19 Setembro 2022
“Para entender a China é preciso um século, e nós não vivemos um século” afirma o papa Francisco em seu retorno do Cazaquistão. Para entender os Estados Unidos, por outro lado, o pontificado de Bergoglio demorou bem menos, se oito anos foram suficientes para substituir a imagem da hierarquia católica empoleirada nas cidades da política pelos rostos de uma igreja mais pastoral, que vive nos subúrbios.
A reportagem é de Marco Grieco, publicada por Domani, 17-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por outro lado, os números falam por si. De acordo com as projeções recentes do Pew Research Center, em 2070 os católicos estadunidenses serão definitivamente uma minoria: as tendências confirmam que em cinquenta anos os cristãos estadunidenses poderão passar de 64 a 35%, e esse declínio já é visível na Europa.
Uma tendência fisiológica, portanto, como explica um interessante ensaio publicado recentemente pelo historiador estadunidense John T. McGreevy, Catolicism: a global history from the French revolution to pope Francis (Catolicismo: uma história global da revolução francesa ao papa Francisco, em tradução livre). Analisando os fenômenos políticos da era moderna, o historiador retrata a igreja como um barco sacudido pelas marés da secularização e pelas ressacas do nacionalismo conservador.
A escolha de rostos progressistas no clero estadunidense, portanto, expressa a vontade do papa de dar um novo equilíbrio a um catolicismo estadunidense cada vez mais tendente ao maniqueísmo, como observava o presidente da CEI, Matteo Zuppi, no L'Osservatore Romano: “Penso na forte polarização política representada na Igreja estadunidense. Mas onde a política usou as categorias pseudoteológicas ou espirituais para poluir a vida eclesial, no final todos perderam”.
A indicação do último cardeal estadunidense, o bispo de San Diego Robert Walter McElroy, diz muito: "Se você pedir para conversar com ele, ele sempre encontra tempo para você, pega seu celular e lhe escuta", conta Dom Bernardo Lara, o primeiro sacerdote ordenado por McElroy em San Diego: “Seu ministério não se limita aos livros, mas é uma dedicação sincera às pessoas. Para mim, encarna o empenho da Igreja com a justiça social”.
A última vez que Francisco indicou um cardeal estadunidense foi há dois anos: o afro-americano Wilton Gregory, arcebispo de Washington, recebeu a distinção. Em 2016 foi a vez de Blase Joseph Cupich e Joseph William Tobin, respectivamente arcebispos de Chicago e Newark, de Kevin Farrell, da diocese de Dallas. Dois deles, Gregory e Tobin, viveram anos difíceis, marcados pelos abusos do pedófilo Theodor McCarrick, símbolo da hierarquia do dinheiro e da política.
O fundamentalismo evangélico inflamado pela presidência de Donald Trump foi apenas abafado por seu sucessor Joe Biden. Apesar de Biden ser o segundo inquilino católico da Casa Branca desde Kennedy, sua abertura a instâncias progressistas como o direito ao aborto e o apoio à comunidade LGBT+ atraiu críticas dos bispos mais conservadores da Califórnia, como Salvatore Cordileone e José Gómez, respectivamente arcebispos das extensas dioceses de São Francisco e Los Angeles, embora sem distinção de cardeal.
Bill Chapman chefia o departamento dedicado aos católicos LGBT+ em Los Angeles e é voluntário na paróquia de Santa Monica, a paróquia mais LGBT-friendly da megalópole californiana: "A escolha de McElroy como novo cardeal também é uma ótima notícia para nossa comunidade" admite.
Desde o longínquo 1986, quando o cardeal Roger Mahony inaugurou o primeiro culto dedicado aos católicos LGBT+, a situação perdeu força com a posse do arcebispo Gomez: "Em primeiro lugar, ele decidiu mudar o nome da associação, batizando-a de Catholic Ministry with Lesbian and Gay persons - sem referência à fé dos fiéis homossexuais. Mesmo que hoje a comunidade não tenha contato direto com o arcebispo, eles não se importam com o que Gómez diz, porque paróquias como Santa Mônica ou Saint Matthew em Longbeach há anos acolhem fiéis homossexuais. E não é uma questão de idade ou de geração: em Santa Mônica, o pastor tem 82 anos!”.
Nos Estados Unidos, a pastoral dos fiéis LGBT+ está entre os aspectos que mais exacerbam as posições entre os chamados católicos progressistas e conservadores e o Papa Francisco está visando uma renovação nessa direção, como mostra a recente renovação do mandato de cinco anos no Dicastério do Vaticano para a Comunicação de James Martin, o jesuíta empenhado na pastoral homossexual.
A escolha de McElroy também vai nessa direção. Aaron Bianco, professor adjunto de teologia na Universidade de San Diego, está bem ciente disso. Depois de abandonar seus estudos como sacerdote, Bianco foi encarregado da gestão da paróquia de St. John, onde lançou iniciativas ad hoc para os fiéis LGBT +. Mas depois de ameaças e assédios homofóbicos, de escritos ameaçando espancamentos na rua, ele desistiu de seu papel preferindo não arriscar sua vida.
Era 2018 e então o bispo McElroy trovejou em sua defesa: “Não há nada de cristão ou católico nas pessoas odiosas e covardes que perseguiram Aaron Bianco e o afastaram de seu ministério”. Hoje Bianco está entusiasmado com sua nomeação: “Desde que o conheço, McElroy sempre acolheu a todos na Igreja, porque entende as necessidades pastorais das pessoas. Com sua nomeação, o Papa Francisco também quer enviar uma mensagem aos crentes que, em outros lugares dos EUA, se sentem rejeitados por aquela igreja que deveria estar próxima deles. Dou aulas na faculdade e alguns dos meus alunos confessam para mim que abandonam a igreja porque não podem aceitar que rejeite a eles ou a seus amigos por causa da orientação sexual. McElroy, por outro lado, não se esconde e conversa com os fiéis, garantindo que todos tenham um lugar dentro da igreja”.
Para Bianco, a escolha de McElroy é uma mensagem aos crentes LGBT+: “Conheci o Papa Francisco no ano passado, à margem de uma conferência na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Quando lhe expliquei que trabalho com católicos gays e lésbicas, convidou-me a continuar”.
A elevação de San Diego à sé cardinalícia também está ligada a outro tema caro ao papa, aquele da imigração, em uma cidade fronteiriça, intimamente ligada à metrópole mexicana de Tijuana: "San Diego e Tijuana podem ser concebido como uma única e grande área de troca. É a cidade estadunidense que simboliza a imigração de fronteira”, explica Don Bernardo Lara. Desde a presidência de Obama, a fisionomia do catolicismo estadunidense mudou muito. Segundo estimativas, hoje 6 em cada 10 católicos vivem no oeste dos Estados Unidos, a área mais afetada pelas ondas migratórias.
A parte leste do país, por outro lado, tem mostrado ao longo das décadas as distorções de uma hierarquia católica protagonista de jogos de poder, destroncada pelo efeito dominó dos abusos, de Boston a Newark e a Nova York: "A escolha de um cardeal em San Diego mostra que o Papa Francisco lê os sinais dos tempos - explica Bianco -. Se olharmos para as suas nomeações, percebemos plenamente a sua visão pastoral, distante do clericalismo”. Mas escolher uma sé como San Diego também representa um desafio para os católicos latinos, principalmente imigrantes hispânicos conservadores, que representam 20,4% dos católicos estadunidenses.
Segundo Don Bernardo Lara, isso ajudará os latinos mais conservadores a derrubar seus próprios muros: “McElroy pode ajudá-los a abrir sua visão sobre os homens, que o Papa Francisco reconhece como Fratelli tutti. É também um grande desafio para o mundo latino-americano”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O plano de Francisco com as comunidades LGBT e latinas para salvar a Igreja EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU