24 Novembro 2022
Com a abertura da Copa do Mundo de 2022 neste domingo (20 de novembro), sediada pelo Catar, está desesperando cada vez mais torcedores, cansados dos excessos do futebol profissional. Não faltam formas de “trazer a copa à razão”, mas o trabalho é titânico.
A reportagem é de Xavier Molénat, publicada por Alternatives Économiques, 18-11-2022. A tradução é do Cepat.
“E você vai boicotar?”. Dois dias antes da abertura da Copa do Mundo de futebol no Catar, a habitual excitação pré-Mundial deu lugar a um dilema moral para milhões de torcedores. Claro que os excessos do futebol negócio não esperavam que a competição fosse sediada por um país de 3 milhões de habitantes sem seleção, estádio ou torcida.
O esporte mais popular do mundo tem sido o que mais avançou na mercantilização, forçando todos os torcedores de futebol a contorções morais difíceis de suportar. Mas, desta vez, a taça parece cheia, pois a mais prestigiada delas vai ser concedida a um país que explora até a morte seus trabalhadores, criminaliza a homossexualidade e não se preocupa com as questões ecológicas.
Então, o que fazer? Virar as costas a este esporte ou tentar salvá-lo? Para seus críticos, o Mundial no Catar é uma oportunidade de ouro para acabar com esse esporte rei que ofusca os demais esportes e mostra o caminho para os abusos financeiros, climáticos e humanos.
Mas se nos voltarmos para os historiadores, os sociólogos ou os cientistas políticos que analisam este esporte sem nenhuma consideração moral, a conclusão é clara: o futebol é um “fato social total” que há décadas ultrapassou os limites do campo, carregando importantes questões políticas, sociológicas e culturais. O que leva muitos torcedores a não quererem entregar o futebol ao capitalismo.
Como colocar o pé sobre essa bola que sempre se mostrou esquiva, mesmo quando as ditaduras mais totalitárias buscaram domesticá-la? Existem dois ângulos de ataque possíveis – e complementares. O primeiro consiste em reformar o futebol profissional para retirar dele os excessos financeiros; o outro consiste em apoiar e desenvolver o futebol amador.
O futebol profissional, em primeiro lugar. Após quatro décadas de mercantilização e de financeirização, não há muito o que escrever que já não tenha sido escrito. Em resumo, uma pequena elite de poucos países e cerca de vinte clubes europeus conseguiram colocar as mãos nas incríveis receitas geradas pelo futebol.
O suficiente para criar um futebol a duas velocidades com, de um lado, as marcas globais cobiçadas por determinados Estados (Catar, Arábia Saudita, etc.) ou as fortunas privadas, de outro lado, a maioria dos clubes que, longe atrás, estão tentando seguir uma elite cada vez mais inacessível para eles. Diante dessa mercantilização violenta e desigual, o público não ficou passivo.
“Os torcedores de futebol são muito apegados a certas tradições, porque a paixão costuma ser transmitida de geração em geração”, lembra o sociólogo Ludovic Lestrelin. “A partir da década de 1980, na Inglaterra, surgiram movimentos de protesto que denunciavam a mercantilização do futebol, a segurança total, a excessiva modernização e o aumento dos preços dos ingressos”.
Quatro décadas depois, as faixas de “Boicote ao Catar” floresceram nos estádios europeus nas últimas semanas, especialmente na Alemanha. Ludovic Lestrelin vê nisso “uma forma de amadurecimento destes movimentos de protesto, que agora conseguem se fazer bem visíveis nos estádios – especialmente através dos ultras –, mas também incidir nas instâncias que fiscalizam o futebol, desenvolver argumentos avançados, ou defender suas posições na mídia”.
Embora muitas vezes ignoradas pelos dirigentes, essas críticas às vezes ganham batalhas. Assim, a rebelião dos torcedores é o grande responsável pelo abandono – pelo menos temporariamente – do projeto da Superliga Europeia, que visava criar uma competição VIP restrita aos maiores clubes europeus. Ao contrário da situação atual (Liga dos Campeões), um clube de “segundo escalão” que obtivesse bons resultados esportivos não poderia participar desta competição.
Este questionamento da meritocracia desportiva, que marca o futebol desde a sua criação, foi um passo a mais para os torcedores, que no ano passado obrigaram os dirigentes dos seus próprios clubes a abandonar este projeto elitista. “Certamente, não há garantia de que esse projeto não vá acontecer um dia”, comenta Ludovic Lestrelin. “Mas esse tipo de vitória semeia sementes na mente dos torcedores, que assim percebem que um equilíbrio de poder é possível e que nem sempre é uma desvantagem”. Os torcedores estão à altura para argumentar com o futebol?
“De qualquer forma, eles são a base do futebol negócio. Sem eles, todas as receitas desapareceriam, sejam elas televisivas, publicitárias, vinculadas a ingressos para estádios ou produtos derivados”, lembra Christophe Lepetit, economista do esporte do Centro de Direito e Economia do Esporte de Limoges. “Escolhas tão ‘aberrantes’ como o Catar acabam ultrapassando o limite da aceitabilidade de muitos torcedores – principalmente ocidentais”, comemora.
“Os torcedores que defendem um futebol mais popular estão sujeitos a contradições significativas. Eles aprenderam a lidar com isso de alguma forma. Mas quando a economia realmente tem precedência sobre o esportivo, podem ocorrer reações muito virulentas”, confirma Ludovic Lestrelin, citando em especial a invasão dos torcedores do Olympique de Marseille do centro de treinamento do clube em janeiro de 2021 devido à gestão financeira e pouco respeitosa da identidade marselhesa do então presidente Jacques-Henri Eyraud.
Além do reinado do dinheiro ou dos direitos humanos violados no Catar, a questão ecológica está ganhando cada vez mais espaço, acredita Christophe Lepetit: “Estamos chegando a um ponto crítico em que os atletas de grandes eventos esportivos não podem mais ignorar seu impacto ecológico. Como todo o resto da economia e da sociedade, o futebol será forçado a se reinventar”.
A Copa do Mundo no Catar constitui, portanto, uma inflexão? Apesar dos sinais encorajadores, a maioria dos observadores está cética. “Não devemos superestimar as críticas dirigidas ao Catar, que vêm principalmente de alguns países europeus”, sublinha Loïc Ravenel, do Centro Internacional de Estudos do Esporte.
“Falta provar que haverá poucos torcedores nos estádios e que o interesse do público não estará voltado para o evento”, confirma Bastien Drut, economista e autor de vários livros sobre a economia do futebol. “Sempre que um evento afeta o futebol, muitos querem acreditar na famosa ‘virada’, mas mesmo então o mundo pós é, no máximo, igual ao anterior”, ironiza Loïc Ravenel.
Boas desculpas para mudar o futebol de fato não faltaram nos últimos anos, sem nenhum eco real até agora: “As últimas Copas do Mundo não foram isentas de críticas, lembra Bastien Drut. Em 2018, a Rússia sediou a Copa do Mundo após a anexação da Crimeia. Além disso, as Copas do Mundo de 2010 (África do Sul), 2014 (Brasil) e 2018 (Rússia) foram símbolos de desperdício de dinheiro público com a construção de ‘elefantes brancos’, ou seja, estádios que nunca encontraram outro interesse além da Copa do Mundo”, acrescentou. “A Copa do Mundo mais questionável possível finalmente acontecerá ‘tranquilamente’, e muito rapidamente passaremos para outra coisa”, defende Loïc Ravenel, desiludido.
Uma constatação pessimista que pode ser estendida ao futebol dos clubes. Assim, muitos torcedores marselheses, que muitas vezes se descrevem como defensores do futebol popular, são apaixonados por rumores de que seu clube foi adquirido por fortunas sauditas.
Parece, portanto, sensato não esperar por uma grande noite que veria o retorno de um futebol mais popular e razoável. O que não significa que você tenha que abandonar o campo e desistir. Sendo o futebol um assunto eminentemente político, “não podemos deixar que o desafio da sua demarcação recaia apenas sobre os torcedores”, proclama Christophe Lepetit. “Uma verdadeira mudança no modelo global do futebol só pode ocorrer se as autoridades políticas, e na linha de frente as autoridades europeias, encararem o assunto de frente”, confirma Bastien Drut.
Quem deve agir? As instâncias esportivas, sejam elas internacionais (FIFA, UEFA) ou nacionais (FFF, LFP)? As instituições políticas (União Europeia, Estados)? “Nunca sofremos com excesso de legislação”, ri Christophe Lepetit. “Quando a França reduz o número de jogos a cada ano, é positivo. Quando a UEFA define cotas para jogadores de fora da União Europeia, isso também é muito bom”, ilustra.
As ferramentas para regular o futebol e restabelecer a equidade são numerosas e bem conhecidas (fair play financeiro que obriga os clubes europeus a limitarem as suas perdas financeiras a um déficit de 30 milhões de euros num ciclo de três anos, teto salarial, cotas de jogadores formados no clube, etc.). Não são utópicas porque já provaram a sua utilidade na Europa – o fair play financeiro permitiu melhorar a situação financeira dos clubes – e porque funcionam em outros países, nos Estados Unidos, por exemplo. O país, campeão do liberalismo, regulamenta fortemente a maioria dos esportes, inclusive o basquete, sem prejudicar o interesse esportivo. É por isso que falta vontade política neste momento, sobretudo na França, tendo o Palácio do Eliseu sido o teatro decisivo para que o Mundial acontecesse no Catar.
Para além do quadro regulatório puro, o desafio consiste em distribuir melhor as receitas geradas pelo futebol. Atualmente, a distribuição é bastante baixa dentro da elite do futebol, e ainda mais entre o mundo profissional e o mundo amador. No entanto, este último é um espaço teoricamente central para devolver ao futebol suas cartas de nobreza… popular.
No entanto, o mundo do futebol amador está indo mal. Ele sofre estruturalmente com a competição cada vez mais forte de outros esportes coletivos, embora durante muito tempo tenha reinado supremo sobre a prática esportiva. Acima de tudo, luta para convencer face ao aparecimento de esportes individuais de prática livre (corrida, ciclismo, corrida em trilha, badminton, etc.) que estão em ascensão. Mais conjunturalmente, a epidemia de Covid o enfraqueceu muito, entre a queda no número de licenciados, educadores que entregam seus aventais e voluntários que partiram para fazer outras coisas.
Pior ainda, “o futebol amador tem sido muito atormentado pelo dinheiro”, lamenta Thomas Valle, hoje coordenador do centro de atividades e cultura esportiva da Federação Esportiva de Ginástica do Trabalho (FSGT). Ex-educador esportivo do circuito clássico (gerido pela FFF), presenciou cenas perturbadoras.
“Entre os jovens, a partir de certo nível, assistimos à emergência de um enorme mercado de jogadores, porque todos esperam descobrir o próximo Mbappé e aproveitar para mordê-lo. Educadores, dirigentes de clubes, famílias, agentes... a competição é acirrada, e alguns se transformam em mercadores de crianças. Chegou a tal ponto que espero que meus filhos não sejam muito bons no futebol, para que possam desfrutar do esporte sem pressão”.
Para Thomas Valle, antes de distribuir mais dinheiro, é preciso rever o futebol como um todo.
“Caso contrário, distribuir mais dinheiro do mundo profissional para o mundo amador apenas acentuará os excessos atuais. A base é limitar a remuneração do mundo profissional. Enquanto os jovens esperarem um dia ganhar o salário de Mbappé, o mundo amador continuará doentio”.
Diante da imensidão da empreitada, muitos preferem jogar a toalha e virar-se para um “outro futebol”, como faz a FSGT (Federação Esportiva e Ginástica do Trabalho). “A nossa ideia é permitir que as pessoas que não queiram se encaixar na clássica camisa de força (dois ou três treinos por semana e um jogo ao fim-de-semana com a pressão do resultado), possam praticar futebol como sempre quiseram: por diversão, com os amigos”, explica Thomas Valle.
Na FSGT, qualquer pessoa pode montar uma equipe. Os jogos, na maioria das vezes disputados durante a semana, geralmente são autorregulados. Uma prática menos restritiva, cujo espírito geral atrai muitos desapontados com a “3F” (apelido da Federação Francesa de Futebol).
“Nos últimos anos, desenvolveram-se muitas práticas alternativas à 3F, por exemplo, o ‘five’ [jogo de cinco contra cinco em campos pequenos, geralmente em canchas privadas, nota do editor], confirma Christophe Lepetit. A preocupação é que estas práticas se baseiem na ideia: ‘jogo quando quero e com quem quero’, que não é o espírito do futebol clássico, que exige um compromisso coletivo duradouro e permite uma maior diversidade social”, prossegue.
O outro futebol não é jogado apenas em novos campos, mas também nas arquibancadas. Há muito tempo, alguns torcedores de clubes históricos desertaram das fileiras dos clubes financeirizados. Assim, os torcedores do Manchester United criaram um novo clube (o FC United of Manchester – atualmente na 7ª divisão inglesa) para redescobrir a atmosfera e o espírito popular do futebol.
Na França, alguns preferiram seguir o Red Star (clube de Saint-Ouen, perto de Paris) em vez do rico PSG. Outros apoiam o projeto social do Lyon-La Duchère (que joga na quarta divisão) em vez do muito capitalista Olympique Lyonnais.
Esses “hipsters do futebol”, como às vezes são chamados, podem se alegrar: a maioria das competições amadoras ou semiprofissionais não será interrompida durante a Copa do Mundo no Catar. À pergunta: “E você, vai boicotar?”, alguns responderão: “Boicotar o quê? Tem jogo do La Duchère contra o Annecy esta noite e estarei lá, claro!”.
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Ainda podemos salvar o futebol? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU