10 Janeiro 2023
"Por mais importantes que sejam, as medidas anteriores referem-se à política institucional. Elas não dispensam uma resposta popular. Quem quer mudar o Brasil não poderá fazê-lo apenas por atos do governo – precisa desejar ser maioria nas ruas", escreve Antônio Martins, jornalista, em artigo publicado por OutrasPalavras, 09-01-2023.
A devastação nacional promovida pelo bolsonarismo tem agora uma metáfora imagética adequada. As paredes de vidro estraçalhadas do Palácio do Planalto. A fogueira ateada no Salão Verde do Congresso. O busto de Ruy Barbosa destruído no STF. As obras de arte perfuradas a golpes de estilete – tudo é símbolo de um projeto que tentou tirar proveito da crise brasileira para convocar ressentimentos e recalques e fazer aflorar o que o país tem de pior.
Mas as consequências desta tentativa troglodita de golpe de Estado ainda não são conhecidas: elas dependerão da resposta que a sociedade oferecer nos próximos dias. Uma postura complacente estimulará novos atentados, sinalizará fraqueza e tornará o governo refém dos extremistas. Uma atitude firme reforçará a ideia – já evocada por Lula – de que o Brasil chegou ao fundo do poço e precisa olhar para si mesmo e reconstruir-se em novas bases. No campo jurídico, o ministro Alexandre de Moraes adotou nesta madrugada um conjunto de medidas corajosas que começa com o afastamento do governador do Distrito Federal e a ordem para desocupar, em 24 horas, todos os acampamentos montados diante dos quartéis. A ação política, porém, ainda precisa ser construída. Eis, a seguir, três contribuições a ela.
Nem o caos comove os bolsonaristas enquistados nas Forças Armadas. Na noite de ontem, os extremistas que devastaram a Praça dos Três Poderes voltaram a ser acolhidos no QG do Exército em Brasília, que os protegeu da Polícia Militar (já sob intervenção federal), como relatou o repórter Paolo Capelli, no Metrópoles. Foi a sequência de um longo flerte. Há semanas, comandantes de alguns quartéis acumpliciam-se com golpistas que acampam a seu redor, fingem-se de cegos diante das ilegalidades cometidas e chegam a confraternizar com os líderes da molecagem. Segundo o jornalista Lauro Jardim, “boa parte dos radicais acampados” é “composta de militares reformados e familiares de militares da ativa”.
E as raízes do conluio são anteriores. A ocupação por militares de milhares de cargos civis na Esplanada dos Ministérios não se deveu a um capricho. Foi parte importante do projeto de destruição nacional de Bolsonaro, como mostrou o cientista político Josué Medeiros em entrevista a Outras Palavras. Era preciso colocar, no comando de serviços públicos cruciais (do ministério da Saúde à proteção das terras indígenas), funcionários dispostos a contrariar a própria natureza das funções que exerciam para seguir com “fidelidade e obediência” as ordens do “capitão”.
Esta subordinação – que evidentemente persiste – de parte dos militares a uma corrente política golpista precisa ser apurada e revertida, inclusive para preservar as Forças Armadas. A desocupação dos cargos públicos indevidamente preenchidos precisa ser completa – assim como apurado e punido o apoio de comandantes a atos golpistas. Bem distinto, porém, parece ser o projeto do ministro da Defesa, Múcio Monteiro, como explica Gilberto Maringoni. Filiado ao PTB de Roberto Jefferson e Padre Kelmon, e com origem política na Arena (partido de sustentação à ditadura pós-64), Múcio foi nomeado por Lula numa espécie de acordo com os comandantes militares bolsonaristas.
Este aceno pacificador evidentemente fracassou. Não bastasse seu passado, o ministro contemporizou todo o tempo com os golpistas. Qualificou seus acampamentos de “manifestações democráticas”. Disse ter neles “amigos e parentes”. Acobertou e alimentou, na prática, o complô entre extremistas e militares. Precisa ser substituído por alguém disposto a desbolsonarizar as Forças Armadas. O processo pode começar, como sugere o ex-deputado Manuel Domingos Neto, com a investigação e responsabilização de três oficiais claramente identificados com os acontecimentos de ontem: Júlio César Arruda, comandante do Exército; Gonçalves Dias, chefe do Gabinete de Segurança Institucional; e o tenente-coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora, comandante do Batalhão da Guarda Presidencial.
Entre as imagens mais emblemáticas da tentativa de golpe de 8 de janeiro estão as de viaturas da PM do Distrito Federal escoltando os extremistas até o local em que cometeriam seus crimes; e de diversos integrantes da tropa confraternizando e fotografando-se, entre sorrisos, com os delinquentes. Chocantes, estes fatos são o desfecho de uma omissão criminosa. Começou em 12 de dezembro, quando a polícia de Brasília assistiu impassível a um badernaço que incluiu incêndio de carros e tentativa de invasão da PF. Prosseguiu com a nomeação, para secretário de Segurança Pública, de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça envolvido nos atos mais antidemocráticos de Jair Bolsonaro. E chegou ao ápice quando, tendo amplo conhecimento dos preparativos para a tentativa de golpe, as autoridades policiais nada fizeram.
A intervenção federal na Segurança Pública do Distrito Federal e o afastamento por três meses do governador Ibaneis Rocha são uma primeira punição indispensável. Mas a conivência de parte das polícias com atos antidemocráticos é anterior e generalizada no país – como ficou evidente, por exemplo, no convívio amistoso da Polícia Rodoviária Federal e das PMs com os arruaceiros que bloquearam, por semanas, centenas de rodovias.
Há uma razão clara para isso: a lógica do fascismo está presente na atitude cotidiana das polícias brasileiras. A simpatia das corporações com os vândalos que pregam e praticam a violência é proporcional ao desprezo e ao ódio nutridos pelos pobres, pelos negros, pelos jovens periféricos. Tendo herdado a mentalidade colonial e racista dos capitães do mato, a formação policial cultiva a ideia de que as maiorias devem ser controladas, se preciso com força bruta; os privilégios e as hierarquias são os fundamentos da sociedade; e a democracia é um luxo perigoso.
Enfrentar estes preconceitos exigirá esforço prolongado – mas o escândalo da inação policial diante de tentativa de golpe abre brechas para um começo. Além da necessária apuração das responsabilidades, a intervenção federal na Segurança Pública de Brasília poderia resultar em alguma medida transformadora que não se esgote no curto prazo. Por exemplo, incorporar movimentos sociais, especialmente antirracistas, à corregedoria das corporações. Ou iniciar a transformação da formação policial, este processo tão desconhecido das sociedades e tão claramente relacionado a métodos que precisam mudar.
O Brasil precisa de uma nova polícia e a luta por ela será árdua – mas os acontecimentos das últimas semanas deixaram esta necessidade mais clara do que nunca. A oportunidade de começar a transformação não merece ser desperdiçada.
Por mais importantes que sejam, as medidas anteriores referem-se à política institucional. Elas não dispensam uma resposta popular. A reconstrução nacional em novas bases não poderá ser feita principalmente por iniciativas das instituições – sabidamente conservadoras e comprometidas com as estruturas oligárquicas do país. Quem quer mudar o Brasil não poderá fazê-lo apenas por atos do governo – precisa desejar ser maioria nas ruas.
Desde ontem, estão pipocando, em várias cidades, as convocações parciais a atos contra o atentado fascista. É excelente que se multipliquem. Mas a vasta galáxia dos movimentos sociais brasileiros e dos partidos que se identificam com eles pode almejar a algo maior: uma jornada nacional pela Democracia, Igualdade e Reconstrução do país. Há clima para isso, como demonstram, por exemplo, as enormes manifestações que comemoraram a vitória de Lula, na noite de 30 de outubro. O objetivo deveria ser reunir os participantes das lutas tradicionais e das emergentes. Dos sindicatos aos dissidentes sexuais. Os feminismos e os antirracismos. Os que lutam por saúde, educação, trabalho, casa, transporte, cultura, ciência. Os que defendem a Amazônia e o planeta. Os que temem ser humilhados pela polícia ou mortos pelos machistas. Os que não sabem se terão, amanhã, o que comer.
Para ter potência, a convocação deveria inspirar-se na celebração da diversidade brasileira que marcou a posse de Lula. Política e Cultura. Falas e música. Protagonismo compartilhado. Nenhuma palavra de ordem, nenhum caminhão de som sobrepondo-se aos demais. Quem poderia convocar uma jornada assim?
Há poucos meses, na Argentina, o próprio governo encarregou-se de fazê-lo. Em resposta à tentativa de assassinato de Cristina Kirchner, decretou-se feriado nacional e as ruas expressaram a indignação. Talvez tenha-se aberto, no Brasil, espaço para algo de outro tipo. Uma articulação inovadora dos movimentos sociais de todo tipo. Uma ação que, embora solidarizando-se com o governo vítima da tentativa de golpe e estabelecendo diálogo com ele, tenha caráter independente. Uma iniciativa que comece nos avanços organizativos que já temos – as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, por exemplo – mas supere seus limites.
A reconstrução nacional, após muitos anos de devastação, será árida e prolongada – estava claro desde o início. A tentativa de golpe deste domingo comprova a dificuldade da tarefa, mas também revela que, havendo imaginação, não faltarão caminhos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Três respostas ao golpe fracassado. Artigo de Antônio Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU