18 Janeiro 2023
Multiplicam-se desejos e experimentos de vida livre do inferno mercantil. Novas construções teóricas avançam. Mas a máquina de alienação gira cada vez mais rápido – e coloca o indivíduo solitário como herói. Quem colapsará primeiro?
O artigo é de Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor da PUC-SP e da Umesp, publicado por Outras Palavras, 16-01-2023.
É difícil não pensar que estamos vivendo em um enorme circo. Sentados no sofá após um bizarro dia de trabalho e horas de deslocamento, as novelas surrealistas da TV nos trazem uma visão geral do jogo global: tantas bombas sobre a Ucrânia, mais refugiados nas fronteiras, os problemas com as grandes finanças, os últimos gols de Messi, a discussão sobre como acabou a Copa do Mundo no Catar. Ah sim, e quem, depois do Reino Unido, ameaça sair da UE, como a Hungria ou a Polônia, em nome de ideais nacionais superiores.
Com certeza é algum jogo. Os relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam nos mostram a divisão entre quem é dono do jogo e quem são os espectadores: 62 bilionários possuem mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. Eles produziram tudo isso? Evidentemente, tudo depende de qual parte você desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos lotam o condomínio de Alphaville, cercado e vigiado, enquanto os pobres do bairro se autodenominam Alphavella. Alguém tem que cortar a grama e entregar as compras.
A WWF produziu sua avaliação global sobre a destruição da vida selvagem: 52% desapareceram durante os 40 anos de 1970 a 2010. Em 2022, estamos chegando a dois terços de devastação. A contaminação ou exaustão dos aquíferos é frequente. Os oceanos estão pedindo socorro, os resíduos de plástico estão por toda parte, o ar-condicionado está bombando. As florestas estão vindo abaixo na Indonésia, assumindo o primeiro lugar que pertencia à região amazônica. A Europa terá energia renovável, carne barata e lindos móveis de mogno.
A Tax Justice Network mostrou que tínhamos cerca de US$ 30 trilhões em paraísos fiscais, para um PIB mundial de US$ 73 trilhões, em 2012. Em 2022, The Economist estimou que a parte dos lucros corporativos globais que vai parar em paraísos fiscais aumentou de 30% para 60% nas últimas duas décadas. O Bank for International Settlements em Basel, Suíça, nos mostra que derivativos pendentes, o sistema de especulação sobre commodities básicas, atingiu 630 trilhões de dólares, mais de seis vezes o PIB mundial de 2022, gerando as atuais flutuações dos insumos básicos da economia, muito antes da Ucrânia. O maior jogo do planeta gira em torno de grãos, minerais ferrosos e não ferrosos e energia, nas mãos de basicamente 16 corporações, a maioria com sede formal em Genebra. Como sabemos graças a Jean Ziegler, a Suíça lava mais branco. Não há árbitro neste jogo, estamos em ambiente resguardado. Os franceses têm uma excelente definição de nossos tempos: vivemos uma época formidável!
Fizemos um trabalho minucioso em 2015: uma avaliação global sobre como financiar o desenvolvimento em Adis Abeba, as metas de desenvolvimento sustentável para 2030 em Nova York e o pacto sobre mudanças climáticas em Paris. Os desafios, soluções e custos foram claramente definidos. Nossa equação global é bastante simples de formular: os trilhões em especulação financeira devem ser redirecionados para financiar a inclusão social e promover a mudança de paradigma tecnológico que nos permitirá salvar o planeta. E a nós mesmos, claro. As sucessivas COPs (a última no Egito) geram relatórios e uma sensação momentânea de que finalmente vamos fazer alguma coisa. Mas para estimular os jogadores globais, os jogadores de Wall Street anunciam a moral desse esporte: A ganância é boa! Quem estamos enganando?
Estamos nos afogando em estatísticas. O Banco Mundial sugere que devemos fazer algo sobre os próximos quatro bilhões, referindo-se ao número de seres humanos que “não têm acesso aos benefícios da globalização”, uma referência bastante eufemística aos pobres. Também temos os bilhões que vivem com menos de US$ 5 por dia, e até o bilhão que vive com menos de US$ 1,25 por dia. A FAO mostra-nos detalhadamente onde estão os 850 milhões que sofrem de fome, a Unicef contabiliza os cerca de 5 milhões de crianças que morrem todos os anos por falta de acesso a alimentos ou água potável. São cerca de quatro Torres Gêmeas de Nova York por dia, mas elas morrem em silêncio em lugares pobres, com os pais totalmente desamparados.
As coisas estão melhorando, certamente, mas o problema é que temos 80 milhões de pessoas a mais a cada ano – aproximadamente a população do Egito – e crescendo. Um lembrete vai ajudar, pois ninguém entende bem o que é um bilhão: quando meu pai nasceu, em 1900, éramos 1,5 bilhão de pessoas, hoje somos 8 bilhões. Não estou falando de história antiga, é meu pai. E como não está no nosso cotidiano entender o que é um bilionário, tenha outra imagem: se você investir US$ 1 bilhão em algum fundo que pague míseros 5%, você está ganhando US$ 137 mil por dia. Não há como você gastar isso, então você alimenta mais circuitos financeiros, ficando mais fabulosamente rico – e alimentando mais operadores financeiros. O orçamento de Biden para consertar a economia dos EUA é de cerca de US$ 6 trilhões; Larry Fink, da BlackRock, administra US$ 10 trilhões. Ele não precisou ser eleito ou apresentar um programa. Bem-vindo ao dreno financeiro improdutivo global.
Como colocar nossos recursos financeiros em produtos financeiros rende mais do que investir na produção de bens e serviços – como faziam os bons e velhos capitalistas úteis – não há como o acesso ao dinheiro se estabilizar, e muito menos cair. O dinheiro tem uma atração natural para onde melhor se multiplicar, pertence à sua natureza, assim como à natureza dos banqueiros. O dinheiro nas mãos da base da pirâmide gera consumo, investimento produtivo, produtos e empregos. O dinheiro no topo gera degenerados fabulosamente ricos que vão comprar clubes de futebol, e na velhice relembrar seu futuro e criar uma ONG. Apenas por precaução. Thomas Piketty, Michael Hudson, Mariana Mazzucato e tantos outros mostraram conclusivamente como funciona a bola de neve financeira.
Muitas pessoas entenderam que as regras do jogo são manipuladas. Quando os mesmos fabulosamente ricos financiam políticas e promovem legislação de acordo com suas crescentes necessidades, tornando a especulação, a evasão fiscal e a instabilidade geral um processo estrutural e legal, torna-se claramente necessária uma solução global. Lester Brown reuniu os números do ambiente e escreveu Plano B, mostrando claramente que nosso atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz, Jeffrey Sachs e tantos outros estão trabalhando em O próximo sistema, implicando e mostrando que o sistema atual ultrapassou seus próprios limites.
Joseph Stiglitz e um grupo de economistas lançaram Uma Agenda para a Prosperidade Compartilhada (An Agenda for Shared Prosperity), rejeitando “os velhos modelos econômicos”: segundo eles, “igualdade e desempenho econômico constituem na realidade forças complementares e não opostas”. A França criou o movimento Alternativas Econômicas (Alternatives Économiques), temos a Fundação de Nova Economia (New Economics Foundation) no Reino Unido, estudantes de economia em sua forma tradicional estão boicotando seus estudos em Harvard e outras universidades importantes. Mehr Licht!
E os pobres, muito claramente, estão fartos deste jogo. Restam muito poucos camponeses isolados e ignorantes dispostos a se contentar com sua sorte, seja ela qual for. Mas há uma consciência mundial entre os pobres de que eles poderiam ter uma boa escola para seus filhos e um hospital decente para eles nascerem. Além disso, eles veem que isso pode funcionar na TV: no Brasil 97% dos lares têm aparelhos de TV, mesmo que não haja saneamento decente. Como podemos esperar ter paz do outro lado do lago chamado Mediterrâneo se 70% dos empregos na Argélia são informais e o desemprego juvenil é superior a 40%? E se ao que eles assistem na TV é o lazer e a prosperidade do outro lado, em Nice, França? Nós os bombardeamos com modos de vida que estão fora de seu alcance econômico. Nada disso faz sentido e, em um planeta cada vez menor, é explosivo. Estamos condenados a viver juntos, o mundo é plano, os desafios são de todos e a iniciativa deve partir de quem está em melhor situação. E, felizmente, os pobres já não são o que foram. Eles estão fartos e a instabilidade política está se espalhando. Quando se ultrapassa um certo nível de desigualdade, falar em democracia é uma farsa.
Não podemos ter a economia, mas também menos desigualdade, menos destruição do meio ambiente e mais qualidade de vida? Não se trata de uma questão econômica, mas de organização social e política. Em 2022, atingimos um PIB mundial de US$ 100 trilhões. Dividido pela população mundial, isso equivale a US$ 4.600 mensais por família de quatro pessoas. Isso significa simplesmente que o que produzimos atualmente em bens e serviços é suficiente para garantir que todos no planeta tenham uma vida digna e confortável. Temos os recursos, temos as tecnologias, estamos nos afogando em estatísticas sobre cada um desses dramas, e temos até o caminho desenhado na calçada: os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) trazem isso tudo explicado.
Sempre tive uma visão muito mais ampla da cultura do que a tradição “Ach! said Bach!” [referência ao filme Círculo de dois amantes, de Jules Dassin]. Divertir-se com os outros, de certa forma, seja construindo ou escrevendo algo, ou apenas brincando. Convivialidade. Passei algum tempo em Varsóvia, alguns anos atrás. Fim de semana de verão, parques e praças lotados e atividades culturais por todos os lados. Ao ar livre, com muita gente sentada no chão ou em simples cadeiras de plástico, uma trupe de teatro fazia uma paródia da forma como tratamos os velhos. Pouco dinheiro, muita diversão. Um pouco mais adiante, em diferentes partes do parque Lazienki, numerosos grupos tocavam jazz ou música clássica, pessoas sentadas na grama ou em bancos improvisados, crianças correndo em volta.
No Brasil, com Gilberto Gil no Ministério da Cultura, uma nova política de Pontos de Cultura foi construída: qualquer grupo de jovens que decidisse criar uma banda poderia pedir apoio, e receber instrumentos musicais ou o que precisasse, e organizar shows ou produzir eventos online, surgiram milhares, para estimular a criatividade basta rabiscar um pouco, os jovens têm isso na pele. A política foi fortemente atacada pela indústria fonográfica, dizendo que estávamos tirando o pão da boca de artistas profissionais. Eles não querem cultura, eles querem indústria de entretenimento e negócios. Todo o movimento cultural foi derrubado pelo golpe político que derrubou a presidente Dilma Rousseff em 2016, e nos trouxe “austeridade” e repressão de extrema direita. Felizmente, com a volta de Lula à presidência em 2023, e apesar dos ataques fanáticos da extrema-direita, a esperança está de volta.
O carnaval brasileiro pode voltar ao que era antes? Em São Paulo, em 2016, foi arrebatador. Completando um ciclo completo, o carnaval de rua e a criatividade solta e improvisada, depois de ter sido domado e transformado em um disciplinado e caro show-business pelo magnata da Rede Globo, estava de volta às ruas. Gente improvisando centenas de eventos pela cidade, um caos popular novamente, como nunca deixara de ser em Salvador, Recife e outras regiões mais pobres do país. O carnaval de entretenimento está lá, é claro, e os turistas pagam para sentar e assistir ao show deslumbrante e rico, mas a verdadeira diversão está em outro lugar, onde o direito de todos dançar e cantar havia sido retirado. Com os extremistas no poder, a austeridade, a covid e o dreno financeiro, perdeu-se o entusiasmo. Com Lula, certamente estará de volta. Mas precisamos desses altos e baixos dramáticos?
Eu costumava jogar futebol muito bem. E ia com meu pai assistir aos jogos do Corinthians no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias para toda a vida. Mas, principalmente, jogávamos nós mesmos, onde e quando podíamos, com bolas reais ou improvisadas. Não se trata de nostalgia dos bons velhos tempos, mas de um sentimento confuso de que, quando o esporte se reduz a assistir a celebridades realizando grandes feitos na TV, enquanto comemos algumas guloseimas e tomamos uma cerveja, não é apenas esporte, mas é cultura em seu sentido mais amplo que se tornou uma questão de produção e consumo, não algo que seja parte do que nós mesmos criamos. Em Toronto, fiquei surpreso ao ver tantas pessoas brincando em tantos lugares, crianças ou idosos, porque o espaço público aberto pode ser encontrado praticamente por toda parte. Aparentemente, pelo menos nos esportes, eles estão sobrevivendo com o espírito de se divertirem juntos.
Mas obviamente não é a corrente principal. A indústria do entretenimento penetrou em todos os lares do mundo, em todos os computadores, celulares, salas de espera, ônibus. Somos um terminal, um ponto em uma espécie de falatório global gigante e estranho. Essa tagarelice global, com evidentes exceções, é financiada pela publicidade. A enorme indústria publicitária é financiada basicamente por um punhado de gigantes corporativos cuja estratégia de sobrevivência e expansão se baseia em que as pessoas sejam reduzidas essencialmente a consumidores. Como adotamos obedientemente um comportamento de consumo obsessivo, em vez de tocar música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar em uma piscina pública com nossos filhos, o sistema funciona. Que bando de consumidores otários somos nós, com nosso apartamento de dois ou três cômodos, sofá, TV, computador e celular, vendo o que os outros fazem.
Quem precisa de uma família? No Brasil, o casamento dura 14 anos (e caindo), nossa média é de 3,1 pessoas por domicílio. A Europa está à nossa frente, 2,4 por família. Nos EUA, apenas 25% das famílias têm um casal com filhos. O mesmo na Suécia. A obesidade está crescendo graças ao sofá, à geladeira, à televisão e às guloseimas. Também está em alta a cirurgia de obesidade infantil, uma homenagem ao consumismo. E você pode comprar um relógio de pulso que lhe dirá o quão rápido seu coração está batendo depois que você andou dois quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu médico.
O que é isso tudo? Vejo a cultura como a forma como organizamos nossas vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança, todo o conjunto que me dirá se vale a pena viver minha vida. Leio livros e faço uma sesta depois do almoço, como qualquer ser humano civilizado deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, nós somos os únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho. Bem, claro, existe esse maldito negócio chamado PIB. Todas as coisas realmente agradáveis que mencionei não aumentam o PIB, menos ainda a rede que uso para minha sesta. Eles só aumentam a nossa qualidade de vida. E o PIB é tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas de prostituição e vendas de drogas para melhorar a taxa de crescimento. Considerando o tipo de vida que estamos construindo, talvez eles estejam certos.
Precisamos de um choque de realidade. Os miseráveis da terra não desaparecerão, construir muros e cercas não resolverá nada, o desastre climático não desaparecerá a menos que enfrentemos nosso mix tecnológico e energético, o dinheiro não fluirá para onde deveria a menos que regulemos, as pessoas não criarão um poder político forte o suficiente para apoiar as mudanças necessárias, a menos que sejam efetivamente informados sobre nossos desafios estruturais. Enquanto isso, a Copa do Mundo de Futebol, com Messi e Mbappé, nos mantém ocupados em nossos sofás. Como aconteceu, francamente, com o autor destas linhas. Sursum corda.
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Reflexões às vésperas do caos. Artigo de Ladislau Dowbor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU