20 Mai 2022
"Por razões concretas, Odifreddi é quem domina a extensão dos relatos que resultam, portanto, claramente autobiográficos. A conversa entre os dois nas etapas iniciais é mais encorpada, embora se prendendo por necessidade à fragmentariedade, ao lampejo das intuições, mas também tocando os temas fundadores e esboçando reflexões sugestivas", escreve cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Avvenire, 17-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Piergiorgio Odifreddi publica as cartas trocadas com Bento XVI e apresenta um relato pessoal dos encontros com ele: um diálogo intenso, no qual o matemático abandona os tons ásperos usados no passado.
Publicamos amplos trechos do prefácio do Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, ao livro de Piergiorgio Odifreddi In cammino alla ricerca della verità (Em caminho à busca da verdade, em tradução livre, Rizzoli, pág. 336, € 18,50) lançado hoje. O matemático conta em detalhes as conversas que teve com Bento XVI a partir de 2013 e publica na íntegra a correspondência trocada com ele. Assim, ampliam-se os temas abordados na carta aberta Caro papa ti scrivo (Mondadori 2011) e do subsequente Caro papa teologo, caro matematico ateo (Mondadori, 2014), com a resposta de Ratzinger. É um diálogo entre ciência e fé em que, ainda que a partir de posições divergentes, emerge o objetivo comum da busca da verdade. Um final que estimula os diálogos, tornando-os íntimos e despertando memórias autobiográficas em ambos. O livro será apresentado na Feira do Livro de Turim em 21 de maio. O autor o discutirá com o filósofo Paolo Flores d'Arcais e o padre Enzo Fortunato, franciscano e jornalista.
A obra In cammino alla ricerca della verità tem um prévio pródromo no texto Caro Papa teologo, caro matematico ateo (2013). Embora necessariamente simplificado, e quantitativamente não homogêneo entre os dois interlocutores, o diálogo responde ao cânone do “Pátio dos Gentios”, cruzando neste caso as duas linguagens e as duas concepções, a científica e a teológica. A estrutura do livro é de um díptico, embora com painéis de diferentes tipologia e extensão. O primeiro, de fato, é constituído pela narrativa dos cinco encontros pessoais ocorridos entre os dois protagonistas entre 2013 e 2018.
Livro Piergiorgio Odifreddi In cammino alla ricerca della verità, de Gianfranco Ravasi. Editora de Rizzoli, pág. 336, € 18,50 (Foto: Divulgação/Amazon)
Por razões concretas, Odifreddi é quem domina a extensão dos relatos que resultam, portanto, claramente autobiográficos. A conversa entre os dois nas etapas iniciais é mais encorpada, embora se prendendo por necessidade à fragmentariedade, ao lampejo das intuições, mas também tocando os temas fundadores e esboçando reflexões sugestivas. Posteriormente, o diálogo se torna mais rarefeito e tênue por parte do papa emérito, inclusive pontuado por silêncios. No entanto, a interpretação de Odifreddi é relevante, que eventualmente molda as palavras e os juízo de seu interlocutor - uma pessoa sempre contida e rigorosa, mas não alheia à ironia amável - segundo seu próprio filtro e sensibilidade.
No entanto, surpreende uma indiscutível delicadeza afetuosa do narrador, que revelará a muitos um viés inédito, comparado a certas asperezas até agressivas reservadas no passado ao mundo cristão, e em particular ao horizonte eclesial. Curiosamente, muitas vezes ele recorda sua matriz católica tradicional, quase seminarista, com sua ingênua intenção (ou sonho) de se tornar, mais do que padre, papa. O segundo painel desse díptico ideal é o maior e encena uma conversa epistolar que tem como ponto de partida a leitura de Odifreddi de um dos maiores e mais conhecidos textos do teólogo Ratzinger: "Depois de ter lido a Introdução ao Cristianismo, fiquei impressionado, e escrevi um comentário em forma de carta aberta em Caro papa, ti scrivo ( 2011)”. A resposta do papa é articulada, e reage a essa "carta aberta" com um "juízo bastante contrastante". A análise, embora de caráter geral, é pontual e raia a dialética entre a fé "científica" professada pelo matemático e aquela cristã, enfrenta temas como evolução e moral católica, se opõe à ideia de teologia como "ficção científica”, abre-se à beleza e à arte. Emblemático é um parágrafo claro, que delineia o perímetro genuíno do diálogo. Bento XVI escreve: “Minha crítica ao seu livro é em parte dura.
Mas a franqueza faz parte do diálogo; só assim o conhecimento pode crescer. Você foi muito franco e assim aceitará que eu também o seja”. E, grato pela atenção dispensada ao seu ensaio inicial, conclui com a convicção de que "apesar de todos os contrastes, não faltam convergências". Aliás, abre o olhar para temas ainda não explorados em sua conversa: liberdade, amor e mal. Na "carta aberta" de Odifreddi, a pessoa e a mensagem de Cristo foram consideradas de forma superficial, e Ratzinger não hesitou em notar com sinceridade: "O que você diz sobre a figura de Jesus não é digno de seu nível científico".
É assim que a segunda carta de 16 de abril de 2014 se centra no Jesus histórico e no Cristo da fé, questão aliás abordada por uma impressionante bibliografia exegética histórico-crítica. O papa não hesita, a esse respeito, também em sugerir um conselho de aprofundamento através da obra de um famoso estudioso alemão, Martin Hengel. A personalidade de Jesus, no entanto, continuará a aparecer sucessivamente, até uma digressão fantasmagórica sobre a natureza de Cristo, que o próprio Odifreddi classifica como "ingenuidades bioteológicas", e que Bento XVI muito gentilmente considera como "uma tentativa interessante, mas não muito convincente". Aos poucos a correspondência do professor cresce e aborda um arco temático tão variado, a ponto de se tornar bulímico: além de Cristo, entram em cena fé, história, morte, razão, inferno, monoteísmo, pandemia e muito mais, oferecendo também uma sua autobiografia. Ao contrário, por razões externas compreensíveis, as respostas de Bento XVI tornam-se mais sucintas, ainda que às vezes com lampejos de intuição.
De fato, em 11 de setembro de 2018 ele confessa: "Infelizmente minha saúde está piorando, então não sei se poderei ter mais uma vez uma conversa com você". No entanto, a intensidade do diálogo colora-se de tonalidades até afetuosas. Nesse sentido, merecem atenção as páginas apaixonadas e sofridas que Odifreddi enviou ao papa por ocasião da morte de sua mãe em 18 de outubro de 2020, “um desabafo filial, privado e pessoal que chega a ser quase uma 'confissão'”. Esse texto poderia ser o selo ideal para as conversas entre os dois, até porque é um testemunho extraordinário da abordagem pessoal, inclusive emocional, de um ateu diante da morte de uma pessoa querida, uma experiência humana radical.
E Bento XVI, respondendo em 24 de novembro de 2020, confessa sem hesitação que “sua carta sobre a morte de sua amada mãe me tocou profundamente”. O díptico - constituído pelo quadro narrativo das visitas e das cartas - mostrará ao leitor muitas outras componentes reveladoras das duas personalidades, ainda que seja evidente a prevalência muito marcada de Odifreddi.
Surpreendente é a multidão, tão heterogênea que chega a ser dispersiva, dos autores citados: de Pseudo-Dionísio a Dostoiévski, de Hildegard de Bingen a Küng, de Guardini a Sartre, de Thomas Mann a Amartya Sen, de Jan Assmann a Coetzee, e assim por diante. Assim como aflora a atração do professor pelo horizonte cultural-religioso indiano. No âmbito da ciência, dois personagens se destacam. Por um lado, John F. Nash (1928-2015), também com sua conhecida história pessoal. Por outro, Kurt Gödel (1906-1978), com seu teorema da incompletude: um cientista que em várias ocasiões foi objeto dos interesses de Odifreddi, a cuja "prova matemática da existência de Deus" também havia dedicado um ensaio com Gabriele Lolli ("se Deus existe, então a matemática é coerente").
Curioso é o aparato dos dons que demonstram o afeto de Odifreddi durante as visitas, principalmente em relação aos aniversários papais: além dos óbvios livros, CDs ou doces, são originais a esfera do artista estadunidense Dick Termes, a biosfera BeachWorld da NASA no ônibus espacial, e mais uma esfera, aquela das constelações Mova. Esses e outros componentes pessoais muitas vezes formam o enredo da correspondência de Odifreddi. Mas muito mais importantes são os caminhos interiores: o símbolo do "caminho" em busca da verdade é, de fato, fundamental. Afinal, até a lição do mestre proposta por Platão em sua Apologia de Sócrates se resumia no apelo: "Uma vida sem busca não vale a pena ser vivida".
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Bento XVI-Odifreddi. O Papa e o matemático, afeto não calculado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU