20 Dezembro 2022
"Globalização europeizou o futebol. Brasil deixou de produzir o espetáculo para exportar sua matéria-prima. Um bando de celebridades, que vivem pelos negócios, pode converter-se num coletivo capaz de representar 'a pátria em chuteiras'?".
O artigo é de Fábio Luís Barbosa dos Santos, publicado por Outras Palavras, 16-12-2022.
Fábio dos Santos é professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp e pesquisador colaborador do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo - USP. Tem doutorado em História Econômica pela USP. É autor dos livros: Além do PT: a crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana e Origens do pensamento e da política radical na América Latina.
O Brasil foi eliminado da Copa do Mundo pela Croácia. Desde 2006, a Seleção perde quando enfrenta uma equipe europeia no mata-mata. A repetição de um padrão sugere que estamos diante de um sintoma, que é preciso investigar. Culpar o técnico parece cômodo e superficial. O que estas derrotas, tão parecidas, podem nos dizer sobre o Brasil?
Meu ponto de partida é constatar que, apesar das derrotas, a Seleção ainda produz um encantamento sobre os brasileiros. Este encantamento se intensifica na Copa do Mundo, que é um dos raros momentos em que se exercita o nacionalismo no país.
E, no entanto, esta excitação nacionalista parece na contramão dos processos sociais concretos. Com a globalização, se esvaziou a possibilidade de um desenvolvimento nacional. Já o neoliberalismo, consagrou a concorrência como um princípio organizador da vida social, produzindo uma sociabilidade autofágica. Mas como fazer uma nação, em uma sociedade em que todos lutam contra todos?
Esta forma social favorece identidades que antagonizam o seu “outro”: uma nação cristã, hostil ao candomblé, homossexuais e outras heresias; a moral policial, que faz de todo suspeito um vagabundo, e de todo vagabundo, um bandido; a irmandade do crime, que produz fidelidades e procedimentos alheios ao Estado, enquanto atiram nos rivais.
O traço comum destas e outras identidades é que elas se alimentam das fraturas brasileiras. De modo correspondente, o nacionalismo que daí emerge não tem como o seu “outro” o imperialismo, que exige unidade interna. Seu “outro” é fabricado a partir de fissuras, reais ou imaginadas, que supostamente ameaçam esta unidade. É fraturando que o bolsonarismo produz sua coesão.
Opera-se uma inversão. No século XX, a formação da nação supunha processos de integração, em que a diferença se dilui ou se transforma. Como diziam os modernistas, “só a antropofagia nos une”. No século XXI, a antropofagia deu lugar à autofagia.
Como fazer uma nação quando a nossa sociabilidade está atravessada por lealdades que se fortalecem com as fraturas? Neste mundo em que não cabem as pessoas, atravessado por identidades que se alimentam das exclusões que ele produz, o que ainda nos une como país?
Uma das coisas que nos une é o futebol.
A minha hipótese é que o encantamento que a Seleção ainda produz sobre os brasileiros na Copa do Mundo tem a ver com a aspiração latente a uma nação – que, no entanto, nunca se realiza. De alguma maneira, os brasileiros projetam na formação de uma equipe que não somente é vencedora, mas que enriquece e embeleza o mundo, a aspiração a uma nação que tem uma contribuição civilizatória valiosa e original.
E, no entanto, este encantamento se frustra de maneira sempre igual. Desde 2006, o Brasil se revela como uma equipe tecnicamente superior aos adversários que o derrotam, sempre com um futebol desprovido da nossa poesia. É como se o paradoxo de um país tão rico por natureza, mas que não vinga, se encenasse nos gramados a cada quatro anos.
Como explicar? Não tenho a resposta, mas é preciso pensar. Culpar o técnico é uma forma de evitar a dor da crítica, mas também de se condenar à repetição. A europeização do futebol, a celebrização dos jogadores e as expectativas projetadas na seleção são parte do problema.
A última Copa que o Brasil ganhou foi em 2002, mesmo ano em que Lula se elegeu. Naqueles tempos, ainda era possível para equipes como Corinthians e Vasco da Gama enfrentar em pé de igualdade – e vencer – times como Manchester United e Real Madrid. De lá pra cá, isso se tornou impossível.
O ponto de virada foi a liberalização do mercado europeu de futebol, que até o final do século XX impunha cotas de jogadores estrangeiros que poderiam atuar em equipes nacionais. Como resultado, em 2010, a Inter de Milão venceu a Copa dos Campeões sem ter um jogador italiano em campo. Difícil não relacionar este processo com a decadência do futebol italiano: o país que venceu quatro Copas sequer se classificou para as duas últimas.
Esta liberalização teve efeitos devastadores sobre o futebol sul-americano, porque inviabilizou a formação de equipes. Qualquer time que se destaca é desmontado e seus jogadores são comercializados. Os clubes se transformaram em vitrines de jogadores para exportação.
Como o futebol é um esporte coletivo, a impossibilidade de formar times comprometeu a própria existência de um futebol brasileiro, compreendido como um estilo próprio associado ao refinamento técnico, à criatividade e à ofensividade. O Brasil deixou de produzir futebol para exportar a matéria-prima do esporte.
A globalização “europeizou” o futebol mundial. Aplicação tática, força física e defensividade se tornaram indispensáveis para vencer, mas não a criação. O jogo se acelerou, mas também a ocupação dos espaços em campo, limitando dribles, tabelas e chutes. Como consequência, os gols se tornaram escassos. E as competições internacionais são dominadas por clubes e seleções europeias.
Este processo foi impulsionado pela FIFA. Voleibol, basquete e futebol de salão modificaram suas regras para tornar o esporte mais dinâmico, e não menos. O futebol americano endurece regras a cada ano, para proteger quem cria jogadas. Enquanto isso, a FIFA orienta os juízes a economizar cartões, de modo que na Copa de 2006 houve 28 expulsões, mas no Qatar, apenas 4 – nenhuma delas antes dos 40 do segundo tempo (até as semifinais). Ao mesmo tempo, o VAR tirou vários gols na Copa, mas não criou nenhum. Artistas da bola se machucam, enquanto o orgasmo do futebol, que são os gols, escasseia.
O futebol é o único esporte em que é possível vencer, sem ter a iniciativa do ataque. Mas também o único em que a corporação do esporte, que atua como um “aparelho privado de hegemonia” do futebol europeu, inova para favorecer o jogo defensivo e violento.
Mas o Brasil se adaptou. Em 2002, a maioria dos convocados atuava no país. Em 2006, apenas três. Na Copa de 2010, pela primeira vez na história, o destaque da Seleção foi a defesa. E na competição seguinte, a equipe estrelou a dupla de zagueiros mais bem paga do mundo. Uma seleção de brasileiros jogando na Europa, resultava em uma seleção brasileira jogando europeu.
No entanto, os nossos europeus parecem jogar melhor que os deles. Mas desde 2002 nunca chegaram a uma final da Copa. E perdem sempre igual: jogando melhor, contra um time europeu pior, na primeira vez em que se encontram no mundial. A exceção foi a Alemanha, que era um time europeu melhor que o nosso. E vimos no que deu.
Por que os nossos europeus são mais talentosos, mas perdem? Certamente, a explicação é complexa. Mas cabe destacar alguns fatores.
O primeiro é que a globalização teve efeitos econômicos no futebol, mas também culturais. Os jogadores se transformaram em empreendimentos: todo craque é uma empresa que movimenta muito dinheiro. Mas estes empreendimentos são também celebridades. Se a liberalização do mercado europeu inviabilizou a formação de times no Brasil, como fazer de um grupo de celebridades algo coletivo como uma equipe? E mais complicado: como fazer isso quando também a CBF faz da seleção uma vitrine de negócios?
Dois exemplos da Copa de 2006 ilustram esta inflexão. Naquele torneio, uma cidade suíça pagou para sediar os treinos da seleção brasileira, que eram assistidos por milhares de torcedores que pagavam ingressos. O ambiente de bajulação era total e a concentração, impossível.
No final da estreia contra a Croácia, um jogador adversário procurou Ronaldinho para trocar camisa, como é praxe, mas o craque não topou. Questionado por um repórter, esclareceu que guardaria a camisa para o museu que o empresário preparava sobre a sua carreira. Não é surpreendente que naquela Copa, Roberto Carlos arrumasse a meia, enquanto Thierry Henry eliminava o Brasil.
É certo que atletas de outras equipes são celebridades. Mas a particularidade brasileira é um país que parece projetar nestes atletas aspirações frustradas de uma nação que nunca se consuma. Eles são a pátria em chuteiras, literalmente. E isso significa uma pressão sobre os atletas, que não tem paralelo em outras equipes. O futebol no Brasil é mais do que um esporte. Para o bem e para o mal.
A seleção encanta, mas também está atravessada pelas contradições da sociabilidade autofágica do Terceiro Mundo, que pariu seus jogadores. A maioria é de origem pobre e muitos provêm de lares desestruturados. Como comentou o técnico Fernando Diniz, é muito difícil convencer estes lutadores de que o jogo coletivo lhes beneficiará.
E como jogar fora do campo? Para qualquer um, fama e fortuna são sedutoras, mas dispersivas. Ronaldinho não virou museu e Neymar nunca virou o melhor do mundo. Será que o temperamento de Messi foi providencial para o seu futebol e para as equipes em que atua?
Qualquer treinador da seleção brasileira se defrontará com um desafio fora dos gramados: como fazer de jogadores que são empresas e celebridades, além de portadores de aspirações muito maiores do que lhes cabe, um coletivo? Construir um time focado na Copa parece tão difícil quanto extrair da sociabilidade autofágica a matéria-prima para um Brasil em que caibam todos.
Se o futebol tem futuro como expressão criativa, e o Brasil tem futuro enquanto criação social, é também por causa de talentos como Neymar. Deste ponto de vista, estamos do mesmo lado.
Mas uma sociedade que tem como ídolo alguém como Neymar, não pode ser uma nação. Portanto, ao mesmo tempo que precisamos de Neymar (da sua arte), precisamos não desejá-lo. Igualmente, podemos pensar que é preciso dos evangélicos ou dos ladrões para fazer um país. Mas como fazer, com eles, um país?
Em outras palavras, a matéria-prima para fazer desta população algo coletivo está atravessada por valores e lealdades que inviabilizam a coletividade. Estas contradições vão muito além de uma questão de classe, como se viu nas eleições presidenciais. Elas atravessam a cultura, as nossas formas de vida, e também o futebol.
São contradições desta natureza que é preciso enfrentar, para que o Brasil, um dia, possa ser. Talvez neste dia o futebol volte a ter o tamanho de um esporte, por encantador que seja.
Quem sabe, então, a seleção vencerá os europeus. Ou talvez isso já terá a menor importância.
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A derrota na Copa como sintoma de um país fraturado. Artigo de Fábio Luís Barbosa dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU