Igreja de Onúfrio, surpreendentemente omissa sobre as violações de direitos nos territórios ocupados pelos russos.
O arcebispo maior dos ucranianos, principal expoente da comunidade greco-católica no país, Mons. Svjatoslav Ševčuk, em entrevista ao Ukrainska Pravda (19 de janeiro), criticou os projetos de lei que visam deslegitimar a Igreja Ortodoxa não autocéfala ou pró-russa. O pleno respeito pelas liberdades democráticas continua a ser um dever mesmo no contexto dramático da guerra.
Além disso, fortalecido pela experiência da sua Igreja durante a repressão comunista – foi a comunidade mais perseguida –, destacou: “Interditar aquela Igreja significa entregar-lhe a palma do martírio. Seria convidada a entrar realmente na órbita da oposição silenciosa, justificando suas reivindicações".
Ele disse a um expoente político: "Se quiserem dar um futuro ao patriarcado de Moscou na Ucrânia, proscrevam-no".
A Igreja de Onúfrio, que se recusou a endossar os protestos da Rússia e da Igreja de Moscou na ONU, não deixou de apontar ao Conselho de Segurança da organização internacional os perigos para a liberdade religiosa representados pelos projetos de lei e pelas "sanções pessoais ilegais contra os bispos da Igreja (pró-russa)".
O responsável jurídico da Igreja criticou a escolha de especialistas feita pelo governo. Alguns já haviam se manifestado criticamente e seu trabalho não teria se concentrado nos recentes estatutos da Igreja não autocéfala, mas sim nos documentos do portal on-line da Igreja Russa.
Um de seus bispos censurados, Paulo, chefe da comunidade monástica de Lavra das Grutas de Kiev, lugar fundador e prestigioso para toda a Ortodoxia eslava, em 31 de janeiro lançou um apelo ao mundo monástico de todas as Igrejas Ortodoxas para serem defendidos "das perseguições, abusos e discriminações contra os cristãos da Igreja Ortodoxa (pró-russa)" e convocando "a pôr um fim à incitação ao ódio interconfessional em nosso país". Pena que ele tenha se esquecido alguns meses atrás de fazer um apelo à assembleia geral do monasticismo russo por uma palavra contra a guerra (cf. aqui).
Às vozes internas juntaram-se as dos hierarcas das Igrejas pró-russas no exterior. Irineu de Backa (Sérvia) falou de perseguição, intimidação e "terrorismo de Estado".
O Metropolita de Montenegro (Igreja Sérvia), João, lembrou que uma operação semelhante de apreensão de igrejas foi tentada em Montenegro e falhou. Também graças ao apoio do Metropolita Onúfrio que visitou Montenegro naquele período.
O metropolita Marcos de Berlim, também um crítico da agressão militar russa, acusou o governo de Kiev de ter ido além da perseguição de Hitler ("Hitler não foi tão longe quanto as autoridades ucranianas").
A Igreja Russa ataca tanto o governo de Kiev quanto o patriarca de Constantinopla por sua decisão de reconhecer a autocefalia da Igreja Ucraniana de Epifânio. Em comentário, aliás tardio (2 de março de 2023), sobre o discurso de Bartolomeu em Abu Dhabi (9 de dezembro de 2022), ele é acusado de responsabilidade pelo rompimento na Ortodoxia e pelo silêncio culposo sobre as buscas, interrogatórios, violências e calúnias em andamento contra a Igreja de Onúfrio.
De acordo com Kirill (25 de janeiro), Bartolomeu não é livre e "forças estrangeiras usam o patriarcado de Constantinopla para seus propósitos". O sínodo de Moscou denuncia uma "campanha anticristã" em andamento na Ucrânia com uma referência enfática às perseguições comunistas.
Uma margem de ambiguidade nas decisões restritivas em relação à Igreja de Onúfrio é aceitável e ressaltada por um especialista bastante atento como Peter Anderson que valoriza os elementos mais críticos da ação daquela Igreja em relação à Rússia, como, em negativo, o afastamento de Olena Bogdan da presidência do serviço estatal sobre as religiões. Ele considera, em particular, excessivas as penas previstas para o metropolitano russo Hilarion, anteriormente responsável pelo departamento de relações exteriores do patriarcado e agora confinado à pequena comunidade ortodoxa da Hungria, provavelmente devido às suas reticências quanto à conveniência da guerra.
No entanto, um distanciamento mais enérgico é solicitado em um documento de clérigos e leigos da Igreja não autocéfala (12 de janeiro) que apresenta ao seu sínodo dez perguntas a serem respondidas para um esclarecimento pleno da independência canônica e teológica (contra o "mundo russo") em relação ao patriarcado de Moscou.
Em uma pesquisa recente, o instituto de pesquisa KIIS registra que 78% dos ucranianos apoiam o governo em seu desejo de disciplinar a Igreja não autocéfala. Para 54% deveria ser cancelada.
Um clima completamente diferente em Moscou, onde Kirill continua a justificar plenamente a agressão militar contra a Ucrânia em nome de um confronto apocalíptico com o Ocidente decadente e pela salvação do Cristianismo, expresso apenas pela sua Igreja. “Agradeço a Deus que as relações Igreja-Estado estejam se desenvolvendo hoje dessa maneira no estado russo e Deus conceda que isso continue no futuro. Agradeço a Vladimir Vladimirovich Putin, o presidente do nosso país… que apoia justamente essa modalidade de interação entre a Igreja e o Estado. E, falando francamente, esta é a primeira vez em toda a longa história da Igreja Ortodoxa Russa” (1º de fevereiro de 2023). “A Rússia está se tornando cada vez mais uma ilha de liberdade, porque defendemos os valores que garantem a verdadeira liberdade” (25 de janeiro).
Exceto um pequeno grupo de padres e crentes (cf. aqui), o dissenso só pode ser intuído no silêncio. Kirill sublinha: "Hoje, em nossas fileiras, não há um único bispo que diga: não, não é da minha conta, fico de lado" (1º de fevereiro). Ele enumera com satisfação as conquistas da Igreja na sociedade e no Estado. Há necessidade de uma nova ideologia construída em torno da ideia nacional que a Igreja está promovendo.
Em 9 de novembro de 2022, o presidente assinou um decreto sobre os fundamentos da política de estado que garante os valores morais e espirituais da tradição russa. Confirma-se a impraticabilidade (compartilhável) da gestação por substituição, mas também a exclusão da comunicação pública de qualquer referência à homossexualidade ou à troca de gênero. No mês seguinte, Putin aprovou mudanças no código da família que garantem sua estrutura tradicional.
Mas não faltam pedidos de novas regulamentações legais: privar o aborto de qualquer cobertura financeira. Quem o faz deve pagar por ele. Além disso, prover à isenção do serviço militar para os clérigos, cujo serviço no front é totalmente voluntário. Ampliar o ensino da religião ortodoxa a todas as escolas obrigatórias e reconhecer os títulos acadêmicos das escolas e faculdades teológicas.
A responsabilidade pela guerra é totalmente atribuída aos ucranianos e seus aliados. Assim, as violências contra civis e os massacres não são atribuíveis ao exército russo. A tarefa da Igreja é rezar pela paz, pedir tratamento humano para os prisioneiros, apoiar a evacuação de civis dos territórios de combate e, uma vez terminadas as hostilidades, atuar pela reconciliação. Nenhuma menção a um juízo mais fundamentado e menos precipitado sobre a guerra e nenhuma percepção da urgência inadiável das negociações de paz, às vésperas de uma ameaça de ataque em grande estilo do exército russo.
Pretender vencer a guerra significa subestimar uma expansão descontrolada do conflito. A esperança é de um armistício e de uma paz negociada. Como Arduino Paniccia sugere no Avvenire (1º de fevereiro) isso comporta o envolvimento dos EUA-OTAN e China por iniciativa de um dos dois.
“Uma coisa é clara: até hoje se falou do destino dos territórios ocupados e da Crimeia. Mas isso não pode ser um ponto de partida para qualquer negociação concreta. Uma conferência de paz entre as potências deve partir de acordos sobre armamentos (uso de armas nucleares, drones, submarinos, mísseis balísticos), para conduzir a um contexto geoeconômico em que seja prevista a adesão da Ucrânia à União Europeia, que defina os aspectos da segurança, do papel da OTAN, e que ofereça soluções diplomáticas ‘criativas’ para os ‘corredores’ do Donbass".
Cheia de encanto e profecia a indicação expressa pelo card. Pietro Parolin em entrevista em 13 de dezembro (A Europa e a guerra. Do espírito de Helsinque às perspectivas de paz).
“Precisamos imaginar e construir um novo conceito de paz e solidariedade internacional, lembrando que muitos países e muitos povos pedem para serem ouvidos e representados. Precisamos implementar novas regras para as relações internacionais, que hoje nos parecem - permitam-me a expressão - muito mais "líquidas", e, portanto, inconsistentes, do que no passado.
Precisamos de coragem, de apostar na paz e não na inelutabilidade da guerra; no diálogo e na cooperação, e não nas ameaças e nas divisões. Precisamos de uma desescalada militar e verbal, para reencontrar o rosto do outro, porque toda guerra – dizia o venerável Mons. Tonino Bello – encontra suas raízes na ‘dissolução dos rostos’. Por que, então, não voltar para reler o que resultou da Conferência de Helsinque, de modo a retomar alguns de seus frutos e colocá-los em discussão numa forma nova? Por que não trabalhar juntos para criar uma grande conferência europeia dedicada à paz?”.
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Ucrânia-Rússia: as Igrejas, o poder e a guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU