País precisa aprender a frear os absurdos de Bolsonaro, que já se projeta como candidato em 2026.
A entrevista é de José Eduardo Bernardes, publicada por Brasil de Fato, 08-11-2022.
Quando surgiu como candidato à presidência da República em 2018, muitos foram taxativos ao afirmar que o então deputado federal Jair Bolsonaro (PL) havia caído de paraquedas naquele pleito, sem um projeto político consolidado e sem ideias para se perpetuar no poder.
No entanto, as evidências dizem o contrário. Os movimentos realizados por Bolsonaro e seu clã demonstram que a estruturação de suas ideias políticas e a radicalização de sua base a partir de teses da extrema direita, foram planejadas e executadas com certa precisão.
“Da mesma maneira como Jair Bolsonaro sempre esteve em campanha, a forma como ele se coloca em processo de formatura de turmas na AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), a forma como ele se apresenta ao longo do processo do impeachment de Dilma Rousseff, a forma como ele disputa o processo eleitoral, e a forma como ele executa o seu plano governamental, ele sempre esteve em campanha eleitoral”, explica Odilon Caldeira Neto, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Pesquisador da extrema direita e do fascismo brasileiro, Caldeira Neto explica que, inclusive, “o Bolsonaro que perde a eleição é um Bolsonaro que já é um candidato em 2026”.
“Efetivamente, essa dinâmica institucional e da mobilização das ruas, fornecem uma fidelização da sua base. Seja a base mais radical ou eventualmente a base efetivamente eleitoral. Me parece que apostar na tese de que o bolsonarismo tende a se tornar um fenômeno anti-institucional, é esquecer que, ao longo do processo de gestação e execução do projeto político de Bolsonaro, essas questões disruptivas, as questões próprias do campo político institucional, sempre estiveram estabelecidas em torno de articulações políticas e de mobilização das suas bases”, comenta o historiador.
Convidado desta semana no BDF Entrevista, Caldeira Neto aponta que haverá uma intensa disputa por protagonismo político no PL, legenda utilizada por Bolsonaro para concorrer à presidência nestas eleições.
Presidido por Valdemar Costa Neto, o PL tende a abrigar Bolsonaro e, inclusive, lhe entregar um cargo na direção partidária. Com mais de 58 milhões de votos nas eleições deste ano, Bolsonaro deverá lutar por protagonismo dentro da legenda.
“Não me parece crível que Bolsonaro irá aceitar uma desbolsonarização do partido em absoluto. Bolsonaro tende a buscar efetivamente uma centralidade nesse campo mais ruidoso da extrema direita”, comenta Caldeira Neto.
“O PL efetivamente não é um partido integralmente bolsonarista, porque não passou por um processo intenso de bolsonarização. Mas os políticos eleitos no laço do bolsonarismo, numa identidade bolsonarista, imagino que não somente vão continuar bolsonaristas, como são também elementos efetivos da articulação para uma campanha contínua de Bolsonaro e também dessas próprias lideranças, como Damares e Tarcísio”, completa o professor da UFJF.
Na conversa, Caldeira Neto lembra ainda que os próximos anos serão decisivos para o Brasil colocar entraves ao avanço autoritário perpetrado pelo bolsonarismo.
“O Brasil tem, por uma certa definição, pouca vontade de estabelecer disputas e discussões sobre relações com dinâmicas autoritárias recentes. A questão de como ocorre a transição democrática me parece bastante nítida. O então deputado Jair Bolsonaro não teve entraves ao longo de toda a sua vida política, seja quando se manifestava em questões sobre a ditadura, o golpe de 1964, ou eventualmente buscava propor ideias em torno do assassinato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ou mesmo como homenageava torturadores. Esses entraves precisarão ser mobilizados”.
Queria começar esse nosso papo falando tão somente do que ficaria pós bolsonarismo, mas infelizmente a gente ainda está vivendo o auge desse movimento de extrema direita. Onde é que essa onda de clamor por intervenção federal pode parar?
O bolsonarismo, ao longo dos últimos anos, se manifestou como um fenômeno bastante diversificado. Se de um lado existiu uma verve, ou um viés mais político institucional que deu um pouco da base de sustentação do governo Bolsonaro, da presidência de Jair Bolsonaro ao longo dos quatro anos, é evidente que para além dessa esfera exclusivamente institucional, existiam também outras facetas das direitas brasileiras e particularmente das extremas direitas, que buscavam tensionar processos de rupturas, processos de reformulação mesmo do próprio governo Bolsonaro.
Neste momento que sucede a perda, a derrota do processo eleitoral, o bolsonarismo tende a se moldar de acordo com as suas diversas facetas constituintes. De um lado, a dinâmica mais institucional, aceitou em certa medida os resultados das urnas e já integra o processo da transição política, ou pelo menos de uma faceta mais institucional do bolsonarismo.
Agora a verve mais disruptiva, eventualmente mais fascizante do próprio bolsonarismo, investe em processos e disputas por vias especificamente antidemocráticas. Então, seja a questão da ocupação das rodovias como vimos nos últimos dias, seja a questão do clamor pela falsa intervenção militar constitucional, elas fornecem um retorno do bolsonarismo às origens.
Antes de ser efetivamente o governo Bolsonaro, o bolsonarismo ou aquilo que a gente convenciona chamar de bolsonarismo, ele é uma força da extrema direita. Ele opera em torno de mitos mobilizadores da extrema-direita, que inclusive antecedem ao próprio bolsonarismo. Então esse bolsonarismo pós governo Bolsonaro tende a estabelecer processos de retomada e intensificação dessas pautas mobilizadoras.
Em determinados momentos são as recusas às teses de segurança das urnas eletrônicas, em outro momento são questões relacionadas à busca por processos de intervenção militar, enfim. Essas pautas mudam, mas elas permanecem afeiçoadas a questões que orbitam uma certa cultura política autoritária e, particularmente, as dimensões mobilizadoras do extremismo de direita no Brasil.
Muita gente dizia que o bolsonarismo resistiria, de alguma maneira, mas que institucionalmente, por conta da falta de tato do próprio Bolsonaro e da sua família com os partidos políticos, a falta de criação de um ambiente institucional pra que ele se promovesse, talvez o bolsonarismo acabasse de maneira institucional pós eleição. Mas os movimentos que estão sendo feitos agora indicam que existe a ideia de colocar o institucional e as ruas, a maneira como o bolsonarismo se vê no dia a dia, no cotidiano, em pé de igualdade. É isso mesmo, Odilon?
Da mesma maneira como Jair Bolsonaro sempre esteve em campanha, a forma como ele se coloca em processo de formatura de turmas na AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), a forma como ele se apresenta ao longo do processo do impeachment de Dilma Rousseff, a forma como ele disputa o processo eleitoral, e a forma como ele executa o seu plano governamental, ele sempre esteve em campanha eleitoral, particularmente para a presidência. O Bolsonaro que perde a eleição é um Bolsonaro que já é um candidato em 2026.
Então, efetivamente, essa dinâmica, digamos, institucional e uma certa dinâmica da mobilização das ruas, elas fornecem, em certa medida, uma fidelização da sua base. Seja a base mais radical ou eventualmente a base efetivamente eleitoral. Me parece que apostar na tese de que o bolsonarismo tende a se tornar um fenômeno anti-institucional, é esquecer que, ao longo do processo de gestação e execução do projeto político de Bolsonaro, essas questões disruptivas, as questões próprias do campo político institucional, sempre estiveram estabelecidas em torno de articulações políticas e de mobilização das suas bases.
Por mais que eventualmente bases do bolsonarismo, digamos, figuras intermediárias do bolsonarismo, façam um processo de uma retomada das suas pautas mais antidemocráticas, isso não quer dizer que essas pautas antidemocráticas não possam estar conciliadas com um projeto político eleitoral de Bolsonaro.
Se figuras como Damares Alves (Republicanos), o astronauta Marcos Pontes (PL) e outras figuras como o próprio Tarcísio [de Freitas] (Republicanos) estabeleçam um certo respeito à dimensão institucional da democracia brasileira e o respeito aos resultados eleitorais, eles fazem parte de um componente de extremismo de direita que mobiliza suas bases, mobiliza as suas pautas e eventualmente pode estabelecer processos de capitalização política.
Às vezes me parece que essa questão seja mais um recuo estratégico para a retomada das suas pautas mobilizadoras. Porque a derrota impõe a necessidade de uma radicalização, impõe uma necessidade dessa mobilização constante, justamente para não esfriar os ânimos, os processos, inclusive de fidelização política, os processos de radicalização constante que foram a tônica do próprio bolsonarismo. Mas vislumbra-se, ainda sim, uma dimensão eleitoral futura, ou seja, essas questões acabam sendo estabelecidas de uma forma substancial, intrínsecas uma à outra.
Qual foi a brecha no espaço tempo que proporcionou essa insurreição do fascismo no Brasil? A gente sabe que o integralismo foi muito presente e forte no começo do século passado, mas até 2018, se não havia uma democracia plena no Brasil, me parecia que a grande maioria da população aceitava parte dos contratos democráticos, com resistências, sem dúvida nenhuma. Essa parcela da população sempre flertou com a extrema direita, Odilon?
Eu diria que uma parcela significativa da população brasileira sempre flertou com teses da extrema direita, ou mesmo com o projeto político oriundo, em certa medida, influenciado pelo fascismo. Essas questões sempre estiveram presentes, mas em contextos de alguma normalidade democrática, ou em processos efetivos de uma solidez democrática esses grupos ou essas tendências eram diminutas.
Me parece interessante pontuar que uma cultura política, ou elementos de uma cultura política autoritária, ou efetivamente fascista fazem parte do caldo cultural político brasileiro, sobretudo dos grupos afeiçoados nessas medidas. Teorias da conspiração, forma de enxergar a política com arena de batalha, o uso do anticomunismo como elemento de mobilização e mais do que um elemento de mobilização, um fenômeno político a ser extirpado, aquilo que se entende como comunismo. São elementos que, em certa medida, sempre estiveram presentes de uma forma central ou mesmo, digamos, mais subterrânea na história política brasileira.
Ao longo dos últimos anos, o antipetismo que foi gestado, e é necessário frisar que foi gestado para além dos setores próprios, ou digamos, de propriedade da extrema direita, forneceram elementos de sociabilidade, de solidariedade e de remetência histórica ao anticomunismo, que antecede ao próprio antipetismo.
Teses que estabeleciam medidas de ruptura, teses que criminalizam a prática política do que se entendia como um petismo, mais efetivamente como campo progressista ou mesmo a própria política democrática brasileira, forneceram um elo de sociabilidade, um elo de retomada desses elementos culturais e políticos.
Se o antipetismo acaba sendo um fenômeno catalisador de pautas e mitos mobilizadores da extrema direita brasileira, existem processos políticos pontuais em que esse processo estabelece chaves, ou pelo menos a não existência de barreiras para a articulação efetiva dessas dinâmicas de mobilização da extrema direita e suas pautas antidemocráticas.
O não reconhecimento, ou a suspensão que foi mobilizada por Aécio Neves (PSDB-MG) ao longo do processo da segunda eleição de Dilma Rousseff, é efetivamente o elemento que estabelece um ponto de referência concreta da via política para essas pautas. Enquanto o antipetismo fornecia, digamos, uma dinâmica de solidariedade e sociabilidade desses elementos culturais, que em certa medida passavam também pelo fascismo, mas sobretudo pela extrema direita, a dinâmica institucional política democrática brasileira passa a colocar a democracia em suspensão e esses grupos estabelecem processos de solidariedade com campos mais amplos dos setores conservadores, dos setores nacionalistas.
Em certa medida, esse antipetismo que via na busca por rupturas institucionais uma forma de fazer política, é alçado a processos de centralização ou centralidade política de setores da democracia brasileira. Ao longo desse processo, um discurso, uma prática política que era eventualmente marginal - e de fato ela era marginal ao longo da existência da Nova República - passa a ser tomada como um fenômeno central.
Não é de espantar que a figura de Jair Bolsonaro, que não era uma figura de grande referência para as direitas brasileiras, começa a ser tomada com uma referência efetivamente central, seja de atos mais residuais ou de grupos neonazistas, neofascistas, intervencionistas, que passam a diuturnamente fazer elogios, estabelecer processo de certa mitificação política e passa a ser reconhecido pelo campo mais amplo.
Nesse sentido, eu diria que uma via mais cultural e uma via mais institucional, passam a caminhar uma trajetória comum. É uma trajetória da desdemocratização, ou seja, a ruptura, a contestação política, o uso do anticomunismo, do antipetismo como signos, símbolos e processos que vislumbravam a dinâmica, uma hipotética dinâmica de purificação da nação brasileira, não somente do campo político, mas purificação da nação brasileira passam a ser utilizados como elementos mobilizadores.
Nós tivemos figuras como Enéas Carneiro e outros que sempre tiveram como base um discurso ultranacionalista, de extrema direita, mas que se dava de maneira velada. O Enéas disputou diversas eleições presidenciais sempre com respeito aos outros candidatos, com respeito ao debate público e nunca chegou aos extremos como a gente vê agora. As pessoas não se encaixavam, até então, nessa extrema direita, digamos, mais moderada, não é professor?
O caso de Enéas é bastante significativo porque suas candidaturas, a formação do Partido de Reivindicação da Ordem Nacional (Prona) não são apenas um projeto político de um indivíduo. Evidentemente que Enéas Carneiro tinha uma centralidade política, mas a composição do Prona e a sua relação com grupos militares, com grupos neofascistas, a relação com grupos internacionais da extrema direita, mostra um pouco a dinâmica da rearticulação da extrema direita ao longo do processo da transição democrática, da redemocratização no início da Nova República.
O espaço era diminuto, de fato. O Prona foi um partido que é possível ser chamado e reconhecido como nanico, mas ele forneceu uma esfera política de sociabilidade, de integração de grupos que viam a democracia como um problema, mas efetivamente buscavam se organizar em torno de vias democráticas.
O projeto político do Prona, que fornece em certa medida algumas referências para o projeto político do bolsonarismo, do governo do Bolsonaro - evidentemente que há elementos de ruptura bastante nítidos, gritantes eu diria - era um projeto político muito marginal, diminuto justamente porque a capacidade política não tinha muito espaço para articulação.
Agora, em outra medida, quando se observa a gestação do bolsonarismo, é efetivamente onde o processo de ruptura, de desdemocratização, de negação dos princípios basilares e dos pilares fundamentais da democracia brasileira são reivindicados como negativos, ou seja, a negação de tudo aquilo que se entende com a prática democrática.
Você acredita que há tática e estratégia no bolsonarismo? Porque a gente vê uma série de ações que vão sendo encobertas umas pelas outras, por cortinas de fumaça, trapalhadas, conluios com outros poderes como o Congresso Nacional - e foi assim que ele conseguiu se perpetuar na presidência e não ser deposto. Mas, no final, foram quatro anos que conseguiram abalar a nossa já combalida democracia.
Eu acredito que existe uma efetiva tática. É claro que a forma como os agentes do bolsonarismo, não os atores centrais, mas os agentes, as bases diversificadas no bolsonarismo vão se articular em torno dessas demandas, as quais são instigadas, varia muito.
Nos últimos dias nós vimos, por exemplo, grupos de outrora filiação exclusiva ao bolsonarismo, já fazendo algumas críticas pontuais ao Bolsonaro, colocando em pauta que a questão agora são os militares, que são lideranças hipotéticas de uma ruptura institucional militar.
No entanto, para além, digamos, das proposições divergentes no campo bolsonarista, existe efetivamente uma estratégia e aqui me parece que o bolsonarismo ele bebe não somente das táticas e técnicas da extrema direita global, ou seja, de formas de contestação, de formas de comunicação, a relação com as redes sociais, a memética de algumas proposições ou das formas como agrupamentos se colocam, mas também são influenciados fortemente nas operações psicológicas oriundas do campo militar.
Não é possível olhar o bolsonarismo que vê a intervenção militar numa dimensão de uma militarização efetiva e, em certa medida, total da política brasileira, sem pensar que há também influência das formas como os militares se integram na política, se articulam politicamente e se transformam em processos de militarização da política ou politização dos campos militares e fornecem subsídio para as táticas e técnicas bolsonaristas.
Então, essa questão militar me parece que diz muito respeito das técnicas que são colocadas em práticas pelo próprio campo que evidentemente não pode ser reduzido exclusivamente a partir da sua dinâmica militar, mas tem no seu entorno estratégias de operações psicológicas e de articulações políticas.
Essas questões vindas do campo militar dão algumas tônicas de certos ineditismos, ou pelo menos de tendências mais radicais, que são muito comuns no campo da extrema direita latino-americana, efetivamente a referência às ditaduras civis militares, que são muito mais recentes se colocarmos como ponto de comparação as ditaduras autoritárias ou de tipo fascista existentes no continente europeu na década de 1930 e 1940.
É uma estratégia de retomada de projetos ou de arquétipos de nacionalidade e que veem nessas estratégias processos de purificação da própria política institucional. Então, tem essas particularidades que, em certa medida, não podem ser desconsideradas e dão um certo ineditismo ou radicalismo militarizado, que não se vê de uma forma tão central em países como Estados Unidos, Hungria ou mesmo a Itália, em torno dos seus processos políticos mais recentes.
Falando sobre o Congresso Nacional, a gente imaginava, obviamente, que tanto o Senado como a Câmara Federal, de alguma maneira, seriam dominados por políticas mais conservadoras. Mas o que a gente viu foi um Congresso recheado de ideias de extrema direita. Não me parece que o Lula terá grandes dificuldades em trazer parte do centrão pra governabilidade, o próprio PL por exemplo não é calcado na extrema direita. Mas essa parte ruidosa que fica no Congresso tem força pra seguir tensionando o país?
Olha, Zé, eu acho que é necessário ponderar que isso vai ser estabelecido em torno de disputas políticas dentro das próprias estruturas partidárias. Como você mencionou, como o PL vai organizar essas duas figuras de liderança que existem dentro do partido? Uma é Valdemar [Costa Neto], que efetivamente é a grande liderança, e a outra é Jair Bolsonaro, que aparentemente persistirá como membro do PL, com cargo na estrutura interna.
Não me parece crível que Bolsonaro irá aceitar uma desbolsonarização do partido em absoluto. Então, creio eu que haverá uma disputa em torno do próprio campo, Bolsonaro tende a buscar efetivamente uma centralidade nesse campo mais ruidoso da extrema direita e, em certa medida, isso pode colocar em disputa algumas questões, que são, inclusive, uma particularidade do bolsonarismo.
Por exemplo, se traçamos um paralelo com o caso de [Donald] Trump e do Partido Republicano, o partido foi se transformando, ao longo dos anos e do governo Trump, em um partido fortemente trumpista. A inexistência de um projeto político nítido do ponto de vista partidário do bolsonarismo coloca alguns limites, algumas, digamos, particularidades mesmo do próprio processo.
Ou seja, o PL efetivamente não é um partido integralmente bolsonarista, porque não passou por um processo intenso de bolsonarização. Me parece que haverá uma diminuição do discurso bolsonarista em alguns setores do PL e do próprio centrão, afinal de contas eles estão mais atrelados ao poder do que particularmente ao bolsonarismo.
Mas os políticos eleitos no laço do bolsonarismo, numa identidade bolsonarista, imagino que não somente vão continuar bolsonaristas, como são também elementos efetivos da articulação para uma campanha contínua de Bolsonaro e também dessas próprias lideranças, como Damares, Tarcísio, enfim.
Como eles irão se estabelecer no Congresso, ainda é uma incógnita. É uma questão a se verificar: como esses quatro anos que virão - e esperamos que dentro de uma normalidade democrática - colocarão processos de entraves para articulação do discurso extremista e isso me parece que é uma questão fundamental. O Brasil tem, por uma certa definição, pouca vontade de estabelecer disputas e discussões sobre relações com dinâmicas autoritárias recentes.
A questão de como ocorre a transição democrática me parece bastante nítida. A questão de como o então deputado Jair Bolsonaro não teve entraves ao longo de toda a sua vida política, seja quando se manifestava em questões sobre a ditadura, o golpe de 1964, ou eventualmente buscava propor ideias em torno do assassinato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ou mesmo como homenageava torturadores, esses entraves precisarão ser mobilizados.
Você falava sobre os militares e eu estava vendo um vídeo sobre a ascensão do fascismo no Brasil. A pessoa que estava dissecando o tema citava o pensamento de um filósofo grego, Nico Poulantzas, que afirmava que a estrutura do horror do fascismo é produzida pelas massas e não pelo estado, pelas forças militares. Você acredita que isso é um pouco do que vemos agora, com o bolsonarismo indo às ruas, e as pessoas por elas mesmas tomando as rédeas dessa dita intervenção e puxando, de alguma maneira, as forças militares para o seio dessa confusão toda?
Acho que são duas questões. A tônica popular do bolsonarismo é uma característica fundamental. Nós temos duas lideranças profundamente populares no Brasil atual que entendem de maneira mutuamente excludente o que é democracia e o que é identidade nacional, uma está no campo democrático, efetivamente atribuído a Luiz Inácio Lula da Silva e a outra está no campo autoritário, atribuído a Jair Bolsonaro.
Jair Bolsonaro é uma liderança popular. O seu eleitorado, a forma como mobilizou seus militantes ao longo dos últimos anos, a forma como construiu a sua capacidade política - claro que há um uso estridente da máquina do estado no processo eleitoral, mas a quantidade de votos é uma questão nítida. Nesse sentido, essa dinâmica popular do bolsonarismo é fundamental, porque ela dá tonalidades de uma pretensa autonomia organizacional. Elas têm uma identidade comum.
Agora, em contrapartida, é necessário também olhar com uma certa suspensão a forma como essa questão é construída e entender quais são os representantes do empresariado que mobilizaram caminhoneiros, que mobilizaram profissionais para estabelecer o fechamento das rodovias e estradas do Brasil nos últimos dias. Quais são os setores políticos, ou não, dos militares, que mobilizaram grupos, tendências e um discurso em torno da ideia de intervenção.
Colocar exclusivamente em torno das massas é até possível, afinal de contas, é nessa questão popular que o bolsonarismo se manifesta com a sua base ruidosa e antidemocrática. No entanto, há elementos de articulação que passam pelo campo político, que passam por dinâmicas do empresariado rural e urbano brasileiro, mas também passam por setores, expoentes ou figuras vinculadas em alguma medida ao campo militar.
É claro que os nomes ainda precisam ser averiguados, investigados assim por diante, mas não é apenas a massa com uma certa autonomia organizacional que estabelece esse processo de busca por rupturas. Há processos que, em certa medida, fornecem chaves para que esses grupos se articulem.