20 Agosto 2022
Um novo relatório explora como a cultura do clericalismo contribui para o encobrimento de abuso sexual por parte do clero na Igreja Católica. O estudo revela uma crença generalizada entre o pessoal da Igreja de que a repressão da sexualidade, dinâmicas de poder doentias em ambientes católicos e visões ultrapassadas sobre gênero entre os líderes da Igreja promovem uma cultura na qual é difícil falar sobre irregularidades.
A reportagem é de Michael J. O'Loughlin, publicada por America, 16-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O relatório “Beyond Bad Apples: Understanding Clergy Perpetrated Sexual Abuse as a Structural Problem & Cultivating Strategies for Change” (“Para além das maçãs podres: Entendendo o abuso sexual perpetrado pelo clero como um problema estrutural e cultivando estratégias para a mudança”, em tradução livre) foi pesquisado e escrito por dois professores da Santa Clara University: Julie Hanlon Rubio e Paul J. Schutz.
Beyond Bad Apples.
Relatório de Julie Rubio e Paul Schutz.
Santa Clara University, 2022.
Disponível neste link, em inglês
A Profa. Dra. Rubio, leciona ética cristã na Escola Jesuíta de Teologia da Santa Clara University, na Califórnia, e o Prof Dr. Schutz é professor do departamento de estudos religiosos da universidade.
Eles entrevistaram centenas de padres, membros de comunidades religiosas e leigos que trabalham na Igreja para obter informações sobre a cultura da Igreja e oferecer ideias para padres e leigos para reduzir uma cultura do clericalismo.
“Para muitas pessoas, o conceito de clericalismo é familiar, é algo que eles já ouviram falar e ainda não temos um entendimento comum sobre isso”, disse Rubio à America. “Nós realmente achamos que o entendimento da maioria das pessoas é que é bastante individual”.
O clericalismo, argumenta o relatório, é uma questão sistêmica que cria ambientes insalubres na Igreja, e não um fenômeno exclusivo de certos maus atores.
Vários pesquisadores católicos argumentam há anos que uma cultura do clericalismo perpetua o abuso. Mais recentemente, os líderes da Igreja, do Papa Francisco aos párocos diocesanos, concordaram publicamente com esse sentimento. Em 2018, o papa disse que o clericalismo permitiu que o abuso e seu encobrimento florescessem na Igreja.
Mas o novo relatório procura destacar como o clericalismo existe como um sistema que prejudica até mesmo atores individuais na igreja que se descrevem como se opondo a ele.
“Em vez de descrever o clericalismo como uma realidade individual – um problema de ‘maçãs podres’ – este estudo mapeia o clericalismo como uma realidade estrutural moldada pela interação de três forças: sexo, gênero e poder”, escrevem os autores.
Várias realidades contemporâneas e históricas contribuem para uma cultura do clericalismo na Igreja, afirma o relatório, que é exacerbada pela falta de oportunidades para os padres discutirem a sexualidade, a separação dos padres dos leigos e a pouca interação profissional entre seminaristas e leigas.
O relatório observa que leigos e padres podem perpetuar o clericalismo na Igreja e que entender como o clericalismo contribui para um ambiente onde o abuso sexual é encoberto “não precisa se opor ao sacerdócio nem demonizar os padres”.
Os pesquisadores entrevistaram cerca de 300 pessoas para o relatório, incluindo padres, membros de comunidades religiosas e leigos católicos. Quase metade dos entrevistados eram leigos e o relatório observa que nenhum seminarista diocesano participou. O relatório descobriu que os entrevistados que receberam formação jesuíta se sentiram mais preparados para enfrentar os desafios de ministrar dentro de uma cultura do clericalismo. Ainda assim, todos os entrevistados concordaram que existem sistemas na igreja que dificultam o fim do abuso.
Cerca de 40% dos padres e homens em formação para o sacerdócio participaram do estudo identificados como homossexuais, muito superior à população geral. O relatório cita estudos que mostram que a homossexualidade não é a causa raiz da crise de abusos da Igreja, mas observa que o ensino da Igreja contra a homossexualidade cria uma cultura de sigilo entre os padres que se identificam como gays.
“A concentração de homens gays no sacerdócio não pode ser negligenciada porque a maioria dos padres não consegue ser aberta sobre sua orientação sexual”, afirma o relatório, “e alguns podem, consciente ou inconscientemente, buscar o sacerdócio como forma de evitar ou reprimir sua sexualidade, tornando o celibato saudável extraordinariamente difícil”.
Uma cultura de silêncio em torno da realidade dos padres gays, além de uma “repressão sexual generalizada” e uma falta de compreensão sobre gênero, cria condições em que o sigilo e a proteção da instituição se tornam preocupações primordiais.
Para combater essa cultura, o novo relatório sugere que os católicos adotem atitudes e práticas de “anticlericalismo”. Estes seriam baseados na promoção de uma integração sexual saudável para padres celibatários, apresentando exemplos positivos de masculinidade e feminilidade e capacitando os leigos para trabalhar ao lado do clero ordenado.
“Quando o clero masculino escolhe o sigilo sobre a exposição, está protegendo os espaços masculinos de conhecimento e poder”, afirma o relatório.
O relatório também descobriu que os ambientes da Igreja, especialmente os seminários católicos, oferecem poucas chances para os padres e aqueles que estudam se tornar padres interagirem com as mulheres.
“Assim como as redes permitem que homens no entretenimento, esportes e política protejam o poder e os privilégios masculinos enquanto prejudicam suas colegas mulheres, as redes clericais protegem homens que abusam de menores e adultos”, conclui o relatório.
Quando se trata de lidar com sua sexualidade, cerca de metade dos padres que participaram da pesquisa disse que “a repressão ou a sublimação lhes foram apresentadas como estratégias”. Apenas metade dos padres e daqueles que estudam para se tornar padres disseram sentir que receberam “as ferramentas de que precisavam para viver uma vida celibatária sem negar sua sexualidade”.
A pesquisa também descobriu que muitos padres e diáconos que participaram sentiram que estavam abertos a comentários, mas os leigos entrevistados disseram que não se sentiam à vontade para criticar coisas como homilias. Essa dinâmica, disseram os autores, “muitas vezes protege o clero das críticas e mantém um status quo caracterizado pelo silêncio”.
O relatório, que foi financiado com uma bolsa da Fordham University como parte de uma iniciativa para enfrentar o abuso sexual nas instituições jesuítas, diz que todos os católicos têm um papel a desempenhar na mudança da cultura da Igreja, a fim de prevenir o abuso sexual do clero e seus encobrimentos.
A professora Rubio disse que paróquias e escolas, onde as formações em ambientes seguros são imprescindíveis, estão falhando quando se trata de tornar as instituições afiliadas à Igreja verdadeiramente seguras.
“Esta é uma realidade relacional, uma realidade estrutural”, disse ela. “E parte do acordo com as estruturas é que elas funcionam em nós mesmo quando não estamos cientes delas e mesmo quando não queremos agir de uma determinada maneira”.
Em vez disso, prevenir o abuso e seu acobertamento exigirá um esforço conjunto entre padres, membros de comunidades religiosas e leigos para entender as causas profundas de por que certos comportamentos foram tolerados nesses espaços.
Essas ideias incluem a criação de espaços onde padres e seminaristas possam ter discussões honestas sobre sexualidade, compreensão clara sobre os limites apropriados entre padres e leigos adultos, oportunidades para estudar gênero e empoderar os leigos.
“Esperamos que essas recomendações possam exercer alguma pequena influência na formação dos futuros sacerdotes, diáconos e ministros leigos, afastando a Igreja dos males do clericalismo estrutural e promovendo novos modos de ser Corpo de Cristo que sejam coerentes com o anúncio evangélico de vida, amor e libertação para todo o povo de Deus”, afirmam os autores.
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‘Para além das maçãs podres’: Um novo relatório explora como o clericalismo é moldado por sexo, gênero e poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU