16 Novembro 2022
O jornalista Quentin Müller foi ao encontro dos trabalhadores migrantes na zona industrial de Doha e relata em livro as condições de vida desses grandes esquecidos da Copa do Mundo de 2022.
A entrevista é de Aymeric Le Gall, publicada por 20 Minutes, 14-11-2022. A tradução é do Cepat.
Quentin Müller e Sebastian Castelier publicaram recentemente o livro Les esclaves de l’homme-pétrole (Os escravos do rei do petróleo), publicado pela editora Marchialy. Durante cinco anos, os dois jornalistas cruzaram a Península Arábica, o Chifre da África e o subcontinente indiano para coletar um significativo número de testemunhos de trabalhadores imigrantes nos países do Golfo e, especialmente, no Catar.
Livro "Les esclaves de l’homme-pétrole" | Foto: Divulgação
Eles destacam as condições de vida e de trabalho dessas pessoas que fugiram da miséria de seus respectivos países para ganhar a vida de alguma forma (muito) mal como trabalhadores nas obras da Copa do Mundo, como seguranças ou como domésticas em famílias árabes ricas.
Privados de seus passaportes e explorados à exaustão, inclusive até a morte, esses homens e mulheres serão os grandes esquecidos da Copa do Mundo que começa neste domingo. Para Quentin Müller, que aceitou responder às perguntas de 20 Minutes, trata-se pura e simplesmente de uma “neoescravidão” que a Copa do Mundo permitiu colocar sob os holofotes.
Você são dos poucos jornalistas que visitaram a zona industrial nos arredores de Doha, onde estão alojados centenas de milhares de trabalhadores migrantes. O que vocês descobriram ali?
A primeira coisa que chama a atenção é o contraste. Você vai de Doha – uma cidade linda com canteiros de flores por toda parte, shoppings gigantescos, pisos folheados a ouro, marcas de luxo, todo mundo é rico, não tem um mendigo – à zona industrial. Ela está distante, é de difícil acesso, não tem metrô, não há sinalização, nada indica a existência de tal área. Você tem que encontrar o famoso ônibus que os trabalhadores africanos e asiáticos pegam quando chegam ao Catar, e isso não é fácil. E ali o contraste é violento.
Você se sente como se tivesse desembarcado em uma civilização que tenta sobreviver após uma guerra nuclear, onde toda a vida foi destruída. E você vê esses blocos de prédios abarrotados de africanos e asiáticos, mas onde você não encontra um único árabe, um único branco. E florestas de caminhões, máquinas, guindastes. Os caras moram ali entre as máquinas, porque são considerados como tais. Nada está nas normas, claro, então às vezes você tem acomodações que queimam, mas nada disso sai na mídia porque nada se destaca sobre o que está acontecendo ali.
Você ficou surpreso ao descobrir isso, apenas alguns meses antes do início da Copa do Mundo?
Sim, eu fiquei extremamente chocado porque eu não esperava encontrar isso. Fui lá em fevereiro e abril, em pleno ano da Copa do Mundo! Era de se esperar que no ano da Copa do Mundo não haveria mais tudo isso, que o governo se esforçaria até para esconder esses trabalhadores. Mas não, me deparei com coisas que nunca tinha visto em outras reportagens, coisas que deveriam ter sido abolidas desde as últimas reformas trabalhistas em 2020. A mão de obra está sendo explorada até o fim, até o esgotamento do corpo e da mente e substituída com um simples estalar de dedos. Já vi caras acorrentados nove meses de trabalho, doze horas por dia, sete dias por semana sem a menor folga... É um regime trabalhar-dormir ininterrupto, e não é dormir em um quarto confortável e privado, estamos falando de dormitórios insalubres.
Quando o presidente da Federação Francesa de Futebol (FFF) Noël Le Graët fala de simples “pinceladas” a dar em sua entrevista ao programa Complément d'Enquête, como você reagiu?
Pfff, o que posso dizer... É a realidade que fala, não ele. Eu fui lá e não podia acreditar no que estava vendo. Os trabalhadores são, às vezes, oito em 15m², não lhe explico a promiscuidade, a falta de privacidade. De modo geral, não há cozinha, eles cozinham em seus quartos. Daí os cheiros, as baratas, sem falar nos percevejos, no mofo, na poeira trazida tanto pela areia do deserto quanto pela poeira provocada pelas fábricas ao redor. Essa poeira entra no ar condicionado já que os filtros nunca são trocados. Isso quando os condicionadores de ar funcionam, o que raramente acontece.
O que chama a atenção no livro de vocês é de fato essa poeira que os trabalhadores respiram continuamente.
Quando há tempestades de areia, o que acontece com frequência, há partículas no ar e você respira isso. Quando você engole, sente pequenos cristais em seus dentes. E se tiver a infelicidade de seu dormitório ficar do lado de uma usina de concreto, é pior ainda. Isso faz de você um coquetel de poluição horrível. Ela se infiltra em todos os lugares. Nos quartos, os caras protegem as camas com cobertores para que os lençóis não estejam sujos quando chegam em casa depois do trabalho. A poeira está em todos os lugares, impossível de se livrar; nos móveis, nas roupas, nos utensílios de cozinha.
No programa Complément d’Enquête sobre o Catar transmitido no canal France 2, também vemos imagens desse “mercado de descartáveis”. Você esteve lá?
Sim, é indescritível. Vemos uma multidão de pessoas brigando para comprar produtos vencidos porque são mais baratos e porque não têm a alimentação paga pela empresa deles.
O acesso à água potável também é um problema diário para esses trabalhadores.
Sim, faz parte dos micro-ganhos que as empresas obtêm. Não lhes dão garrafas de água mineral porque sairia muito caro. Isso é o ultracapitalismo em sua forma mais detestável. Na chegada, isso cria um monte de doenças crônicas, diarreia, isso estraga seus rins e, eventualmente, eles são forçados a fazer diálise ou transplantes de rim quando retornam ao seu país de origem. No entanto, as empresas não arcam com esses custos. Muitos morrem quando voltam para casa.
O que você pensa do famoso número de 6.500 mortos apresentado pelo jornal The Guardian na época?
Este número está muito longe da realidade no sentido de que apenas são contabilizados os canteiros de obras diretamente ligados à Copa do Mundo, portanto os estádios, mas não o metrô, o aeroporto de Doha, estradas ou hotéis. Além disso, estes são apenas números de algumas embaixadas, mas não levam em conta as Filipinas e os países do Chifre da África, Quênia, Sudão, Etiópia. E não são contabilizados aqueles que morrem quando retornam aos seus países de origem, e são muitos. O número de 6.500 é extremamente vago, mas teve o mérito de chocar a opinião pública e mexer com as consciências. Prefiro dizer que há 10.000 trabalhadores asiáticos que morrem anualmente no Golfo.
Você pensa que essa é uma das razões pelas quais o Catar reiterou recentemente sua recusa em criar um fundo de compensação para as famílias das vítimas?
Sim, porque se tiverem que indenizar todas essas famílias, o que isso implica? Que sabemos quantas famílias perderam um ou mais membros e, portanto, em última análise, quantas mortes ocorreram no total em canteiros de obras vinculados à Copa do Mundo. Além disso, seria abrir a caixa de Pandora, porque se você começar a indenizar as famílias das pessoas que morreram em obras ligadas à Copa do Mundo, seria necessário estender a outras obras que não estão diretamente ligadas ao evento, como a ampliação do aeroporto, a criação da cidade de Lusail e as obras do metrô.
Como você reage quando é acusado de atacar o Catar?
Basicamente, não temos nada contra o Catar, apenas denunciamos os fatos. Além disso, o livro não fala apenas do Catar, mas também de todos os seus vizinhos, Arábia Saudita, Bahrein, Emirados, Omã, Kuwait. Com Sébastien, queríamos falar sobre um sistema de comércio triangular entre a Península Arábica, o Chifre da África e o subcontinente indiano. Um sistema de neoescravidão, nada mais. Você tem países que nascem, crescem, enriquecem e que usam parte dessa mão de obra barata, desses escravos modernos. E este não é um problema inerente ao Catar, é um sistema estabelecido em toda a região. A Copa do Mundo nos permitiu apresentar esse tema que, até então, era pouco conhecido do grande público, mas a Copa do Mundo é a árvore que esconde a floresta.
Por que você fala de neoescravidão?
Falamos de neoescravidão no sentido de que esses trabalhadores têm consciência de algumas coisas em que estão se jogando. As pessoas que encontramos no Chifre da África nos contaram que seus ancestrais já eram escravos dos árabes da Península Arábica e que estão voltando para lá apesar de tudo porque não têm outra escolha. É uma questão de sobrevivência porque eles não têm os meios para ganhar a vida em seu país. Então eles deixam que seus filhos e/ou suas filhas partam sabendo que serão explorados, que podem ser espancadas e estupradas.
Um dia um cara me disse essa frase: “é a fome que apaga a história”. Com essa ideia de que o passaporte, que lhes é confiscado assim que chegam ao país, substituiu as correntes. Quando você ouve isso, você fica com raiva. Tanto mais indignado que antes de partir, lendo isso e aquilo que se dizia sobre o país, sobre a melhoria das condições de vida e de trabalho dos estrangeiros, disse a mim mesmo que podia ser verdade. E se você não for à zona industrial, pode dizer a si mesmo que é o caso. É aqui que se percebe o poder da propaganda deste país no exterior.
Você diz no início do livro que recebeu ofertas para pagar a viagem ao Catar para escrever artigos sobre o país.
Sim, tive um encontro neste magnífico hotel nos Champs-Elysées, o Peninsula, com um cara que já havia conhecido em 2017, que trabalha na Comissão de Direitos Humanos do Catar. Ele me disse: “Nós conhecemos vocês, nós gostamos de vocês, sabemos que vocês estão fazendo um bom trabalho. Neste momento, na França, estamos sendo muito criticados na mídia francesa, tudo é falso, vocês sabem que fizemos muito para melhorar a questão dos direitos humanos, mesmo que nem tudo esteja perfeito”. E ele continuou: “Gostaríamos que vocês fossem ao Catar para escrever artigos positivos sobre as melhorias que foram feitas no país. E, claro, nós vamos pagar por isso, não há problema”.
É assim que eles trabalham, eles trazem jornalistas, mas também pesquisadores, influenciadores, mostram a eles o que querem mostrar, pagam e em troca esperam que preguem o bom discurso em seu país. São pessoas educadas, que sabem lisonjear egos, e são pessoas para quem o dinheiro não existe. Se você tem um projeto que lhe interessa na França, eles podem colocar milhões nele sem nenhum problema. Dissemos a eles que queríamos ser convidados ao Catar para fazer algumas reportagens, mas que nos recusávamos a ser pagos por nossos artigos. A partir daí, nunca mais tivemos notícias deles.
Quando vemos tudo o que foi dito e escrito sobre o Catar e os trabalhadores migrantes nos últimos meses, os apelos ao boicote, os protestos de ONGs e federações, nos perguntamos se esta Copa do Mundo já não é um fiasco para o Catar. O que você acha?
A pergunta a ser feita é esta: o Catar realmente quer ter o consentimento da opinião pública internacional? Eles precisam que o Sr. ou a Sra. Dupont falem bem de seu país? Não, esse não é o objetivo deles. Seu objetivo é ter ao seu lado as grandes potências mundiais para não ficarem isolados em uma região onde estão cercados por vizinhos que os odeiam e gostariam de vê-los desaparecer. Ter uma base militar americana em seu solo os protege de uma invasão da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos. Ter países europeus amigos também os protege. Eles querem falar com os poderosos e pessoas influentes.
Além disso, quando você vê o preço dos ingressos para essa Copa do Mundo, o preço dos hotéis, você entende que não é turismo de massa que eles querem. Eles querem uma elite conquistada que os escute, chefes de Estado, grandes influenciadores, capitães da indústria, políticos, etc. Há também uma história de influência, de imagem, eles querem mostrar que são melhores que o Bahrein, os Emirados, a grande Arábia Saudita. Com o resto, o Sr. e a Sra. Zé Ninguém, eles literalmente não se importam. Quando o embaixador do Catar na Copa do Mundo fala sobre a homossexualidade como desvio, você entende que o que o grande público pensa deles é a menor de suas preocupações.
Você acha que devemos boicotar esta Copa do Mundo não assistindo aos jogos? Você vai assistir aos jogos?
Não quero, da minha posição de jornalista que escreveu sobre o assunto, pedir às pessoas que não assistam aos jogos. Eu não quero ser o moralizador que diz às pessoas: “não, mas você não percebe o que está acontecendo lá”. Seria uma posição pouco pedagógica e particularmente arrogante. Se as pessoas quiserem assistir, deixem que o façam, mas se puderem ter em mente como esta copa foi feita, a que preço foi feita, seria bom. Eu vou assistir, mas no fundo digo a mim mesmo que se eu não assistir, se menos gente assistir, haverá menos audiência e isso afetará a FIFA e será, talvez, levada a refletir melhor sobre as escolhas dos países que sediarão os jogos nos próximos anos. É complicado.
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Copa do Mundo 2022: “No Catar, os passaportes substituíram as correntes”. Entrevista com Quentin Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU